Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management
A Argentina chegou ao governo de Javier Milei no fim de 2023, após mais de uma década de desequilíbrio macroeconômico: inflação acima de 200%, forte desvalorização cambial, queda da renda per capita, déficits fiscais persistentes, controles de preços e múltiplas taxas de câmbio. O país enfrentava um colapso clássico, que exigia um ajuste rápido e profundo.
O novo governo iniciou um programa de estabilização ambicioso. A primeira medida foi uma desvalorização de mais de 50% do peso ante o dólar, seguida da adoção de um regime de bandas de flutuação -insuficiente, porém, para que a taxa de câmbio deixasse de estar supervalorizada. Vieram, na sequência, um ajuste fiscal severo -corte de 4,5 pontos do PIB em gastos primários-, eliminação de subsídios, recomposição de impostos sobre exportações e o retorno do superávit primário em 2024, algo inédito em anos.
Houve também desindexação e liberalização de preços, inclusive tarifas públicas. O impacto inicial foi expressivo: a inflação mensal caiu de 26%, em dezembro de 2023, para abaixo de 3%, no início de 2025, enquanto o setor externo se beneficiou da recuperação agrícola e da queda das importações.
Entretanto, ao tentar acelerar a desinflação sem liberar completamente o câmbio, mantendo o peso artificialmente valorizado, o governo comprometeu parte do sucesso obtido até ali. A moeda cara dificultou a recomposição de reservas e fragilizou o equilíbrio externo, gerando perda de divisas e risco à credibilidade do ajuste.
Apesar das tensões, o governo sobreviveu politicamente. No domingo (26), nas eleições legislativas de outubro de 2025, o partido de Milei, que até então detinha cerca de 15% das cadeiras na Câmara, ampliou substancialmente sua base, fortalecendo a capacidade de articulação e aprovação de reformas e reduzindo a dependência de alianças pontuais com a oposição.
O caso argentino serve de alerta ao Brasil, que vive sua própria armadilha de credibilidade, mas no campo fiscal. Aqui, o câmbio é flutuante, e as reservas são robustas. Contudo, o Orçamento é rígido, e as regras fiscais são frágeis. Nos últimos meses, o quadro se agravou com medidas que elevam gastos fora do Orçamento. Duas decisões chamam a atenção: a proposta aprovada no Senado que coloca "projetos estratégicos" da Defesa fora dos limites de despesa e da meta de primário e, na Câmara, o projeto de lei complementar 163/2025, que exclui despesas temporárias com educação e saúde dessas métricas também. Não são exceções técnicas, mas uma desfiguração do teto fiscal, que perde força quando gastos não imprevisíveis são retirados das regras.
A armadilha fiscal brasileira é menos visível que a cambial argentina, mas igualmente corrosiva. Sem clareza sobre a trajetória da dívida e a confiança na capacidade do governo de cumprir metas críveis, o custo de financiamento seguirá elevado. Juros altos por tempo prolongado comprometem investimento, produtividade e crescimento - podendo levar à dominância fiscal.
A credibilidade não se decreta. Ela precisa ser construída. A sustentabilidade, fiscal ou cambial, depende da coerência entre políticas e da persistência na estabilidade. Para escapar da armadilha, o Brasil precisa de um arcabouço fiscal sólido e vontade política para resistir às tentações de curto prazo.
Mais do que a vitória eleitoral de Milei, o fato mais impressionante foi o populismo ter ficado para trás. Em um país historicamente marcado por promessas fáceis e crises recorrentes, o apoio renovado a um governo que defende disciplina fiscal e reformas liberais revela uma mensagem poderosa: a sociedade argentina começa a enxergar na estabilidade e na responsabilidade econômica um caminho de esperança.
Essa virada de chave pode ser, em última instância, o legado mais duradouro das eleições legislativas argentinas de 2025.