Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Opinião Econômica

- Publicada em 16 de Janeiro de 2023 às 20:18

Litígio Zero não ataca as causas da litigiosidade tributária

Cecilia Machado
Economista, professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV
Economista, professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV
Uma das primeiras medidas econômicas do novo governo foi estabelecer um plano de recuperação fiscal para fazer frente à expressiva expansão de gastos decorrente da PEC da Transição: um ajuste pelo lado da arrecadação, com ênfase no recém-criado "Programa Litígio Zero".
Pelas estatísticas do Carf-órgão que aprecia e julga a inconformidade dos contribuintes contra exigências tributárias-, são 93 mil processos e mais de R$ 1 trilhão em disputa. O governo estima que o programa deva ampliar a arrecadação em R$ 50 bilhões de forma extraordinária e em R$ 20 bilhões de forma permanente, o que reduziria o déficit primário em 0,7 ponto percentual (do PIB) em 2023.
Em linhas gerais, o programa propõe duas ações. Primeiro, busca trazer mais agilidade à tramitação dos processos estabelecendo o fim do recurso de ofício e o aumento da alçada para acesso ao Carf. Em conjunto, essas medidas devem reduzir o tempo do litígio e permitir que o Carf direcione esforços para os casos maiores e são largamente acertadas.
Os recursos de ofício de fato não acrescentam muito valor ao julgamento, já que a decisão continua mantida em 90% dos casos (BID, 2022). Além disso, a grande maioria dos casos (86 mil) concentra pouco mais de 10% do estoque de valores em julgamento no Carf, enquanto apenas 162 casos concentram quase 50% deles (dados gerenciais do Carf, 12/2022).
Em segundo lugar, o programa busca aumentar a arrecadação tanto através dos incentivos à regularização das empresas (com desconto de 100% das multas devidas) quanto através da renegociação das dívidas, com descontos sobre o valor total do débito (incluindo tributos, juros e mora) para pessoas físicas, micro e pequenas empresas e descontos sobre juros e mora para pessoas jurídicas em processos de maior valor.
Colocado nesses termos, o Programa Litígio Zero se assemelha a um Refis, já que ele dá algum benefício ao contribuinte em litígio com a União. E é aqui que o novo programa falha em seu desenho. Conceder benefícios aos contribuintes que entram em acordo e renegociam as suas dívidas com a União estimula o próprio litígio: quem contesta um tributo ganha tempo e ainda recebe desconto.
Dito de outra forma, é esperado que os contribuintes passem a fazer uso estratégico do contencioso fiscal ao longo do tempo. Se, de um lado, a arrecadação pode aumentar com a renegociação das dívidas e com o fim dos litígios existentes no presente, de outro, ela pode cair quando outros contribuintes passarem a questionar o pagamento de seus impostos, à espera da reedição de um novo programa como esse no futuro.
Estudo sobre os Refis conduzido pela Receita Federal em 2017 corrobora essa visão, mostrando que poucos optantes pelos regimes de parcelamento especial são capazes de quitar suas dívidas e que muitos rolam suas dívidas em novos Refis. Além disso, estudo do BID de 2022 documenta que o comportamento dos contribuintes responde aos incentivos econômicos, financeiros e negociais do processo tributário, aumentando, por essa via, o contencioso fiscal.
Por fim, os critérios de elegibilidade aos descontos na renegociação das dívidas de pessoas jurídicas de maior porte-apenas créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação qualificam para o programa- levantam o questionamento se descontos devem ser dados às empresas que se enquadram nessa categoria, como as que estão em recuperação judicial. Se o perfil do crédito está relacionado à produtividade da empresa, faria sentido amplificar as distorções do processo tributário para facilitar a renegociação das dívidas tributárias das empresas menos produtivas apenas para maximizar a arrecadação da União?
As causas da excessiva litigiosidade tributária brasileira são conhecidas. Elas envolvem a alta complexidade da legislação fiscal, com regimes especiais e mudanças frequentes nas regras e alíquotas, algo que apenas uma ampla reforma tributária será capaz de resolver.
Conceder benefícios aos contribuintes na renegociação de suas dívidas, conforme estabelecido pelo novo programa do governo, ataca apenas os sintomas -e não as causas- da excessiva judicialização das dívidas tributárias. O "Litígio Zero" tem impactos fiscais pouco claros e pode, ao contrário do que se deseja, estimular ainda mais a disputa entre contribuintes e União.
 
Cecilia Machado
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO