O romance mais filmado desde que a invenção dos Lumière permitiu a criação de narrativas através de imagens em movimento, Frankenstein, de Mary Shelley, foi transformado pelo cinema, nos bons e nos maus títulos proporcionados pelo original, numa história em que o surgimento de uma criatura surgida em laboratório se transforma em ameaça. James Whale, que realizou, em 1931, sua versão, atendeu o pedido da criatura dois anos mais tarde quando dirigiu A noiva de Frankenstein, um filme cujos méritos são devidamente destacados pelos amantes do gênero, a ponto de ser considerado por um dos momentos mais expressivos atingido pelo cinema fantástico. Mas, de um modo geral, o romance foi em grande parte ignorado, permanecendo focado apenas em sua parte central. Quem ampliou o espaço, aproximando-se do original literário foi Kenneth Branagh em Frankenstein de Mary Shelley, realizado em 1977, com Robert De Niro no papel da criatura. Guillermo del Toro, agora, realiza, ao contrário das primeiras, uma versão ampliada que lhe permite variações sobre o tema original, algo que de certa forma faz de seu filme obra que nem merece ser comparada com mediocridades produzidas pela indústria cinematográfica nos últimos anos, ao explorar o gênero.
A história, que no original, através de um subtítulo, deixava claro que se tratava de uma variação em torno do tema de Prometeu, recebe agora um tratamento que a afasta de outros filmes. Por curiosidade é importante mencionar que há uma aproximação com a brilhante sátira realizada em 1973 por Mel Brooks, no qual o cientista Victor pronunciava seu sobrenome de forma a ignorar a original, a do pai, um médico famoso. E só depois da façanha concretizada a pronuncia na forma correta, com o devido orgulho de ter superado o pai. Del Toro faz de sua versão um resumo desde as cenas iniciais, quando o capitão do navio encalhado é um exemplo bem claro da figura paternal marcada pelo autoritarismo. Dirigindo-se aos seus comandados ele deixa bem claro que suas ordens devem ser cumpridas sem nenhum tipo de contestação. Ele é o pai que deve sempre ser obedecido, a autoridade maior. Esse tema é depois desenvolvido de forma explícito no relacionamento do protagonista quando jovem e seu pai famoso. A palmatória, algo integrante de um processo destinado a moldar seres humanos devidamente enquadrados em normas impostas pela civilização, é usada não apenas nas mãos, que podem ser melhor utilizadas pelo futuro médico, mas no rosto, no caso um símbolo da personalidade. O que é visto em seguida é o conflito expresso através da focalização na vingança da criatura contra seu pai e algoz.
A leitura que del Toro faz do romance de Shelley é reveladora. A criatura nada mais é do que a ilustração de um ser deformado e impulsionado por um ódio capaz de deixar ruinas e mortos e seu caminho. Sua busca pelo tirano e criador é uma ilustração da revolta diante das imposições e proibições, que vistas em outro plano pode ser o equivalente da paixão secreta do protagonista pela noiva do irmão, um resumo simbólico do desejo de uma companheira pela criatura. A súplica do ser feito por um ser formado por partes de corpos, outra referência a sua universalidade, é mais uma expressão de desejos reprimidos, tema várias vezes exposto e enriquecido por variações durante o desenrolar da ação. Na essência, tudo tem origem nos castigos e no conflito original, entre instinto e repressão, por vezes transposto para o combate entre a criação e o autoritarismo, o novo e o velho. E no epílogo, a cena da libertação, o descobrimento que ainda há forças capazes abrir caminhos, ao propiciar o retorno para um mundo que poderia ser formado por outros valores. Antes o capitão, agora transformado pelo conhecimento de toda história ordena aos marinheiros para baixarem as armas. O filme se conclui com um final no qual a luta entre criador e criatura é substituída pela abertura de um caminho. Del Toro, também o autor do roteiro, vislumbra um horizonte permitido pelo conhecimento.