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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 02 de Outubro de 2025 às 17:38

Tempos modernos

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Hélio Nascimento
Desprezando qualquer forma de tornar a narrativa cinematográfica algo capaz de fazer o espectador contemplar com a indispensável serenidade as mazelas, as distorções e as aberrações do mundo atual, o diretor Paul Thomas Anderson se rende às facilidades que costumam criar situações e imagens que não escondem a crítica, mas se limitam a focalizar efeitos e não as causas de um caos que desde as primeiras imagens está presente em Uma batalha após a outra. O novo trabalho do cineasta procura, desde as cenas que servem de prólogo, documentar a violência que não necessita de uma nova guerra mundial para se espalhar pelo mundo, ou talvez seja ela própria a configuração de algo tão temido e já presente de forma disfarçada ou diferente do modelo clássico de um confronto universal.
Desprezando qualquer forma de tornar a narrativa cinematográfica algo capaz de fazer o espectador contemplar com a indispensável serenidade as mazelas, as distorções e as aberrações do mundo atual, o diretor Paul Thomas Anderson se rende às facilidades que costumam criar situações e imagens que não escondem a crítica, mas se limitam a focalizar efeitos e não as causas de um caos que desde as primeiras imagens está presente em Uma batalha após a outra. O novo trabalho do cineasta procura, desde as cenas que servem de prólogo, documentar a violência que não necessita de uma nova guerra mundial para se espalhar pelo mundo, ou talvez seja ela própria a configuração de algo tão temido e já presente de forma disfarçada ou diferente do modelo clássico de um confronto universal.
Sem dúvida, o cineasta acredita que uma espécie de drama que não recusa a sátira em alguns momentos é capaz de captar uma fase marcada por manifestações que ao lado de materializar desconforto é dominada por uma violência que se espalha em diversas formas, sempre expressando irracionalidades e documentando tentativas de derrubada de muralhas que mantêm a agressividade prisioneira. Anderson pode não ser profundo, mas agindo como um documentarista interessado em intensidades termina construindo uma espécie de síntese reveladora de uma época, na medida em que expõe para o espectador figuras humanas que se transformam em personagens padecendo de formas diversas das dores e das angústias criadas pelo tumulto e por conflitos gerados pelas crenças em algo imutável, eterno, imune à passagem do tempo.
A crise gerada pelos movimentos migratórios, por sua vez originada pela distância material entre países, e tendo como causa a transferência de matérias-primas de forma a criar espaços dotados de riqueza e cenários marcados por injustiças sociais de vários níveis, é a abertura desta ópera um tanto grotesca, quando um grupo de inconformados, que não recusa a utilização da violência, exerce uma de suas ações terroristas. Mas há uma novidade aqui. O casal inter-racial eleito pela câmera tem na mulher um duplo prazer: o de estar em ação contra o inimigo e o de libertar a sexualidade. A seguir, esta dupla ação irá transformar em prisioneiro e parceiro um inimigo, representado por um personagem tão reprimido quanto violento. Essa parceria inusitada irá resultar em um tema que o filme irá desenvolver com o intuito de revelar uma nação dividida. O cineasta está falando de seu tempo e do seu país e ao mesmo tempo de uma época e de um cenário onde atuam atores e atrizes movidos por impulsos superiores à racionalidade. Muitos anos depois dos anos focalizados na primeira parte, o retrato continua assustador. Mas não suficientemente para expulsar o humor. Mesmo assim, ou certamente por isso, Anderson faz uma caricatura de grupos organizados dos chamados supremacistas capazes de tudo para evitar o que chamam de contaminação.
E há também no filme uma crítica à burocratização e à transformação de seres humanos em vítimas do emprego de siglas destinadas a evitar trapaças e que exigem espaço na memória humana. Toda a sequência em que o protagonista tenta uma forma de encontrar a filha, e não tem o auxílio de um sentinela eletrônico e irredutível protetor do grupo, é primorosa ao reconstituir o desespero de um personagem diante de barreiras erguidas por companheiros de ação. E o filme, agitado e exagerado em todo o tempo, evita qualquer gênero de epílogo marcado pela conciliação. O objetivo do pai em transformar a filha numa aluna brilhante e capaz de se destacar entre colegas, não impede que ela participe de ações iguais. Há também as atividades secretas de um professor de educação física, sempre calmo e dotado de humor, que se dedica a proteger imigrantes. E o filme não deixa de ser uma espécie de documentário sobre as mais diversas fronteiras que separam seres humanos, embora faça falta um aprofundamento no trato dos personagens em cena, quase sempre estereótipos permitidos pelas facilidades.

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