Em seu primeiro filme em longa-metragem, a diretora alemã Mareike Engelhardt se arrisca abordando um tema tão contemporâneo quanto difícil de ser abordado. Ela própria reconhece que o interesse despertado na futura realizadora pelos filmes de Michael Haneke, cineasta que abordou de forma direta e corajosa o tema da violência escondida pelas convenções e parcialmente oculta por interesses diversos, foi um dado importante no momento de dar um novo passo em sua carreira. No caso de Rabia, que trata dos métodos usados pelo Estado Islâmico no trato e no processo disciplinar de jovens europeias que voluntariamente se dirigiam à Síria, a fim de se tornarem esposas de combatentes de um califado, essa influência é clara. O filme é, antes de mais nada, um duro golpe em quem, ciente da crise de valores contemporâneos, pensa, levado pelo descontentamento com as normas ocidentais, encontrar o paraíso em propostas alternativas.
A própria cineasta fala em fascismo disfarçado em religião e diz que, ao realizar o filme, foi impulsionada por um desejo antigo: saber por que no passado, uma geração se deixou seduzir em seu país por propostas tão irracionais como bárbaras. O filme, mais do que um ensaio político, procura ser um estudo sobre a fuga de um tipo de opressão e o encontro com outro gênero de tirania. Evitando aproximação com dissertações destinadas a expor fatores econômicos e políticos, a cineasta se concentra em filmar a dor de quem passa a ser vítima, num drama gerado pela misoginia e pelo supremo desrespeito gerado pela crença numa suposta superioridade.
Talvez não seja exagero ver no drama vivido pela protagonista - e por muitas das que, como ela, acreditaram em fantasias enganadoras - uma caricatura dramática do que se passa em sua sociedade. Em mais de um momento, o filme faz referências em tal sentido, principalmente nas marcas deixadas em uma das noivas. A primeira cena do filme não deixa de colocar tal tema, ao mostrar na tela o desespero de uma idosa doente e o desconforto da aspirante à enfermeira, que trata de pacientes terminais. A cena que vem depois dessa abertura não deixa dúvida sobre o tema a ser tratado. Relevante, sem dúvida, é o paralelismo entre a cena inicial e aquela na qual a protagonista ministra uma dose de morfina na diretora da madafa, casa em que as noivas dos combatentes são pacientes de um severo e desumano processo disciplinar. É quando Jessica (este o nome verdadeiro da personagem principal) volta a ser integrante do ritual visto no prólogo. A poderosa diretora da casa de preparação é outra figura relevante, pois de certa forma é também vítima do sistema, cujos métodos o filme vai aos poucos revelando.
Em uma cena, a da tentativa de estupro, Engelhardt revela de forma direta o que o filme pretende. O combatente, visto nos planos iniciais como um homem simpático e equilibrado, transforma-se num agressor, mostrando assim a verdade que cerimônias e rituais procuram esconder. Na essência o filme é uma síntese do drama gerado pelo confinamento de instintos e pela prisão de forças contrárias à civilização. Quem vier a ver no trabalho da diretora e também roteirista um panfleto estará equivocado. O filme não pretende ser um ataque. Nas cenas finais, quando o futuro é sugerido pelos sofrimentos de uma criança, não há qualquer traço de otimismo superficial e enganador. São filmes como este que demonstram que ainda há muito a se tornar dominante em momentos destinados a criar uma nova realidade. O cinema tem sido, nos últimos anos, um instrumento importante numa jornada esclarecedora, o que torna dispensáveis análises apenas formais. As imagens continuam sendo um espelho revelador. Os que desviam o olhar apenas tentam fugir de um mundo. São os que se recusam a contemplar verdades inteiramente reveladas. Rabia é mais um filme que através de destinos individuais procura expor tumultos e sofrimentos, focalizando um cenário desprovido de espaços destinados a preservar o humanismo.