O amplo domínio de um cinema voltado para a diversão e com o propósito de transformar o espectador adulto em consumidor de fantasias alienantes causa, entre outros malefícios, a ausência em nossas telas de cineastas importantes, geralmente figuras destacadas em outros centros, premiados em festivais internacionais e causadores de entusiasmo entre cinéfilos. Eis um fato que, entre outros, evidencia não apenas o atraso, mas também uma crise que, no ramo cultural, vai adquirindo proporções aproximadas ao gigantesco. São muitos os cineastas que, nos últimos anos, têm enfrentado dificuldades em aparecer no mercado exibidor brasileiro, sendo que alguns deles conseguem ultrapassar barreiras e conseguir espaço nas salas especiais, um reduto no qual ainda sobrevivem obras importantes. Um desses nomes que permanecem ausentes das salas integrantes do circuito exibidor é o do cambojano Rithy Pan. Ele é um assíduo frequentador de festivais europeus e nome muito elogiado pela crítica internacional. Seu filme mais recente, Encontro com o ditador, realizado no ano passado, está disponível, gratuitamente, no CineSesc CinemaEmCasa. O filme, que utiliza cenas reais captadas por documentaristas, bonecos e intérpretes, tem no elenco a atriz francesa Irene Jacob. Por duas vezes, Pan foi indicado para disputar o Oscar por seu país, em 2003 por A imagem que falta e em 2024 por Encontros...
O cinema deste diretor é visto como um precioso relato do que tem acontecido no Camboja nas últimas décadas e, assim, um exemplo de arte comprometida em focalizar a realidade, por mais dura que ela possa ser. Certamente é um daqueles que aproveita o tempo de um filme para colocar o espectador diante de seu mundo. Mesmo a fantasia e os recursos de um teatro de bonecos são utilizados para que realidade seja recriada nas telas. É o cinema em sua ação mais valiosa e enriquecedora. A ação do filme transcorre na década de 1970, quando o Khmer Vermelho, sob a liderança de Pol Pot, exerceu o poder no país, que passou a se chamar República Democrática do Kampuchea. O objetivo era criar um estado agrário e para isso, além da eliminação de opositores, grande parte da população que vivia em cidades foi transferida para o campo, para viver em comunidades agrícolas. O regime impediu qualquer tentativa de industrialização e toda e qualquer oposição era eliminada. Com a invasão do Vietnã, o regime de Pol Pot chegou ao fim. O filme de Pan transcorre no auge do poder do Khmer e utiliza imagens captadas clandestinamente, que documentam o fracasso de tal proposta.
Sem discursos e sem utilizar recursos panfletários, o cineasta descreve, a partir de um livro escrito por Elizabeth Becker, o trabalho de três jornalistas franceses que haviam conseguido autorização para entrevistar o Primeiro Irmão, como Pol Pot era chamado. Como o ditador foi grande amigo de um jornalista francês no tempo em que estudou em Paris, algo que o filme explora para lembrar a culpa do Ocidente em tal caso, Pan deixa claro que a violência praticada pelo ser humano pode ter raízes geralmente não abordadas ou não compreendidas de forma perfeita. O ditador, por exemplo, é leitor de Rousseau, cujo Do Contrato Social é citado visualmente numa cena, e em outro momento um dos líderes da Revolução Francesa é também citado por Pol Pot. O grande chefe não é iluminado por uma imagem clara. Dele só são vistos seu perfil e sua sombra. Ele não é um indivíduo, mas sim a agressividade nele contida e disfarçada por um falso amor aos animais. O agressor oculto. E são as imagens reais - no filme aparecendo como o trabalho do fotógrafo do grupo - que mostram as terríveis consequências do regime. De certa forma a sequência final lembra o epílogo de Desaparecido, o grande filme de Costa-Gavras, focalizado em outro tipo de opressão. O cinema de Rithy Pan é exemplo de uma arte voltada para a crítica ao arbítrio, gerado por distorções que fazem a agressividade e a violência elementos componentes de um processo destinado a eliminar qualquer forma de humanismo.