Enquanto as telas da cidade prosseguem dominadas pela rotina, alguns espaços se abrem para filmes não enquadrados em uma rotina que se coloca como uma muralha destinada a impedir a passagem de obras que pretendem dar testemunho sobre temas essenciais. São, tais espaços, abrigos para filmes destinados a fazer com que o olhar humano ilumine cenários desprezados por interesses devotados a operações destinadas a desviar a atenção do público. Os resistentes, tanto os que constroem como os que contemplam e prestigiam certos trabalhos, são certamente uma minoria, mas cujo número permite ainda que certas salas recebam um número de espectadores que permite uma certa dose de otimismo. Filmes como Vermiglio, a noiva da montanha, de Maura Delpero, e Dreams, do norueguês Johan Haugerud, que venceu o Festival de Berlim deste ano, são exemplos de obras que reúnem méritos suficientes para entrar na agenda de todo espectador mais atento. A constatação das qualidades de um filme sempre passa pela subjetividade dos que o contemplam. Mas acima disso sempre estará algo igualmente importante: a percepção de suas propostas. E também seria uma negligência não perceber a qualidade na construção da obra.
Vermiglio transcorre numa vila italiana durante a Segunda Guerra Mundial. O mais interessante no filme é que, ao esconder dois desertores, os habitantes fazem com que os acontecimentos que sintetizam um resumo da marcha da civilização, desde o instinto até a implementação da disciplina, sejam uma síntese reveladora. O pai é a presença mais importante, até por ser, também, o professor e o orientador. A sala de aula, ocupada por crianças, jovens e adultos, é o símbolo da sociedade passando pelo processo civilizador. Mas o pai também é vítima de forças disciplinadoras, e não apenas, a partir dos cigarros que esconde numa gaveta, algo que a nova geração acaba descobrindo.
Mas não se resume a isso o filme de Delpero. Os dois desertores pouco falam e um deles também esconde algo fundamental. E ao registrar o gesto de amor no epílogo do filme, a cineasta termina focalizando a vitória do mais poderoso dos instintos. Eis um filme que dispensa comentários de sua realizadora. Apenas os acontecimentos e os rituais encenados são suficientemente eloquentes para afastar simplificações. Ao focalizar uma determinada realidade, o filme focaliza não apenas estruturas e processos como também faz com que a tela seja ocupada por gestos, atitudes e comportamentos reveladores. E também não esquece de colocar em cena sonhos e frustrações.
Dreams é a última parte de uma trilogia cinematográfica, cujos primeiros títulos foram Sex e Love. Um dos prováveis mestres do diretor Haugerud, Sigmund Freud, também usou a forma de uma trilogia, quando publicou, em 1905, Três estudos sobre a sexualidade, que a respeito do qual o próprio autor, no prefácio, expressou o "ardente desejo que o livro envelheça rapidamente e o que nele, uma vez, foi novidade, possa tornar-se geralmente aceito e que o que nele estiver imperfeito possa ser substituído por algo melhor". Basta acompanhar o noticiário para constatar que essa manifestação, sincera, corajosa e de certa forma inédita, não foi integralmente atendida. Haugerud realizou seus filmes de forma a registrar o diálogo do ser humano com sua sexualidade. E o faz de forma a registrar seu encontro com forças por ele desconhecidas. É o que acontece em Dreams de forma a acentuar impasses.
O tema da escada gigantesca que parece levar a lugar nenhum coloca duas representantes de uma geração anterior no centro de um turbilhão, antecede o tranquilo encontro das duas ex-alunas na cena final, uma aceitação e uma manifestação de maturidade. O filme não recorre a dissertações, mas revela, na descoberta do talento literário da protagonista, que a geração de obras de arte, sendo elas autobiográficas ou não, têm como ponto de partida experiências pessoais de seus autores, nos quais a sexualidade sempre ocupa papel relevante.