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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 05 de Junho de 2025 às 18:42

'Entre dois mundos', de Emmanuel Carrère: o disfarce

Com Juliette Binoche no papel principal, 'Entre dois mundos' marca o retorno de Emmanuel Carrère à direção

Com Juliette Binoche no papel principal, 'Entre dois mundos' marca o retorno de Emmanuel Carrère à direção

PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
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A proposta de Emmanuel Carrère em Entre dois mundos faz com que o filme se apresente ao público sem as ingenuidades que têm prejudicado obras que, impulsionadas pelo desejo de denunciar iniquidades, costumam cair no sempre deplorável maniqueísmo, isso quando não são anuladas pelo discurso e pelo panfleto. Narrar acontecimentos reveladores é operação que nunca deveria ser substituída por sentenças depreciativas, na verdade opiniões, quase sempre superficiais, sobre determinada realidade. O reducionismo no lugar de narrativas que evidenciam distorções só contribui para o enfraquecimento de obras comandadas por impulsos dirigidos por simplificações. Nunca o narrar meticulosamente rituais e o movimento de engrenagens que transformam seres humanos em peças a serem movimentadas deveria ser substituído por frases e manifestações que ignoram a capacidade do espectador em olhar de forma correta o que se passa na tela. Basta o que está sendo mostrado. Desnecessário qualquer comentário. E mesmo quando aquele surge, sua utilização deve ser definida ou então até contrariada pelo que o espectador está contemplando. É necessário mostrar sem adjetivos o que deve ser condenado. Basta mostrar. Se esta forma não é utilizada em outras latitudes, tal fato só aumenta o significado e a importância do filme de Carrère.
Ao narrar em imagens um argumento por ele próprio escrito, em parceria com Hélène Devyck, o cineasta teve o cuidado de sempre fazer com que nos gestos, olhares e atitudes dos personagens em cena o tema principal fosse claramente exposto. A escritora que se disfarça numa divorciada e desempregada, visando a conhecer de perto a realidade que pretende transferir para um livro é, até certo ponto, um guia para o espectador. É ela que presencia na sequência inicial o massacrante ritual da burocracia, que ignora situações de desespero e sempre é guiada por normas que ignoram exceções, por mais injustas que sejam. Não é necessário qualquer comentário. As situações são narradas de forma a aproximar o filme da realidade. Funcionários e seres humanos à procura de um caminho se igualam numa dança reveladora. É cinema encenado, quase se transformando num documentário. Até intérpretes profissionais, entre eles uma atriz muito conhecida, não atuam na maneira tradicional. Todos não interpretam, mas parecem viver seus personagens. O palco e o aparelho registrador de imagens se transformam em algo que parece recuperar integralmente o real. Nunca saem de cena, substituídos por recados e mensagens do realizador.
Outro mérito do filme é evitar o tradicional final das obras marcadas por aquela ingenuidade que evita complexidades. Depois de uma cena cujo início parece encaminhar tudo para uma falsa harmonia, a dureza se impõe. Carrère não se deixa seduzir pelas vozes que costumam cantar que o interesse em tornar público, através da crítica, injustiças e distorções é suficiente para o surgimento de reparos e abertura de novos caminhos. A imagem repleta de sorrisos é substituída por rostos que expressam decepção, agressividade por uma encenação insuficiente, outra forma de usar indivíduos, de transformá-los em personagem de uma peça desprovida de autenticidade. No filme, a personagem transformada em atriz é uma figura que acaba tendo de suportar a solidão e o desamparo. Mas é no plano final que aparece a grande condenação. Os valores que pareciam ser alcançados faziam parte de uma encenação, que apenas tenta provar as melhores intenções de um grupo privilegiado. A distância, porém, permanece, e o olhar dominado pela ira é uma severa advertência. Entre dois mundos é mais um trabalho a ser visto, principalmente por ser mais uma peça de resistência, numa época em que, não apenas no cinema, o falso sorriso tenta esconder dramas, dúvidas e perplexidades, num tempo em que o disfarce é algo amplamente utilizado. De certa forma é o cinema resistindo a usar a máscara destinada a esconder rostos marcados por uma realidade difícil de ser enfrentada.
 

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