Hélio Nascimento
Realizado em 2023, Uma família normal é mais um filme sul-coreano a chegar ao mercado brasileiro. E não é filme a ser negligenciado. Baseado em livro do holandês Herman Koch, ele trata de um tema que permite colocar em cena as barreiras e as distâncias entre gerações, assim como aqueles sinais que evidenciam que estão longe de ser solucionados os problemas gerados por uma agressividade cujas causas permanecem fora de controle ou então ignoradas. Hur Jin-Ho, o realizador, começa o relato revelando que atos de irracionalismo e brutalidade não acontecem apenas em sociedades de nível de vida repleto de imperfeições. A brutal sequência de abertura não se limita em focalizar uma tragédia, iniciada por uma discussão no trânsito, filmada com realismo perturbador. Também acompanhamos uma caçada, com imagens que focalizam detalhes que revelam o gosto pela violência. E como se não bastasse uma imagem de um jovem esmagando um inseto completa o prólogo de uma narrativa cinematográfica que permanece sempre tensa e que se completa de forma que não dispensa a ironia, elemento presente na fotografia primeiro invertida e depois na forma correta, colocada nos créditos finais. O filme não exclui de sua crítica, presente no título internacional, essa forma de criticar normas estabelecidas de comportamento, de penetrar ainda mais fundo numa sociedade que cultua aparências e se afasta de gestos e comportamentos essenciais.
A questão da violência oculta, que por vezes abandona seus esconderijos e se livra de algemas frágeis para atormentar a todos, não se limita às primeiras cenas do filme. Os principais personagens são dois irmãos, que se destacam em suas profissões. Um deles é médico e outro um advogado famoso e riquíssimo. As diferenças entre ambos não se limitam às atividades: também incluem desavenças que vão se agravando à medida que o tempo passa, pois ambos estão ligados ao acidente inicial. Um cuida de uma vida; o outro de defender o agressor. E os dois entram em conflito ainda mais evidente, quando filhos agridem um morador de rua. Mas não são apenas estes os dramas familiares. Os jantares num restaurante de luxo, pagos pelo irmão mais rico, encobrem, pela riqueza material exposta, algo que não pode ser devidamente controlado. É notável, por exemplo, a cena das duas esposas enquanto retocam a maquiagem. Durante esse encontro a agressividade é controlada, mas não extinta, pois as palavras pronunciadas sob controle não escondem a hostilidade manifesta de forma disfarçada. O taco de golfe sai de cena, o carro transformado em arma é algo inexistente, a caça legalizada não aparece e a unha do jovem não impede o inseto de seguir seu caminho, mas o fantasma agressor está presente.
A família vista pelo cineasta não, deixa, portanto, de ser um símbolo de uma civilização mergulhada numa complexidade não resolvida e quase sempre mergulhada em ondas de um otimismo que desesperadamente procura soluções, seja pela fuga da realidade, seja pela utilização de imagens superficiais. O diretor deixa isso claro na cena do diálogo entre o médico e seu filho, quando o jovem fala de seu arrependimento e é abraçado pelo pai. Parece o mais ingênuo dos finais, mas é seguido por mais um jantar no qual o irmão advogado expõe seus medos. O filme de Hur Jin-Ho não encontra soluções, mas colabora para que a civilização seja olhada com mais realismo. O final, de certa forma antecipado por cena semelhante no mesmo cenário, desmonta rituais e interpretações destinados a ocultar verdades incômodas. O desconforto que as imagens e situações do filme podem causar é uma espécie de contraponto a deformações que podem levar espectadores a visitarem paraísos onde reina a harmonia. Nem sempre a lucidez leva as plateias cinematográficas a descobertas gratificantes. Ao contrário, o que vemos na fotografia colocada nos créditos finais é apenas o retrato de um desejo. A imagem verdadeira é aquela na qual palavras eternas narraram o destino agora exposto na cena derradeira deste filme notável.