Desde que a empresa de Walt Disney resolveu investir em um desenho em longa-metragem, prevendo e acertando num sucesso de crítica e também de bilheteria em Branca de neve e os sete anões, baseado num conto dos Irmãos Grimm, que o gênero tem sido explorado de forma regular, por vezes alcançando repercussão não limitada ao espaço ocupado pelo público infantil. Foi no Festival de Veneza de 1938 que este filme de abertura para um gênero teve seu primeiro êxito, recebendo um prêmio especial chamado de Grand Trophée d'Art. Até hoje os anões criados pela equipe de desenhistas de Disney são referências. Dois anos mais tarde veio Fantasia, uma seleção de curtas que ilustravam peças musicais clássicas e que incluía a revolucionária Sagração da primavera, com a qual Stravinsky e o coreógrafo Nijinsky anteciparam os tumultos do Século XX, um desafio para plateias cinematográficas acostumadas a outras combinações de som. Este segundo longa-metragem de animação sobrevive graças a uma versão de O aprendiz de feiticeiro, de Paul Dukas, no qual Mickey não consegue controlar as forças deflagradas por ele mesmo, e também pela utilização de um tema de Amilcare Ponchielli para uma sátira ao balé clássico.
O que veio a seguir foi um desfile de seres fantásticos e animais falantes. Mas outras fontes procuraram deixar na tela visões realistas do mundo contemporâneo, o que fez com que o gênero fosse ocupando um espaço cada vez maior. O caso de Flow, assinado por Glints Zibazodis, não renega o passado, mas coloca na tela uma visão amarga da realidade que nos cerca.
O filme tem sido recebido com entusiasmo incomum e quase sempre aplaudido por ser gracioso e flagrar com precisão exemplar as reações do trio protagonista, principalmente do gato, que, ao mesmo tempo que luta pela sobrevivência, exerce na narrativa o papel indispensável da solidariedade, principalmente quando outro tipo de ação não está ausente, causando problemas e até mesmo gerando violência. Basta acompanhar o noticiário atual para perceber alusões e referências ao nosso tempo. O que realmente mais chama a atenção é a utilização do cenário, esse elemento fundamental em qualquer obra cinematográfica. O que se vê é um mundo no qual o ser humano desapareceu, deixando monumentos e belas edificações. É o que restou da Civilização. Alguns, como a capivara, preferem dormir e alienar-se de tal realidade. Outros, como o lêmure, preferem recolher tudo o que é possível, certamente pensando num futuro imaginário. O gato, por sua vez, este ser tão gracioso quanto esperto, procura manter vivos ele e seus companheiros de luta. Há um precipício do qual é necessário o afastamento e há uma cena em que é necessária união para salvar uma vida, depois que outros, transformados em predadores, deixam a dois dos protagonistas a tarefa de evitar a queda derradeira.
Zibazodis e sua equipe desprezaram, por outro lado, a perfeição realista permitida por técnicas modernas, ignorando detalhes não importantes. Não é preciso destacar gotas de água nos pelos do gato: o que importa é o gesto de trazer alimento para os outros dois sobreviventes. Realizado na Letônia, Flow teve apoio de produtores de outras nações e, sem dúvida alguma, é um dos grandes momentos do gênero. A não utilização de diálogos, por outro lado, valoriza a imagem. Os gatos miam, os cães latem, nenhum personagem imita humanos para se fazerem compreendidos.
Interessante é ver, fora do filme, órgãos de comunicação dividindo as exibições entre cópias dubladas e cópias com legendas. Ninguém deverá procurar salas que atendam suas preferências. Todas exibem o filme na única maneira permitida. Apenas imagens e situações. O filme, também nesse aspecto, é universal e pode ser entendido por todos, em qualquer país e por espectadores de qualquer idade. Assim, através de um desenho animado, sem discursos e recursos fáceis, Flow é obra de um poderoso universalismo. Um manifesto a ser visto e aplaudido. A revelação provocada pelo dilúvio simbólico, o resultado de uma fúria devastadora.