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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 11 de Abril de 2024 às 18:35

Duas vidas

Obra da Netflix é do diretor Sebastián Borenszteim, o mesmo de Um conto chinês e Koblic

Obra da Netflix é do diretor Sebastián Borenszteim, o mesmo de Um conto chinês e Koblic

Netflix/Divulgação/JC
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Hélio Nascimento
Competência narrativa, disciplina estética, conhecimento das regras básicas destinadas a manter o correto fluxo das imagens, direção de intérpretes focalizada antes de tudo na criação de personagens reais - esses elementos essenciais ao cinema, esquecidos ou ignorados por organizadores de comícios e redatores de panfletos, estão presentes em Descanse em paz, o novo filme do diretor Sebastián Borenszteim, o mesmo de Um conto chinês e Koblic, dois destacados títulos do cinema argentino, realizados em 2011 e 2016 e que aqui foram exibidos nos cinemas e integraram o grupo dos que contribuíram para o prestígio alcançado por aquela cinematografia nos principais centros exibidores. Porém, até o cinema argentino, que tantos admiradores encontrou no Brasil e que tem se destacado em todo o mundo, nem sempre encontra em nosso mercado o lugar ideal para ser conhecido. O mais recente filme de Borenszteim, por exemplo, só pode ser visto em telas reduzidas. Diretores, alguns deles nomes importantes, têm aceitado realizar filmes e séries para empresas produtoras de títulos para a tela doméstica. Nada de mal nisso, afinal ninguém pensaria, no passado, em proibir discos, que tanto contribuíram para que a música tivesse seu público ampliado e aumentado a presença em salas de concerto e espetáculos em estádios. Mas uma coisa é um trabalho feito para a tela pequena. Outra é o produzido para a telas do cinema. Quando um filme é feito diretamente para ser visto nas condições ideais, ele sempre perde muito de sua força ao ser apresentado em tela menor. Mas a exibição em local imperfeito não chega a impedir totalmente que determinados filmes sejam apreciados e entendidos. É o caso deste Descanse em paz, que pelo menos sai do limbo criado pelo desinteresse de distribuidores e exibidores.
Competência narrativa, disciplina estética, conhecimento das regras básicas destinadas a manter o correto fluxo das imagens, direção de intérpretes focalizada antes de tudo na criação de personagens reais - esses elementos essenciais ao cinema, esquecidos ou ignorados por organizadores de comícios e redatores de panfletos, estão presentes em Descanse em paz, o novo filme do diretor Sebastián Borenszteim, o mesmo de Um conto chinês e Koblic, dois destacados títulos do cinema argentino, realizados em 2011 e 2016 e que aqui foram exibidos nos cinemas e integraram o grupo dos que contribuíram para o prestígio alcançado por aquela cinematografia nos principais centros exibidores. Porém, até o cinema argentino, que tantos admiradores encontrou no Brasil e que tem se destacado em todo o mundo, nem sempre encontra em nosso mercado o lugar ideal para ser conhecido. O mais recente filme de Borenszteim, por exemplo, só pode ser visto em telas reduzidas. Diretores, alguns deles nomes importantes, têm aceitado realizar filmes e séries para empresas produtoras de títulos para a tela doméstica. Nada de mal nisso, afinal ninguém pensaria, no passado, em proibir discos, que tanto contribuíram para que a música tivesse seu público ampliado e aumentado a presença em salas de concerto e espetáculos em estádios. Mas uma coisa é um trabalho feito para a tela pequena. Outra é o produzido para a telas do cinema. Quando um filme é feito diretamente para ser visto nas condições ideais, ele sempre perde muito de sua força ao ser apresentado em tela menor. Mas a exibição em local imperfeito não chega a impedir totalmente que determinados filmes sejam apreciados e entendidos. É o caso deste Descanse em paz, que pelo menos sai do limbo criado pelo desinteresse de distribuidores e exibidores.
O filme tem como ponto de partida a crise enfrentada pela economia argentina nas últimas décadas, algo presente por detalhe revelado quando um pai está comprando um presente para a filha aniversariante e também um pouco antes, com a visão da pobreza exposta nas ruas. O atentado à Associação Mutual Israelita, ocorrido em 18 de julho de 1994, que causou 85 mortos, inclusive de pessoas que estavam na rua, foi um dos tantos exemplos de antissemitismo ocorridos nos últimos anos, só superado pelo de 7 de outubro passado, que deflagrou uma ação de semelhante brutalidade, esperada e provocada, aliás, pelos organizadores da primeira agressão. O atentado de 1994 já deu origem, por sinal, a um outro filme, um documentário de longa-metragem, realizado por vários diretores, que aqui ganhou o título de Memória de quem fica, exibido em Porto Alegre por uma das salas da Cinemateca Paulo Amorim. O filme de Borensztein reconstitui habilmente o atentado, mas não está interessado em procurar causas e autores daquele crime. O acontecimento é utilizado como um elemento exterior - outro, além da crise - que propicia ao protagonista a oportunidade de criar uma nova personalidade e assim salvar a família das consequências do problema que enfrenta.
A nova vida do protagonista representa não apenas sua transformação de empregador a empregado. É uma ligação com o personagem central de Koblic, um integrante da força aérea argentina que havia participado, por questões hierárquicas, dos chamados voos da morte, quando opositores da ditadura eram drogados e jogados ao mar. Agora, no entanto, a questão do passado não é resolvida por um gesto de dignidade e coragem, que até punia no outro filme os agentes do mal. A questão da família, representada pelo desenho na parede e pela presença da cachorra que "adota" o personagem principal, não é resolvida por uma solução fácil. O impasse continua após o final, depois da cena em que a festa é invadida por um fantasma, um dos bons momentos do filme. E fica bem claro, também, que o cineasta está empenhado em mostrar que rituais festivos não são suficientes para esconder ou terminar com as crises. Em Koblic, o cineasta fazia uma clara referência ao western. Agora ele volta a mostrar seu interesse por aquele gênero. Mas o momento final do filme parece ser o início de um novo ciclo, a chegada de uma paz que não será usufruída por todos.
 

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