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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 27 de Março de 2024 às 18:49

Inverno

Cena do filme Ervas Secas, do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan

Cena do filme Ervas Secas, do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan

Divulgação/JC
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Hélio Nascimento
O cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é geralmente visto como um dos maiores da atualidade, e não falta quem o aponte como maior de todos, pela profundidade de seus relatos, pela meticulosidade com que recria a realidade, pela maneira como dirige seus intérpretes, pela forma utilizada na composição de cada plano. Habitual frequentador de festivais - venceu o de Cannes em 2014 com o filme Sono de inverno - ele tem recebido láureas em outras mostras internacionais. Não é surpresa, no entanto, que o realizador seja pouco conhecido no Brasil onde vários filmes importantes são exibidos em poucas salas e em sessões de número reduzido. É caso deste notável Ervas secas, uma obra-prima, que, num verdadeiro milagre, chegou ao circuito exibidor, embora com as restrições citadas. Trata-se, é verdade, de um filme que exige atenção especial e certamente deveria interessar a todos que, de uma forma ou outra, veem no cinema um meio de expressão ou uma maneira de se aproximar dos temas fundamentais para a compreensão das complexidades da natureza humana. Ceylan certamente é um dos poucos que ainda hoje se afastam das superficialidades e das concessões. Pertence ao grupo de resistentes. E até na utilização de metragens longas ele procura ressaltar que o tempo prolongado, quando utilizado com o intuito de criar personagens que não são apenas figuras numa tela e sim criaturas verdadeiras, é fundamental para o que pretende.
O cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é geralmente visto como um dos maiores da atualidade, e não falta quem o aponte como maior de todos, pela profundidade de seus relatos, pela meticulosidade com que recria a realidade, pela maneira como dirige seus intérpretes, pela forma utilizada na composição de cada plano. Habitual frequentador de festivais - venceu o de Cannes em 2014 com o filme Sono de inverno - ele tem recebido láureas em outras mostras internacionais. Não é surpresa, no entanto, que o realizador seja pouco conhecido no Brasil onde vários filmes importantes são exibidos em poucas salas e em sessões de número reduzido. É caso deste notável Ervas secas, uma obra-prima, que, num verdadeiro milagre, chegou ao circuito exibidor, embora com as restrições citadas. Trata-se, é verdade, de um filme que exige atenção especial e certamente deveria interessar a todos que, de uma forma ou outra, veem no cinema um meio de expressão ou uma maneira de se aproximar dos temas fundamentais para a compreensão das complexidades da natureza humana. Ceylan certamente é um dos poucos que ainda hoje se afastam das superficialidades e das concessões. Pertence ao grupo de resistentes. E até na utilização de metragens longas ele procura ressaltar que o tempo prolongado, quando utilizado com o intuito de criar personagens que não são apenas figuras numa tela e sim criaturas verdadeiras, é fundamental para o que pretende.
Ervas secas é um eloquente exemplo de como é possível narrar uma história, criar personagens e explicitar o essencial em cada situação filmada, utilizando a imagem como agente principal. No plano que abre a narrativa, o gelo domina a paisagem e o ser humano é apenas um simples ponto na tela ampla do cinema. Aos poucos, no entanto, a figura humana cresce visualmente, mas o cenário permanecerá, em quase todo o filme, como elemento dominante, figura que expressa simbolicamente a inexistência de alguma forma de apoio, acentua as dificuldades de relacionamento e propicia o surgimento de ameaças vindas dos próprios indivíduos, movidos por agressividades geradas por frustrações. O diretor utiliza em várias cenas o movimento dos intérpretes, que, surgindo por trás das câmeras, se assemelham a sombras ameaçadoras que parecem avançar sobre outros personagens. É algo que se assemelha ao ataque de fúria que acomete o professor quando verbalmente agride os alunos, ou então quando expressa sua frustração ao utilizar como se fosse uma arma um simples instrumento de trabalho. Em outros momentos, como encontro entre o protagonista - precedido por uma surpresa que mostra o que sempre é escondido do espectador - há uma delicadeza praticamente ausente no restante do tempo, algo que acentua intenções e gestos até então reprimidos.
A chegada do verão, com a citação do quadro O viajante sobre o mar de névoa, de Gaspar David Friedrich - e não somente pela quase recriação da obra num plano - não chega a ser uma conclusão otimista. O cineasta utiliza também, no final e em outros momentos, uma versão para piano de uma das mais belas árias de Verdi, aquela do último ato de La traviata, quando a protagonista expressa sua dor e solidão, na parte final de sua vida. Excluindo as palavras e utilizando apenas o tema musical, o cineasta procura atingir a essência daquele momento. No filme de Ceylan é possível contemplar belas paisagens, mas parece impossível o afastamento da planície repleta de obstáculos e enigmas não solucionados, como o olhar indecifrável da aluna causadora do drama enfrentado pelo personagem principal. E a colega, que no corpo mutilado expressa um dos horrores de nosso tempo, simboliza uma busca de uma solução, que encontra no outro a resistência de quem não mais acredita em soluções. Ceylan aponta, no trecho que registra o áspero diálogo entre os dois, além das palavras, o combate entre duas linhas de pensamento. E realça a visão de uma civilização ferida pela irracionalidade e a violência. Eis um filme incomum, capaz de, através de personagens, colocar na tela impasses, sofrimentos e resistências diante de agressões vindas tanto da engrenagem exterior como de impulsos incontroláveis, estes também criadores daquela.
 

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