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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 21 de Março de 2024 às 19:36

Humanismo resistente

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Hélio Nascimento
Ao contrário dos personagens de Zona de interesse, o filme de Jonathan Glazer, que vivem ao lado do crime maior e dele procuram não tomar conhecimento - atitude que simboliza a indiferença perante à barbárie -, o protagonista de Uma vida - A história de Nicholas Winton, dirigido por James Hawes, é daqueles integrados aos grupos formados pelos que, de uma forma ou outra, procuram agir em nome dos resistentes à qualquer forma de opressão, injustiça ou, no caso, do maior assalto até hoje praticado pelo fanatismo e o irracionalismo. O personagem é real e viveu entre os anos de 1909 e 2015.
Ao contrário dos personagens de Zona de interesse, o filme de Jonathan Glazer, que vivem ao lado do crime maior e dele procuram não tomar conhecimento - atitude que simboliza a indiferença perante à barbárie -, o protagonista de Uma vida - A história de Nicholas Winton, dirigido por James Hawes, é daqueles integrados aos grupos formados pelos que, de uma forma ou outra, procuram agir em nome dos resistentes à qualquer forma de opressão, injustiça ou, no caso, do maior assalto até hoje praticado pelo fanatismo e o irracionalismo. O personagem é real e viveu entre os anos de 1909 e 2015.
Winton era corretor da bolsa de Londres na época em que o nazismo se preparava para dar início a sua trajetória visando à conquista da Europa. Sua história permaneceu desconhecida durante cinco décadas, antes de um programa popular britânico revelar a um público amplo a sua história. O homem vivido no filme por Anthony Hopkins foi o chefe de uma operação destinada a retirar da então Tchecoslováquia o maior número possível de crianças, depois da crise dos Sudetos, quando França e Inglaterra se curvaram diante das ameaças de Adolf Hitler.
A operação, que contou com a participação de muitos integrantes conseguiu salvar 669 crianças, que passaram a viver na Inglaterra, algumas temporariamente adotadas, outras obtendo a cidadania britânica. Entre as últimas, estava o futuro cineasta Karel Reisz (1916-2002), que foi participante do movimento conhecido como Free Cinema, uma espécie de nouvelle-vague inglesa. Reisz foi o realizador, entre outros, de A mulher do tenente francês, Isadora e Tudo começou num sábado.
Winton, que ao ter sua história revelada foi chamado pela imprensa de Londres de "o Schindler inglês" - o industrial alemão focalizado por Steven Spielberg em um de seus filmes mais famosos -, não salvou apenas a vida de centenas de crianças. Ele foi responsável por milhares de outras vidas que depois floresceram, graças a seu empenho humanista e também por um infinito número de seres humanos que não existiriam sem os seus esforços.
Este admirador de Mozart, como o filme registra no início e na sequência final, é um símbolo do que poderia ser chamado de defensor dos verdadeiros valores humanos. Não foi um homem de discursos e muito menos um exemplo dos que se aproveitam de distorções e injustiças para exercerem o ritual da autopromoção. Permaneceu em silêncio durante quase toda a vida, mas sofrendo ao contemplar as futilidades e as platitudes, elementos dominantes nos meios de comunicação, como o filme registra numa cena. E quando ele comparece a um desses programas de auditório, o protagonista - por sua atitude e pela pergunta que faz - evidencia seu afastamento de certo cotidiano, isso antes de a própria televisão de certa forma colocar as platitudes longe das câmeras e prestar, então, um inestimável serviço.
O diretor Hawes vem da TV, onde fez documentários. Sua estreia no cinema, revela alguma dificuldade no manejo da narração. Mas acerta quando Hopkins mergulha na piscina, como se estivesse mergulhando no passado. E nas cenas finais, até por se tratar de reconstituir acontecimentos reais, ele consegue um nível de emoção de inegável força.
O mérito maior se concentra nessa recuperação através do cinema, essa arte universal, de uma personalidade que não pode ser esquecida, por representar algo que se coloca no sentido contrário dos que procuram sepultar um passado. Não se trata, aqui, de exaltar discursos e nem de aplaudir contempladores imóveis de distorções, mas, sim, de praticar a arte de exaltação de uma existência voltada para a defesa da vida humana.
Em termos cinematográficos, o filme se situa nos limites de uma realização feita de forma acessível a qualquer plateia. E algumas cenas, como as dos momentos finais da narrativa, cumprem a missão de divulgar ações exemplares e merecedoras de todas as reverências. O filme de Hawes tem o mérito de lembrar uma vida que, sem procurar ostentação, tentou impedir uma ação ainda maior de forças irracionais, que ainda ressurgem e atuam em nosso tempo. Continuam ativas e contemporâneas.
 

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