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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 07 de Março de 2024 às 17:20

O ritual cotidiano

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Hélio Nascimento
A admiração que Wim Wenders, nascido em 1945, tem por Yasujiro Ozu (1903-1963) é expressa de forma eloquente em todo o tempo de projeção de Dias perfeitos, trabalho que recoloca o cineasta alemão na primeira linha dos que ainda resistem diante da onda avassaladora da grandiosidade vazia que atualmente domina telas em diversos tamanhos. O curioso é que, num site dedicado ao cinema, é utilizado o advérbio 'infelizmente' para informar que o filme não está disponível no streaming, como se fosse um castigo ir às salas de exibição para ver um trabalho nas condições corretas. Sinal dos tempos, sem dúvida. Mesmo que o sistema exaltado por alguns preste um serviço importante para a divulgação de obras significativas desprezadas por exibidores, não é admissível que um meio limitado mereça tanta atenção. Mesmo empresas dedicadas a tal forma de exibição de filmes reconhecem a importância das salas. Uma prova disso é o fato de a Netflix ter utilizado a soma de 70 milhões de dólares para reformar o Egyptian Theater, um dos mais antigos cinemas de Los Angeles, agora dotado de todos os meios de projeção e emprego de som. E aqui em Porto Alegre, os responsáveis pela Cinemateca Capitólio estão divulgando imagens de filas na calçada, algo que não expressa saudosismo e sim demonstra o interesse mantido por ver filmes no lugar certo. E o filme de Wenders, uma espécie de homenagem a um mestre, é também um hino ao cinema, na medida em que exerce o ritual indispensável de acompanhar a realidade que cerca um personagem e fixar em imagens um comportamento presente que, de certa forma, revela a vitória diante de um passado derrotado pela força de uma resistência vitoriosa diante de elementos utilizados para diminuir a importância do ser humano.
A admiração que Wim Wenders, nascido em 1945, tem por Yasujiro Ozu (1903-1963) é expressa de forma eloquente em todo o tempo de projeção de Dias perfeitos, trabalho que recoloca o cineasta alemão na primeira linha dos que ainda resistem diante da onda avassaladora da grandiosidade vazia que atualmente domina telas em diversos tamanhos. O curioso é que, num site dedicado ao cinema, é utilizado o advérbio 'infelizmente' para informar que o filme não está disponível no streaming, como se fosse um castigo ir às salas de exibição para ver um trabalho nas condições corretas. Sinal dos tempos, sem dúvida. Mesmo que o sistema exaltado por alguns preste um serviço importante para a divulgação de obras significativas desprezadas por exibidores, não é admissível que um meio limitado mereça tanta atenção. Mesmo empresas dedicadas a tal forma de exibição de filmes reconhecem a importância das salas. Uma prova disso é o fato de a Netflix ter utilizado a soma de 70 milhões de dólares para reformar o Egyptian Theater, um dos mais antigos cinemas de Los Angeles, agora dotado de todos os meios de projeção e emprego de som. E aqui em Porto Alegre, os responsáveis pela Cinemateca Capitólio estão divulgando imagens de filas na calçada, algo que não expressa saudosismo e sim demonstra o interesse mantido por ver filmes no lugar certo. E o filme de Wenders, uma espécie de homenagem a um mestre, é também um hino ao cinema, na medida em que exerce o ritual indispensável de acompanhar a realidade que cerca um personagem e fixar em imagens um comportamento presente que, de certa forma, revela a vitória diante de um passado derrotado pela força de uma resistência vitoriosa diante de elementos utilizados para diminuir a importância do ser humano.
Um filme de Ozu, Viagem a Tóquio, realizado em 1953, é frequentador de listas dos maiores de todos os tempos, e não faltam aqueles que o apontam como o maior da história. Em Wenders, o protagonista já vive na cidade, trabalhando na higienização de banheiros públicos. O realizador, o mesmo de obras como Alice nas cidades, O medo do goleiro na hora do pênalti, Com o passar do tempo, O amigo americano e Paris Texas, sempre encontrou uma forma nova de filmar as cidades onde realiza seus filmes. Agora não é diferente. Mas seu novo trabalho não se limita a ser um documentário sobre a capital japonesa, pois também, de forma ampla e meticulosa, recria diante das câmeras uma vida humana, de forma raramente vista antes. Talvez o cineasta também tenha pensado em Umberto D, uma obra-prima de Vittorio de Sica. E para os que conhecem Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, o plano final do rosto de Victor Sjostrom, transfigurado pela visão de um instante de felicidade, é uma referência que surge na contemplação da imagem derradeira de Dias perfeitos. Num filme como este, é importante destacar a importância da escolha de cada plano. Assim, o cotidiano repetido sempre é filmado por um ângulo diferente. Como se o cineasta estivesse dizendo que esse ritual é mais rico do que se poderia pensar através de um olhar desprovido de imaginação e calor humano.
Escrito pelo próprio Wenders, em parceria com Takuma Takasaki, o filme deve muito ao trabalho do fotógrafo Franz Lustig e ao ator Kosi Yakusho. Este último, assim como o diretor, parece ter compreendido corretamente a afirmação de George Cukor de que, em cinema, o ator não deve interpretar personagens e sim recriá-los a partir da atitude natural e, como diria outro diretor admirado pelo cineasta alemão, Nicholas Ray, valorizando a melodia do olhar. Os leitores de cartilhas doutrinárias certamente farão restrição ao filme. Mas a verdade é que as imagens agora vistas atingem um ponto essencial. O automóvel, a presença da irmã, a inesperada presença da sobrinha, o casal desfeito, a referência a um pai tirano, tudo contribui para a explicitação de um passado que não necessita de cenas para ser revivido. É como se o protagonista compartilhasse com o espectador experiências e sofrimentos superados pela ação destinada a encontrar o que contemplar e corrigir num mundo carente de um verdadeiro convívio entre seres humanos.

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