Porto Alegre,

Anuncie no JC
Assine agora
Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 29 de Fevereiro de 2024 às 22:04

O mal maior

Compartilhe:
Hélio Nascimento
Como era esperado, o filme Zona de interesse, de Jonathan Glazer, vem obtendo a repercussão que merece em suas exibições nas salas de cinema. É ótimo que assim seja, pois o seu extraordinário e incomum emprego do som e a valorização de detalhes nas imagens só podem mesmo ser valorizados em ambiente onde tais elementos não sofram com a omissão de detalhes. Além disso, a faixa sonora não é utilizada através de exageros comuns na vulgaridade hoje tão utilizada por cineastas comandados pela mediocridade. Ao contrário, a sonoridade exerce papel fundamental, mas nunca é utilizada para forçar a dramaticidade de certas situações. O sinal sonoro tem origem na realidade. Além disso, não necessitamos nem de sustos e de nem de monstros. O cotidiano é acompanhado por um horror que não se mostra, mas acompanha todos os que se recusam a conhecer seu verdadeiro cenário. O livro de Martin Amis, editado no Brasil pela Companhia das Letras, não tem aqui uma versão cinematográfica, mas sim uma variação em torno de seu tema principal. O escritor fez uma grande pesquisa em arquivos e em outras obras sobre o nazismo e um trecho do livro transcreve ou adapta um ofício de uma empresa química dirigido ao chefe do campo de extermínio. São poucas linhas e revelam a essência do regime. Eis o ofício na tradução de Donaldson Garschagen: "O transporte de 150 mulheres chegou em boas condições. Não obstante, foi-nos impossível obter resultados conclusivos, pois todas morreram durante a série de experimentos. Gostaríamos que o senhor nos enviasse, por favor, outro grupo de mulheres, na mesma quantidade e no mesmo preço".
Como era esperado, o filme Zona de interesse, de Jonathan Glazer, vem obtendo a repercussão que merece em suas exibições nas salas de cinema. É ótimo que assim seja, pois o seu extraordinário e incomum emprego do som e a valorização de detalhes nas imagens só podem mesmo ser valorizados em ambiente onde tais elementos não sofram com a omissão de detalhes. Além disso, a faixa sonora não é utilizada através de exageros comuns na vulgaridade hoje tão utilizada por cineastas comandados pela mediocridade. Ao contrário, a sonoridade exerce papel fundamental, mas nunca é utilizada para forçar a dramaticidade de certas situações. O sinal sonoro tem origem na realidade. Além disso, não necessitamos nem de sustos e de nem de monstros. O cotidiano é acompanhado por um horror que não se mostra, mas acompanha todos os que se recusam a conhecer seu verdadeiro cenário. O livro de Martin Amis, editado no Brasil pela Companhia das Letras, não tem aqui uma versão cinematográfica, mas sim uma variação em torno de seu tema principal. O escritor fez uma grande pesquisa em arquivos e em outras obras sobre o nazismo e um trecho do livro transcreve ou adapta um ofício de uma empresa química dirigido ao chefe do campo de extermínio. São poucas linhas e revelam a essência do regime. Eis o ofício na tradução de Donaldson Garschagen: "O transporte de 150 mulheres chegou em boas condições. Não obstante, foi-nos impossível obter resultados conclusivos, pois todas morreram durante a série de experimentos. Gostaríamos que o senhor nos enviasse, por favor, outro grupo de mulheres, na mesma quantidade e no mesmo preço".
Terminada a guerra iniciada em 1939, os aliados descobriram algo quase inacreditável nos campos chamados de 'concentração", na verdade máquinas de extermínio, e tudo foi então filmado, a fim de que ficasse registrado um horror nunca antes visto. George Stevens, que depois iria dirigir obras-primas como Um lugar ao sol e Shane, atuou como chefe de uma equipe americana que, no lado ocidental, foi a primeira a registrar imagens do inferno moderno, milhares de cadáveres e verdadeiros esqueletos ainda com vida. O material filmado foi depois editado sob a supervisão de Alfred Hitchcock. Stevens, famoso na época por diversas comédias, jamais voltou ao gênero. Hitchcock, depois de ver as imagens sofreu desconforto, mas voltou ao trabalho e hoje A memória dos campos é um título de sua filmografia. E como os próprios nazistas filmaram suas atrocidades, as provas foram imensas e definitivas. Em 1956, Alain Resnais realizou, tendo por base um texto de Jean Cayrol, o mais impressionante de seus curtas-metragens: Noite e nevoeiro. O filme continha imagens nunca antes vistas pelo público, pois havia receio que sua divulgação pudesse dar origem a agressividades contra o povo alemão. Mas foi o governo da Alemanha Ocidental que, depois de proibi-lo, o liberou e tornou obrigatória sua exibição nos cinemas, após o vandalismo praticado, na época, em cemitérios judeus. O Clube de Cinema de Porto Alegre exibiu o filme no Auditório da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, numa sessão na qual a obra de Resnais foi apresentada por Carlos Scliar. Depois, a cópia foi cedida à televisão local, quando causou grande repercussão. Três anos mais tarde, Resnais iria realizar Hiroshima, meu amor, sobre roteiro de Margarite Duras, no qual voltaria ao tema da violência extrema, desta vez resultante do emprego da mais avançada e letal arma já criada.
Muitos documentários e muita ficção baseada em fatos reais foram realizados sobre o tema. É imensa a literatura criada a partir da documentação sobre o que foi o nazismo, essa transformação da barbárie em lei, em política de estado. A transformação da monstruosidade em norma legal. É, portanto, surpreendente que ainda haja pessoas com acesso a meios de comunicação que incentivam boicote a lojas de pessoas por elas absurdamente ligadas a uma política de revide desproporcional a uma agressão marcada por atos de barbárie. Tal apelo, que acabou dando munição a desvairados, e agora parece esquecido, é que está na origem de manifestações superficiais e preconceituosas que estamos presenciando. 

Notícias relacionadas