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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 08 de Fevereiro de 2024 às 18:40

Grotesco exaltado

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Hélio Nascimento
Aqueles que não apreciam as propostas e o estilo do grego Yorgos Lanthimos, o diretor de Pobres criaturas, têm farto material para criticar e rejeitar seu filme mais recente. Imagens distorcidas, cenários quase sempre deformados, personagens caricaturais, cenas cujo objetivo parece ser chocar espectadores pudicos e conservadores, uma visão superficial e quase sempre ridícula da natureza humana, tudo forma um conjunto que, de certa forma, comprova uma frase do roteiro de um dos filmes de Blake Edwards: milhares de anos de civilização para chegar a tal ponto. O filme, que ostenta um Leão de Ouro conquistado no Festival de Veneza do ano passado e também é candidato ao Oscar - duas premiações que, depois de A forma da água, estariam irremediavelmente comprometidas se a culpa de certas aberrações não fosse atribuída à escolha dos jurados - resume em seu desenrolar tudo aquilo que deveria ser rejeitado, em nome do realismo e da nobreza narrativa, atributos maiores dos épicos e do teatro da terra onde nasceu o cineasta. Há os que apreciam tal tipo de cinema, bastando para comprovar tal afirmação o prestígio que desfruta entre muitos outro cultor de tal gênero, Wes Anderson. Porém, o novo filme de Lanthimos não deve dar origem somente a aversões e críticas pesadas. Com suas imagens e situações quase sempre grotescas, ele procura resumir a trajetória humana - e, mesmo concluindo a ação num jardim de deformidades, há alguns elementos que merecem, no mínimo, alguma atenção.
Aqueles que não apreciam as propostas e o estilo do grego Yorgos Lanthimos, o diretor de Pobres criaturas, têm farto material para criticar e rejeitar seu filme mais recente. Imagens distorcidas, cenários quase sempre deformados, personagens caricaturais, cenas cujo objetivo parece ser chocar espectadores pudicos e conservadores, uma visão superficial e quase sempre ridícula da natureza humana, tudo forma um conjunto que, de certa forma, comprova uma frase do roteiro de um dos filmes de Blake Edwards: milhares de anos de civilização para chegar a tal ponto. O filme, que ostenta um Leão de Ouro conquistado no Festival de Veneza do ano passado e também é candidato ao Oscar - duas premiações que, depois de A forma da água, estariam irremediavelmente comprometidas se a culpa de certas aberrações não fosse atribuída à escolha dos jurados - resume em seu desenrolar tudo aquilo que deveria ser rejeitado, em nome do realismo e da nobreza narrativa, atributos maiores dos épicos e do teatro da terra onde nasceu o cineasta. Há os que apreciam tal tipo de cinema, bastando para comprovar tal afirmação o prestígio que desfruta entre muitos outro cultor de tal gênero, Wes Anderson. Porém, o novo filme de Lanthimos não deve dar origem somente a aversões e críticas pesadas. Com suas imagens e situações quase sempre grotescas, ele procura resumir a trajetória humana - e, mesmo concluindo a ação num jardim de deformidades, há alguns elementos que merecem, no mínimo, alguma atenção.
O filme tem por base um livro de Alasdair Gray, adaptado ao cinema pelo roteirista Tony McNamara. Mesmo que o diretor tenha dado a palavra final, a esses dois devem ser creditados elementos que conferem ao filme algum interesse. O livro e agora o filme são ostensivamente inspirados em Frankenstein ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley, publicado em 1816, certamente a mais famosa obra do gênero. O livro fez parte de uma bela edição da Ediouro, publicada no Brasil em 2004, com tradução de Adriana Lisboa e integrada por mais dois clássicos do gênero: Drácula, de Bram Stoker, e O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, todos apresentados por Stephen King. O personagem ficou famoso, principalmente, através do cinema por vários filmes, principalmente o primeiro deles, realizado em 1931 por James Whale. Muitos foram os filmes inspirados por Shelley e Whale, e certamente ninguém negará que um dos melhores foi a sátira realizada por Mel Brooks, em 1974: O jovem Frankenstein. Esta sátira, uma das mais brilhantes de todo cinema, certamente foi vista por Lanthimos, que, no entanto, fica longe de tal modelo, até porque ele não possui o senso de humor de Brooks. Ele tenta impor a comicidade em algumas passagens, mas sua criatividade não tem a força necessária para ultrapassar certas grosserias com as necessidades e paixões humanas.
Num filme que tem a pretensão de acompanhar o desenvolvimento humano, é correto dar à sexualidade o papel de ser a primeira das forças naturais a ser reprimida, depois de ser descoberta pela protagonista, uma criatura existente graças a mais um cientista maluco, essa figura tão apreciada pelo cinema mais superficial. Desta vez, o personagem tem o rosto marcado por terríveis experiências do pai, um antecessor do doutor Mengele, que passou para o filho o interesse por manipulações com seres vivos. Essa crueldade paterna, presente no rosto do filho e na impotência por ele referida, é para Lanthimos outro exemplo das ações do processo civilizatório. Essencialmente, em vez de ser uma sátira ou uma comédia, o filme é, na verdade, o resultado de uma visão cruel, representada na cena final, quando o processo continua e um ser humano é transformado num animal. Para Lanthimos o mundo é esse: uma mistura de ridículo e crueldade. Talvez ele não esteja errado. Mas há uma grande distância entre os cineastas que procuram a causa do quadro focalizado e aqueles que tentam interpretá-lo apenas através de uma colocação em cena de seus aspectos repulsivos. E não deixa de ser revelador que uma época seja criticada de tal forma em filme recebido com prêmios e louvações.
 

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