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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 31 de Janeiro de 2024 às 18:46

Sangue na neve

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Hélio Nascimento
O filme de tribunal tem inúmeros e antológicos momentos na história do cinema. Alguns transformaram quase todo o tempo de projeção num julgamento, outros marcam presença na lista antológica por momentos que, uma vez vistos, dificilmente são esquecidos, como o gesto de quebrar uma peça essencial pelo promotor vivido por Raymond Burr em Um lugar ao sol, a obra-prima de George Stevens realizada em 1951. O austríaco Otto Preminger (1906 - 1986), que era um dos ídolos dos Cahiers du Cinéma, na fase da capa amarela, deixou sua contribuição ao gênero com Anatomia de um crime (Anatomy of a Murder), por ele dirigido em 1959, filme que tinha música original escrita pelo grande Duke Ellington, que aparecia à frente de sua orquestra numa sequência da obra.
O filme de tribunal tem inúmeros e antológicos momentos na história do cinema. Alguns transformaram quase todo o tempo de projeção num julgamento, outros marcam presença na lista antológica por momentos que, uma vez vistos, dificilmente são esquecidos, como o gesto de quebrar uma peça essencial pelo promotor vivido por Raymond Burr em Um lugar ao sol, a obra-prima de George Stevens realizada em 1951. O austríaco Otto Preminger (1906 - 1986), que era um dos ídolos dos Cahiers du Cinéma, na fase da capa amarela, deixou sua contribuição ao gênero com Anatomia de um crime (Anatomy of a Murder), por ele dirigido em 1959, filme que tinha música original escrita pelo grande Duke Ellington, que aparecia à frente de sua orquestra numa sequência da obra.
Justine Triet, a realizadora de Anatomia de uma queda (Anatomie d'une chute), disse que se inspirou em vários exemplos de filme de tribunal, antes de realizar o seu, que recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes do ano passado. Até pelo título por ela escolhido é possível afirmar que, entre os modelos apreciados, está o filme de Preminger, que tem como protagonista um advogado empenhado em conseguir a absolvição de um militar acusado de assassinar o provável amante de sua mulher. Outra curiosidade a ser ressaltada é que a diretora do filme francês é casada com um cineasta, Arthur Harari, que escreveu o roteiro junto com ela. Harari é o diretor de Onoda, 10 mil noites na selva, sobre um soldado japonês que permaneceu escondido por não acreditar na derrota japonesa na segunda Guerra Mundial. O fato interessante aqui é que em Anatomia de uma Queda os protagonistas formam um casal de escritores, ela uma autora famosa, ele carregando a frustração de não conseguir concluir seus livros.
O filme tem uma sequência, segundo a realizadora filmada no período de dois dias, que impressiona pela realidade alcançada e por uma dramaticidade digna de Ingmar Bergman. Este trecho, que deve muito aos intérpretes, principalmente a esta atriz admirável que é a alemã Sandra Hüller, traz para a tela temas essenciais da obra, entre eles o da agressividade contida e que explode como um artefato destinado a transformar em fragmentos uma relação. É nesta cena que pode ser vista a crise maior, aquela gerada pela fuga do sofrimento gerado por universo onde é imenso o medo de um fracasso e o grande o temor da solidão. Ela, depois de viver um tempo na Inglaterra, fora de seu país de origem, agora mora na França, tem dificuldades com o francês e se expressa em inglês. A cena da discussão é toda em inglês, algo que acentua o afastamento do casal de suas raízes. São como pessoas sem ligações sólidas, em combate com seus próprios erros e de repente confrontados com o rompimento. Os intérpretes e as palavras reinam nesta cena, mas o rosto, outra influência de Bergman, cineasta que acreditava ser o rosto humano a grande arma do cinema para revelar a verdade da alma humana, como está expresso no final de Morangos silvestres, realizado em 1957, é o detalhe que revela a força do cinema e do primeiro plano.
E há também o filho, cujo afeto é desviado para o cão-guia. Ele se chama Daniel, nome bíblico e outra aproximação a Bergman, que em O silêncio, realizado em 1962, deu o nome de João, o Quarto Evangelista, a outro menino, também testemunha de uma crise. Nesse ponto talvez seja interessante mencionar que tal personagem, por vezes, parece ter um poder de expressão e raciocínio superiores aos dos adultos. É dele a conclusão de que o pai, ao mencionar o inevitável futuro do cão, está falando de si próprio, uma constatação decisiva no julgamento.
A contribuição de Justine Triet ao gênero do filme de tribunal não se limita à crítica ao narcisismo do promotor, por exemplo, e nem permanece presa a uma procura de uma solução definitiva. Ela e seu marido e roteirista estão mais interessados em descrever as causas maiores de uma crise. A neve pode ser o gelo de um universo desumanizado, onde o ruído é maior do que o som do piano do menino, uma tentativa de sobrevivência diante da agressividade, do sofrimento e do caos.
 

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