Porto Alegre,

Anuncie no JC
Jornal do Comércio. O jornal da economia e negócios do RS. 90 anos.
Assine agora
Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 04 de Janeiro de 2024 às 19:02

Fantasia e repressão

Virgens suicidas, de Sofia Coppola

Virgens suicidas, de Sofia Coppola

DIVULGAÇÃO/JC
Compartilhe:
Hélio Nascimento
Desde que realizou seu primeiro longa-metragem, Virgens suicidas, em 1999, Sofia Coppola tem visto a sociedade pelos olhos de personagens femininos, até mesmo quando refilmou o roteiro de O estranho que nós amamos, realizado por Don Siegel, um dos mestres de Clint Eastwood, em 1971. Assim foi também em Encontros e desencontros, dirigido em 2003, e em Maria Antonieta, três anos mais tarde. Em 2017 teve seu primeiro encontro cinematográfico com a ópera, quando dirigiu La traviata, versão cinematográfica da obra de Giuseppe Verdi, filme inédito no Brasil. Seu novo filme, Priscilla, é mais um exemplo de coerência. Mais do que isso, seu novo trabalho é uma prova de que a realizadora é definitivamente uma autora. O filme novo é também outra demonstração de que a cineasta pertence ao grupo que tem mantido vivo o cinema de qualidade. Exibido na mostra competitiva do Festival de Veneza do ano passado, o filme terminou com o prêmio de melhor atriz, conferido a Cailee Spaeny, que vive o papel da esposa de Elvis Presley. Baseado em um livro autobiográfico, o roteiro, escrito por Coppola e Sandra Hermon, confere relevância a dois temas principais: os sonhos de uma adolescente e a verdade que aos poucos vai se impondo. De certa forma, eis na tela a destruição de um mito, a demolição da estátua do príncipe encantado, o fim de um sonho, a implosão da fantasia da felicidade perfeita. Ou então, se a preferência for uma interpretação que perceba nas imagens e situações a demolição de inverdades impostas ao ser humano, o princípio de uma jornada no rumo da libertação.
Desde que realizou seu primeiro longa-metragem, Virgens suicidas, em 1999, Sofia Coppola tem visto a sociedade pelos olhos de personagens femininos, até mesmo quando refilmou o roteiro de O estranho que nós amamos, realizado por Don Siegel, um dos mestres de Clint Eastwood, em 1971. Assim foi também em Encontros e desencontros, dirigido em 2003, e em Maria Antonieta, três anos mais tarde. Em 2017 teve seu primeiro encontro cinematográfico com a ópera, quando dirigiu La traviata, versão cinematográfica da obra de Giuseppe Verdi, filme inédito no Brasil. Seu novo filme, Priscilla, é mais um exemplo de coerência. Mais do que isso, seu novo trabalho é uma prova de que a realizadora é definitivamente uma autora. O filme novo é também outra demonstração de que a cineasta pertence ao grupo que tem mantido vivo o cinema de qualidade. Exibido na mostra competitiva do Festival de Veneza do ano passado, o filme terminou com o prêmio de melhor atriz, conferido a Cailee Spaeny, que vive o papel da esposa de Elvis Presley. Baseado em um livro autobiográfico, o roteiro, escrito por Coppola e Sandra Hermon, confere relevância a dois temas principais: os sonhos de uma adolescente e a verdade que aos poucos vai se impondo. De certa forma, eis na tela a destruição de um mito, a demolição da estátua do príncipe encantado, o fim de um sonho, a implosão da fantasia da felicidade perfeita. Ou então, se a preferência for uma interpretação que perceba nas imagens e situações a demolição de inverdades impostas ao ser humano, o princípio de uma jornada no rumo da libertação.
Antes de uma entrevista concedida a Nicole Flattery, publicada na edição de dezembro passado da revista Sight and Sound, Sofia Coppola disse que ficou sabendo pelo seu produtor que a jornalista tinha antes escrito sobre a poeta e romancista dinamarquesa Tove Ditlevsen (1917-1976), autora de uma trilogia autobiográfica integrada por Infância, Juventude e Dependência. Sofia, segundo depoimento da jornalista, disse que havia ficado em choque com a leitura da obra, que narra uma vida difícil e que terminou em suicídio pelo abuso de drogas. A obra de Ditlevsen, tida como uma das maiores romancistas da Dinamarca, muito deve ter influenciado a diretora americana, e alguns sinais podem ser anotados. Seu filme é baseado em outra autobiografia e focaliza, além do uso de drogas, uma vida de prisioneira, dominada por um tirano que controla sua vida nos mínimos detalhes, desde o comportamento social até a obrigação de estudar num colégio de freiras, passando pela escolha das roupas e pelo estilo do penteado. Aliás, estes últimos detalhes fazem com que se faça uma ligação com Vertigo, um dos grandes filmes de Hitchcock e no qual James Stewart tenta reconstituir o passado através de uma alteração da figura de Kim Novak.
Esta tentativa de reconstruir o pretérito tem como raiz a severidade imposta ao dominador quando jovem, como a exaltação da virgindade, o comportamento familiar e a aceitação do pai severo, que, em algumas passagens do filme, substitui a figura do cantor. A diretora sabe explorar com perfeição a diferença de idades através da altura de seus intérpretes. Em alguns momentos, quando fica bem clara a intenção da realizadora, a diferença entre dominante e dominadora adquire uma poderosa força simbólica. O destino de todo esse relacionamento, marcada pela agressividade, simbolizada nos exercícios de tiro e na queima dos livros (uma referência ao nazismo), só poderia ser a ruína. Uma outra aproximação é feita com a utilização de um filme de John Huston, no qual aparece em destaque a figura de Humphrey Bogart, que tinha 44 anos quando casou com Lauren Bacall, então com 19. Vale mencionar ainda a transformação de um cenário que deixa de ser o de um conto de fadas para se transformar na habitação sombria na qual, em alguns momentos, o dominador se transforma numa figura assustadora criada pelas drogas e por repressões exercidas no passado e no presente. A cena do telefonema em que Elvis fala com o pai e se refere ao coronel Tom Parker, seu orientador, expõe a dupla opressão, causa maior de um sofrimento difícil de suportar e repetido contra outro ser humano.
 

Notícias relacionadas