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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 24 de Novembro de 2023 às 01:12

Um cineasta

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Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) é um dos maiores cineastas brasileiros. Dois de seus filmes, ambos tendo por base livros de Graciliano Ramos, Vidas secas e Memórias do cárcere, são exemplos de obras que ultrapassaram fronteiras e colocaram seu nome entre aqueles diretores mais atentos à realidade de seu tempo e aos temas mais reveladores dos problemas de seus países. O cineasta procurou quase sempre erguer painéis dos quais o ser humano não está ausente, nunca substituído por discursos marcados pela obviedade, como nas duas obras-primas citadas, embora na primeira delas as palavras finais de Fabiano possam parecer supérfluas, depois que várias cenas antológicas já tinham colocado o espectador diante de um cenário marcado pelas deformações criadas pela sociedade, um verdadeiro inferno originado pela incúria, a desatenção, a cobiça e uma série de deformações que continuam a causar sofrimento entre suas vítimas e indignação entre os que contemplam tal devastação material e humana.
Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) é um dos maiores cineastas brasileiros. Dois de seus filmes, ambos tendo por base livros de Graciliano Ramos, Vidas secas e Memórias do cárcere, são exemplos de obras que ultrapassaram fronteiras e colocaram seu nome entre aqueles diretores mais atentos à realidade de seu tempo e aos temas mais reveladores dos problemas de seus países. O cineasta procurou quase sempre erguer painéis dos quais o ser humano não está ausente, nunca substituído por discursos marcados pela obviedade, como nas duas obras-primas citadas, embora na primeira delas as palavras finais de Fabiano possam parecer supérfluas, depois que várias cenas antológicas já tinham colocado o espectador diante de um cenário marcado pelas deformações criadas pela sociedade, um verdadeiro inferno originado pela incúria, a desatenção, a cobiça e uma série de deformações que continuam a causar sofrimento entre suas vítimas e indignação entre os que contemplam tal devastação material e humana.
O plano final de Vidas secas abre um caminho em direção a um cenário idealizado e não alcançado. E Memórias do Cárcere tem aquela que provavelmente é a mais bela cena final de nosso cinema, com a nação ferida e ainda com dificuldades para se movimentar, saindo da prisão ao som da Marcha Solene brasileira, que nada mais é do que variações em torno do Hino Nacional Brasileiro, compostas pelo americano Louis Moreau Gottschalk (1829-1869), que nasceu em Nova Orleans e morreu no Rio de Janeiro. Uma cena desenrolada em 1937, mas claramente se referindo à época de realização do filme, o ano de 1983.
O documentário que sobre o diretor realizaram Aída Marques e Ivelise Ferreira é mais um a merecer atenção e confirma que o gênero é aquele no qual cinema nacional, nas últimas décadas, através de títulos como Nelson Freire, Santiago e Edifício Máster, os dois primeiros de João Moreira Salles e o terceiro de Eduardo Coutinho, vem mantendo vitalidade e inteligência. Basta ver o recente Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. A originalidade das duas realizadoras se concentra na utilização do próprio Nelson como narrador. São raras, quase ausentes, palavras de outros envolvidos em trabalhos do cineasta.
Utilizando registros de várias épocas, o documentário mostra o cineasta em início de carreira, na fase da consagração e na maturidade. Documentários preservados, permitem vermos o cineasta desde seu primeiro filme, até as dificuldades e os obstáculos enfrentados na realização de suas duas obras-primas. Não faltam ironias do próprio Nelson, ao lembrar declarações, de um chefe de polícia afirmando que no Rio de Janeiro jamais havia sido registrada temperatura de 40 graus, uma justificativa para a proibição do filme, algo que nos dias de hoje se transformou em eloquente demonstração de como a censura é algo sempre ridículo, sem falar dos recordes dos últimos dias, o que transformou a primeira obra do cineasta em profecia.
O documentário tem o subtítulo de Uma vida de cinema e poderia explorar mais as ligações de nossa arte com a realidade, inclusive decifrar os enigmas propostos pelas contradições, entre eles o fato de que o regime que perseguiu inquietações e críticas presentes em obras de arte, foi o mesmo que criou a Embrafilme e seu sistema de produção e distribuição, que depois foi extinta pelo primeiro governo diretamente eleito após o período autoritário, O trabalho se concentra mais nos bastidores da realização dos filmes de Nelson. E aqui uma curiosidade: durante a ação apenas uma fotografia é rapidamente exposta da sessão realizada no cinema Imperial de Porto Alegre, em janeiro de 1956, quando o primeiro filme do cineasta biografado foi exibido depois de ser liberado, com a presença do próprio Nelson, então apresentado ao público por P.F. Gastal, que organizou um plebiscito, patrocinado pelo antigo Correio do Povo, através do qual os espectadores votaram em grande maioria contra a censura, acontecimento ao qual filme poderia dar mais destaque. Mas o trabalho vale por colocar outra vez na tela parte da obra de um cineasta cuja importância em nosso cinema permanecerá para sempre.

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