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Cinema

- Publicada em 09 de Novembro de 2023 às 19:00

Sem destino

Qual seria o objetivo do diretor Christian Petzold, que recebeu um dos prêmios principais do festival de Berlim, com este Afire, que está sendo apresentado ao público brasileiro com um título em inglês, quando poderia ser utilizado o original alemão que faz referência a um céu avermelhado pelo fogo? Provavelmente foi o de registrar descaminhos e vazios de uma geração cercada pela indiferença e a crise. Se foi essa a intenção, ele se aproxima de vários cineastas que o antecederam, aqueles nascidos durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, alguns deles, como Wenders, Fassbinder e Herzog, colocando o cinema alemão entre os mais expressivos nas três últimas décadas do século passado, ao focalizar uma nação empenhada em afastar a influência de um passado recente e reconstruir um cenário mutilado pela violência. Parece ser esta a ideia do cineasta, também o responsável pelo roteiro. Há uma cena que aparentemente tem passado despercebida, que parece transmitir outra ideia, aquela da distância entre pessoas e gerações. Trata-se daquela passagem pelo supermercado, quando a personagem da caixa demonstra má vontade e também uma clara hostilidade. É uma das poucas cenas do filme na qual os personagens não são focalizados no cenário procurado para ser uma espécie de refúgio no qual darão os toques finais em seus trabalhos: a conclusão de um romance e de um portfólio.
Qual seria o objetivo do diretor Christian Petzold, que recebeu um dos prêmios principais do festival de Berlim, com este Afire, que está sendo apresentado ao público brasileiro com um título em inglês, quando poderia ser utilizado o original alemão que faz referência a um céu avermelhado pelo fogo? Provavelmente foi o de registrar descaminhos e vazios de uma geração cercada pela indiferença e a crise. Se foi essa a intenção, ele se aproxima de vários cineastas que o antecederam, aqueles nascidos durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, alguns deles, como Wenders, Fassbinder e Herzog, colocando o cinema alemão entre os mais expressivos nas três últimas décadas do século passado, ao focalizar uma nação empenhada em afastar a influência de um passado recente e reconstruir um cenário mutilado pela violência. Parece ser esta a ideia do cineasta, também o responsável pelo roteiro. Há uma cena que aparentemente tem passado despercebida, que parece transmitir outra ideia, aquela da distância entre pessoas e gerações. Trata-se daquela passagem pelo supermercado, quando a personagem da caixa demonstra má vontade e também uma clara hostilidade. É uma das poucas cenas do filme na qual os personagens não são focalizados no cenário procurado para ser uma espécie de refúgio no qual darão os toques finais em seus trabalhos: a conclusão de um romance e de um portfólio.
Na primeira sequência, quando o carro apresenta um problema que impede que a viagem prossiga e faz com que os personagens tenham de percorrer caminhos desconhecidos, o cineasta expõe claramente uma opção por focalizar episódios que fazem parte do cotidiano com o intuito de utilizá-los como símbolos reveladores. É aqui que ele já coloca em cena, além de um projeto interrompido, a personalidade do personagem principal, um escritor jovem e inseguro, abalado pela solidão e dominado pelo medo. Esta cena de abertura funciona como um prólogo do que virá a seguir, inclusive por flagrar algo que permanece latente. A sequência é também um exemplo de como a realidade coloca à disposição do realizador dados relevantes sobre a personalidade de cada figura em cena. Trata-se de retirar do real imagens que fazem o espectador ter uma visão nada superficial do que está sendo mostrado. Estamos longe, portanto, das propostas que propõem uma operação contrária, aquela que consiste em deformar o real para atingir verdades não reveladas ao primeiro olhar.
Quando o duo inicial se transforma em quarteto e depois num quinteto, o ritual acompanhado pela câmera vai aos poucos consolidando, através da imagem a estrutura de cada personagem. Naquela que talvez seja a cena mais significativa do filme, a lembrança integral de um poema de Heine é acompanhada pelo olhar de surpresa do protagonista, que procura sempre fugir de qualquer convívio, alegando cansaço ou trabalho, mas na verdade negando-se a participar de um mundo com o qual tem dificuldade de relacionamento. Quando surge em cena mais um personagem, para formar o quinteto definitivo, essa figura patriarcal exercerá papel decisivo. O editor representa o que comanda o mundo e parece exercer um papel poderoso. É ele que traz a cultura, mas a falha em lembrar o poema de forma integral é o sinal de uma fraqueza, que logo a seguir será inteiramente revelada. E mais tarde, no final, quando a imagem revela inteiramente a crise, resta a perplexidade e a surpresa no rosto do protagonista. Se o diretor Petzold merece atenção, é por esta capacidade em ver nos gestos e nas atitudes que formam a realidade significados definitivos. Ele sabe criar personagens. Mas seu cinema capta apenas reflexos de um mundo em chamas. Ainda assim, seria injusto ignorar que ele capta com perfeição um vazio e uma falta de rumo. E fica a lição de que a obra de arte, em qualquer gênero, só terá validade quando tiver em sua base um conjunto de vivências e observações comandadas pela lucidez, capazes de conferir-lhe solidez e significados. Há críticas que abrem caminhos e outras que se limitam a expor inseguranças, perplexidades e desalentos. Ambas sempre refletirão uma época.