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Cinema

- Publicada em 31 de Agosto de 2023 às 17:49

Memórias

O Canal Curta, um dos poucos da televisão brasileira a se dedicar a temas que realmente significam algo no processo destinado a preservar espaços de alguma relevância para a divulgação da arte, da cultura e da história, está apresentando em diversos horários um documentário que tem como orientador o crítico e cineasta Bertrand Tavernier, falecido em 2021. O documentário está formado por capítulos dedicados ao cinema francês. Entre eles há um relacionado aos que Tavernier chama de "os esquecidos". Embora o cineasta não faça referência direta ao pessoal da nouvelle vague, trata-se de relacionar, e quase sempre reabilitar, nomes violentamente criticados e desprezados pela turma que teve em Jean-Luc Godard, François Truffaut e Claude Chabrol os nomes mais conhecidos. Tavernier focaliza trechos, em imagens restauradas com perfeição, de obras de diretores que foram os alvos principais de uma geração que, a partir do final da década de 1950, cometendo algumas injustiças e promovendo cineastas menores a lugares não merecidos, procurou novos caminhos para o cinema da França. Entre as vítimas estava René Clair, em cuja filmografia aparece A nós a liberdade, realizado em 1931 e que teria sido a fonte na qual se inspirou Charles Chaplin para realizar Tempos modernos, cinco anos mais tarde. Clair é também o realizador de Esta noite é minha, por ele dirigido em 1952, no qual satirizava o saudosismo e a tendência de classificar o tempo passado como melhor do que o presente. O protagonista é um professor de música que, a cada noite, sonha com a época ideal, sempre retrocedendo, até chegar, no sonho derradeiro, ao paleolítico.
O Canal Curta, um dos poucos da televisão brasileira a se dedicar a temas que realmente significam algo no processo destinado a preservar espaços de alguma relevância para a divulgação da arte, da cultura e da história, está apresentando em diversos horários um documentário que tem como orientador o crítico e cineasta Bertrand Tavernier, falecido em 2021. O documentário está formado por capítulos dedicados ao cinema francês. Entre eles há um relacionado aos que Tavernier chama de "os esquecidos". Embora o cineasta não faça referência direta ao pessoal da nouvelle vague, trata-se de relacionar, e quase sempre reabilitar, nomes violentamente criticados e desprezados pela turma que teve em Jean-Luc Godard, François Truffaut e Claude Chabrol os nomes mais conhecidos. Tavernier focaliza trechos, em imagens restauradas com perfeição, de obras de diretores que foram os alvos principais de uma geração que, a partir do final da década de 1950, cometendo algumas injustiças e promovendo cineastas menores a lugares não merecidos, procurou novos caminhos para o cinema da França. Entre as vítimas estava René Clair, em cuja filmografia aparece A nós a liberdade, realizado em 1931 e que teria sido a fonte na qual se inspirou Charles Chaplin para realizar Tempos modernos, cinco anos mais tarde. Clair é também o realizador de Esta noite é minha, por ele dirigido em 1952, no qual satirizava o saudosismo e a tendência de classificar o tempo passado como melhor do que o presente. O protagonista é um professor de música que, a cada noite, sonha com a época ideal, sempre retrocedendo, até chegar, no sonho derradeiro, ao paleolítico.
Kleber Mendonça Filho, o realizador de Retratos fantasmas, embora dele se aproximando, não se deixa seduzir pelo canto do saudosismo. Inicia este documentário, narrado na primeira pessoa, com uma evocação da juventude e de momentos que inspiraram seu primeiro longa-metragem, mas são vários os elementos, inclusive um cachorro a interromper o repouso dos vizinhos durante a noite, que, mesmo fazendo parte das memórias resistentes ao tempo, certamente não é figura lembrada com saudosismo. Não estamos, portanto, diante de uma manifestação de exaltação do passado, mas sim de sua importância na formação de uma personalidade. Já nessa primeira parte o tema principal do filme, as mudanças - nem sempre para melhor, ressalte-se - aparece claramente. O tema central, a modificação do cenário urbano, presente nos planos de abertura, vai aos poucos sendo dirigido para o processo que transformou os cinemas de rua em igrejas, supermercados e, em alguns, casos, em ruínas, símbolos de uma crise. É uma época em que o cão antes mencionado é uma espécie de sentinela, guardião da tranquilidade familiar ameaçada pela violência. Assim, os cinemas foram fechados, inclusive pelo fato de as bilheterias localizadas na rua serem alvos fáceis do mais significativo dos elementos gerados pela deterioração urbana.
Mendonça Filho, que começou a realizar longas-metragens quando os atuais e excelentes cinemas dos centros comerciais já haviam substituindo os antigos, não exalta o passado, mas constata que a transformação descaracterizou cidades e transformou seus centros em território difícil de ser frequentado. Numa cena final surpreendente, talvez gerada por trecho semelhante em Taxi Driver - Motorista de Táxi, de Martin Scorsese, na qual o próprio diretor aparecia, o realizador agora volta ao tema principal do desaparecimento em Bacurau, seu filme anterior, realizado em parceria com Juliano Dornelles. Desta vez é o próprio ser humano que desaparece, sem que o filme tenha antes explorado tal tema com mais profundidade, preferindo a ênfase no surgimento de ruínas, substitutas do luxo de salas antigas, primorosos espaços dedicados ao cinema e que aos poucos foram transformados pela força de uma realidade que permanecia no espaço exterior. Qualquer espectador, mesmo longe de Recife, terá com que se identificar com o narrador destes retratos, que sintetizam transformações que sepultam o passado e ameaçam o ser humano com incertezas como diante de um fantasma, semelhante àquele que se intromete numa fotografia que integra o acervo e as lembranças deste documentário, mais um a enriquecer o cinema brasileiro em tal gênero.