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Cinema

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- Publicada em 25 de Maio de 2023 às 17:53

Na fronteira

As imagens de mulheres sem o véu na cena inicial de Sem ursos pode causar alguma surpresa no espectador e até em alguns críticos estrangeiros, que pensam estar diante de uma sequência desenrolada no Irã. Depois de tal prólogo, que se desenrola no outro lado da fronteira com a Turquia, encerrado com a palavra "corta! ", assim como num trecho de O espelho, outro filme de Jafar Panahi aqui exibido, dois temas paralelos são colocados na tela, numa espécie de contraponto visual. Ficamos então começando a entender o que realmente está acontecendo. Em primeiro lugar está a provocação de mostrar os cabelos de personagens e figurantes femininos num filme dirigido por um cineasta iraniano realizado em seu país. Tal cena, no entanto, é filmada no outro lado da fronteira, algo que pode ser comprovado nos créditos finais com os nomes da equipe turca que trabalhou no filme. O que estamos vendo no início é a discussão de um casal que, depois de atravessar a fronteira, tem dificuldades em seguir até a Europa. Mas este não é o filme que será visto a seguir. Trata-se de um outro filme que está sendo dirigido, através da internet, em território iraniano, por um diretor de cinema, personagem interpretado pelo próprio Panahi. Este, como se sabe, enfrentou problemas em seu país, foi proibido de filmar e chegou a ser preso, solto depois e novamente preso. Panahi, há alguns dias conseguiu a liberdade mediante fiança e saiu do Irã, estando agora na França, onde mora sua filha. Os dois filmes, portanto, são uma espécie de resumo do que estava, então, atormentando o realizador de Sem ursos.
As imagens de mulheres sem o véu na cena inicial de Sem ursos pode causar alguma surpresa no espectador e até em alguns críticos estrangeiros, que pensam estar diante de uma sequência desenrolada no Irã. Depois de tal prólogo, que se desenrola no outro lado da fronteira com a Turquia, encerrado com a palavra "corta! ", assim como num trecho de O espelho, outro filme de Jafar Panahi aqui exibido, dois temas paralelos são colocados na tela, numa espécie de contraponto visual. Ficamos então começando a entender o que realmente está acontecendo. Em primeiro lugar está a provocação de mostrar os cabelos de personagens e figurantes femininos num filme dirigido por um cineasta iraniano realizado em seu país. Tal cena, no entanto, é filmada no outro lado da fronteira, algo que pode ser comprovado nos créditos finais com os nomes da equipe turca que trabalhou no filme. O que estamos vendo no início é a discussão de um casal que, depois de atravessar a fronteira, tem dificuldades em seguir até a Europa. Mas este não é o filme que será visto a seguir. Trata-se de um outro filme que está sendo dirigido, através da internet, em território iraniano, por um diretor de cinema, personagem interpretado pelo próprio Panahi. Este, como se sabe, enfrentou problemas em seu país, foi proibido de filmar e chegou a ser preso, solto depois e novamente preso. Panahi, há alguns dias conseguiu a liberdade mediante fiança e saiu do Irã, estando agora na França, onde mora sua filha. Os dois filmes, portanto, são uma espécie de resumo do que estava, então, atormentando o realizador de Sem ursos.
Depois da instalação de um regime teocrático, os cineastas iranianos começaram a utilizar crianças como intérpretes ou passaram a utilizar recursos de metalinguagem para tratar de temas relacionados à atualidade. Ficou célebre a cena em que uma menina tira o véu diante da câmera, em O espelho, também de Panahi, dizendo estar farta de trabalhar no filme, antes da palavra "corta! ", dita pelo diretor do filme. Este recurso é novamente empregado. O curioso e que tais recursos têm sido empregados em filmes que, em conjunto, expressam ser herdeiros do neorrealismo italiano, a escola que floresceu após a Segunda Guerra Mundial. É que, ao lado de inovações narrativas, Panahi e outros têm procurado manter viva a tradição realista, num processo dos mais ricos destinado a expor a grandeza e a importância do cinema como criador da realidade, um manifesto de independência de outras artes, sem delas abandonar a essência. De certa forma é o teatro real presente em todos os momentos da trajetória humana.
No Festival de Veneza do ano passado, Sem ursos recebeu o Prêmio Especial do Júri, mas Panahi, impedido de sair do Irã, não pôde recebê-lo pessoalmente. Não foi a primeira distinção internacional conferida ao cineasta, cujo cinema já foi vitorioso em outras mostras. Seu novo filme, além de mais uma vez oferecer ao espectador várias oportunidades de constatar como a linguagem do cinema é rica e possui infinitas possibilidades, também concretiza uma demonstração de coragem e altivez. O filme procura ir às raízes do autoritarismo, focalizando rituais que, através dos tempos, têm aprisionado e transformado o ser humano numa criatura destinada a seguir regras milenares, impostas de maneira a causar sofrimento e frustração. Ao interpretar ele mesmo a figura de um cineasta acusado de fotografar um casal rebelde diante de costumes ancestrais, o diretor expõe não apenas um drama pessoal, já que igualmente coloca em cena os tirânicos processos que tentam modelar e sufocar anseios de uma sociedade. Este filme admirável, que utiliza a fronteira como obstáculo a ser ultrapassado, é outra prova da magnitude do cinema. E também é um exemplo e uma lição para os que não sabem que a maior crítica é aquela feita a partir de documentação do cotidiano de criaturas prisioneiras e sem a oportunidade de encontrar novo espaço para viver. Num lugarejo afastado se encontram todos os elementos utilizados pela autocracia. Sem ursos mescla simplicidades e ousadias e, ao mesmo tempo, é um vigoroso e eloquente relato sobre a luta pelo direito de expressão. Eis um exemplo do verdadeiro cinema.