Criada há oito anos com apenas 20 empresas de tecnologia jurídica, a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L) reúne hoje mais de 800 associados e se tornou uma das principais referências no debate sobre inovação no setor jurídico. Além das startups da área, fazem parte do ecossistema escritórios de advocacia, departamentos jurídicos, prestadores de serviço e órgãos públicos. A proposta da entidade é conectar o mundo do Direito às transformações tecnológicas que vêm moldando novas formas de atuação profissional.
Nesta entrevista ao Jornal da Lei, o diretor-executivo da AB2L, Daniel Marques, analisa, de forma otimista, como o setor jurídico brasileiro tem respondido à digitalização e destaca que os principais obstáculos não são tecnológicos, mas culturais. Segundo ele, apesar da crescente adoção de ferramentas como Inteligência Artificial (IA) e jurimetria, muitos escritórios ainda operam com modelos centralizadores e pouca abertura à inovação.
Marques também comenta o papel das lawtechs na tentativa de ampliar o acesso à Justiça, sobretudo fora dos grandes centros urbanos, e defende que o futuro da profissão exigirá mais do que domínio técnico: será preciso aliar conhecimento jurídico ao pensamento crítico e estratégico para lidar com um mercado em rápida transformação.
Jornal da Lei - Como você avalia a transformação digital no setor jurídico brasileiro?
Daniel Marques - O Brasil é, hoje, o País com a maior diversidade de soluções tecnológicas, somos referência global, o "Vale do Silício do Direito". Enquanto outras áreas de tecnologia de startups viram uma queda nos investimentos nos últimos 18 meses, as lawtechs e legaltechs brasileiras tiveram seu melhor momento: quase R$ 2 bilhões em investimentos, fusões e aquisições. No entanto, o principal desafio não é tecnológico, mas cultural. A maioria dos escritórios ainda funciona com uma lógica de domínio e controle, decisões centralizadas e aversão ao risco — um reflexo direto da formação jurídica tradicional. Para acompanhar as transformações, é preciso mudar um pouco esse modelo de gestão e a mentalidade.
JL - O que são lawtechs e legaltechs? Há diferença entre os dois termos?
Marques - Para a AB2L, na prática, não há diferença. Ambos se referem a empresas que oferecem soluções tecnológicas voltadas para o mundo jurídico, seja para escritórios, departamentos jurídicos, tribunais ou mesmo cidadãos. Elas surgem para democratizar o acesso à Justiça.
JL - Como ocorre esse processo de democratização?
Marques - Hoje existem plataformas de mediação e conciliação on-line, jurimetria, análise estatística e conexão entre advogados e clientes, especialmente úteis para jovens profissionais e quem está fora dos grandes centros. As tecnologias permitem que pequenos escritórios atuem em pé de igualdade com os grandes, ao oferecer ferramentas antes inacessíveis por conta do custo. Nos próprios tribunais... Temos 91 instituições e mais de 100 sistemas diferentes, são as lawtechs que integram, organizam e facilitam o acesso aos dados processuais, algo que muitas vezes seria impossível para o cidadão sem auxílio tecnológico.
JL - E como você avalia o impacto da IA generativa no setor jurídico?
Marques - A IA não é algo novo no Direito. O que mudou com a IA generativa é a capacidade de lidar com dados não estruturados, ou seja, textos — justamente o "material bruto" do mundo jurídico. Com isso, é possível gerar petições com mais agilidade, analisar grandes volumes de dados, traduzir linguagem técnica para termos compreensíveis ao cliente, revisar contratos, entre outras aplicações. Os riscos, quando existem, vêm do uso negligente por parte do profissional. Se um advogado insere jurisprudência falsa, por exemplo, a responsabilidade é dele, não da tecnologia. O problema não é da IA, é da má conduta. Por isso, não precisamos de uma regulação nova específica, mas de aplicação das regras já existentes para punir a negligência profissional.
JL - Como você projeta o futuro do setor jurídico diante dessas transformações?
Marques - A famosa frase de que "você não será substituído pela IA, mas por quem souber usá-la" é verdadeira. Os profissionais do Direito precisam aprender a utilizar essas ferramentas — seja Inteligência Artificial, automação ou outras soluções. Mas, mais que isso, acredito que o futuro exige algo ainda mais fundamental: pensamento estratégico e filosófico. A tecnologia está absorvendo as tarefas técnicas e operacionais. O diferencial do profissional do futuro será a capacidade de pensar com profundidade, com base em lógica, ética, epistemologia e antropologia. Isso já está acontecendo. Grandes lideranças jurídicas têm buscado embasamento em filosofia clássica para lidar com as transformações rápidas do mercado. O profissional que alia conhecimento jurídico, visão estratégica e capacidade reflexiva será o mais relevante na nova era do Direito.