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Publicada em 13 de Junho de 2025 às 10:20

Jurista propõe debate sobre sigilo na origem de bebês de reprodução assistida

Promotora de Justiça, Claudia Albuquerque lançou livro sobre o assunto

Promotora de Justiça, Claudia Albuquerque lançou livro sobre o assunto

Rossano de Freitas/Divulgação/JC
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Mauro Belo Schneider
Mauro Belo Schneider Editor-executivo
Diferentemente de diversos países da Europa, no Brasil as pessoas reproduzidas de forma assistida não têm acesso aos dados do doador do material genético. Aproveitando que junho é classificado como o mês da conscientização da infertilidade, a jurista e promotora de Justiça aposentada do Ministério Público do Rio Grande do Sul Claudia Maria Oliveira de Albuquerque considera que “pouco ou nada se fala sobre isso”.
Diferentemente de diversos países da Europa, no Brasil as pessoas reproduzidas de forma assistida não têm acesso aos dados do doador do material genético. Aproveitando que junho é classificado como o mês da conscientização da infertilidade, a jurista e promotora de Justiça aposentada do Ministério Público do Rio Grande do Sul Claudia Maria Oliveira de Albuquerque considera que “pouco ou nada se fala sobre isso”.
A Suécia foi o primeiro País a banir o sigilo sobre a identidade do doador, em 1985. Os Estados Unidos permitem práticas com e sem sigilo. Na América do Sul, somente a Argentina e o Uruguai têm legislação que a regulam, em ambos os casos, prevendo o sigilo quanto à identidade do doador.
O Brasil, desde 1992, vem regulando a reprodução assistida, por meio de normativas emanadas do Conselho Federal de Medicina, que consagram o anonimato. Para ampliar o debate, Claudia lançou o livro O direito ao conhecimento da identidade do ascendente genético na reprodução assistida heteróloga.
“No Brasil, o tema tem merecido muito pouca atenção e, quando é lembrado, ainda há vozes que sustentam a preservação do sigilo, desconsiderando que esses seriam os únicos filhos que não teriam o direito de saber de sua origem, de vez que esse direito já foi conquistado pelos adotivos desde 2009”, aponta ela.
Veja, a seguir, uma entrevista com a especialista sobre o assunto.

Jornal do Comércio - Por que teve a ideia de abordar a temática do livro?
Claudia Maria Oliveira de Albuquerque - Desde que iniciei meus estudos de Mestrado em Ciências Jurídicas em Lisboa, comecei a me interessar pelos debates éticos e jurídicos em torno da utilização das técnicas de reprodução assistida, mais notadamente as que se relacionam com a reprodução heteróloga que geraram muitas discussões pela intervenção de um terceiro, estranho ao projeto parental, na intimidade procriativa de um casal, quando se trata de um par ou, no caso de ser uma pessoa singular, de uma pessoa que simplesmente colabora para realizar o desejo de procriação de alguém. E, dentre essas discussões, o conhecimento da identidade genética é de todos o mais palpitante e o que mais me toca porque se relaciona com o desvendar do mais fundamental dos dilemas: o da origem, o da própria existência, que aparece com tanta significação em nossa sociedade ocidental, representado pela tragédia grega Édipo-rei.

JC - Como é a legislação hoje sobre conhecimento da origem?
Claudia - O conhecimento das origens relacionado com a identidade do ascendente doador de sêmen, óvulo ou embriões, no Brasil, não é disciplinado por lei, propriamente dita. O Brasil, desde 1992, vem regulando a reprodução assistida, por meio de normativas deontológicas emanadas do Conselho Federal de Medicina, que consagram o anonimato. Também há provimentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tratam do tema, no mesmo sentido. Por mais respeitáveis que sejam tais normas, não são a via adequada para tratar temas que envolvem direitos de personalidade dessa envergadura, os quais têm que ser submetidos ao debate democrático em sua sede própria, isto é, o parlamento.

JC - Como funciona em outros países?
Claudia - Mesmo após décadas de discussão, o tema permanece sem tratamento uniforme na comunidade internacional. O cenário europeu atual sinaliza fortemente no sentido de uma tendência à eliminação do anonimato dos doares. A Suécia foi o primeiro País a banir o sigilo sobre a identidade do doador, no ano de 1985, e, ainda nesse ano, a Suíça fez o mesmo. Depois, Áustria, em 1992; Holanda, em 2004; Noruega, em 2005; Reino Unido (atualmente fora da comunidade europeia), também em 2005; Alemanha, em 2006, Portugal em 2018 e França em 2021. Ainda no continente europeu, Islândia e Bélgica, admitem o uso das técnicas de reprodução assistida heteróloga com e sem anonimato. A Dinamarca também autoriza a dúplice solução. Fora do continente europeu, alguns estados da Australia, em 1995, e no Canadá, em 2011, em British Columbia, baniram o anonimato. Os Estados Unidos permitem práticas com e sem sigilo. Na América do Sul, somente a Argentina e o Uruguai têm legislação que a regulam, em ambos os casos, prevendo o sigilo quanto à identidade do doador.

JC - Como o assunto é atualmente abordado no Brasil? Há tabus a serem superados?
Claudia - No Brasil, o tema tem merecido muito pouca atenção e, quando é lembrado, ainda há vozes que sustentam a preservação do sigilo, desconsiderando que esses seriam os únicos filhos que não teriam o direito de saber de sua origem, de vez que esse direito já foi conquistado pelos adotivos desde 2009. Precisamos avançar nesse debate, ainda mais que já está consolidado o entendimento de que, a exemplo do que ocorre com a filiação adotiva, não é passível de se estabelecer qualquer vínculo entre doador e o novo ser, decorrente do Direito de Família ou do Direito das Sucessões. Há tabus que rondam a matéria, certamente que sim. A infertilidade, ainda é um grande tabu, a masculina principalmente. Veja-se que o mês de junho é o mês da conscientização da infertilidade e pouco ou nada se fala sobre isso. O receio do estigma da infertilidade tem sido apontado como importante causa para que as famílias que se utilizam das técnicas mantenham segredo quanto a isso. Esse problema é menos frequente entre casais de mesmo sexo, pois, sendo incapazes de procriar sem a ajuda de terceiros, ao natural, confrontam-se com a necessidade de contar à criança acerca de sua concepção. E esse segredo é inimigo desses filhos porque ainda que haja lei que assegure o direito a conhecer a origem genética, se os pais negarem aos filhos o direito à verdade sobre as condições de seu nascimento, permanecerão na ignorância sobre suas origens. No livro, proponho mecanismos para se eliminar esse segredo.

JC - A área do Direito está engajada nessa temática?
Claudia - Esse é um direito fundamental de personalidade, que antes mesmo disso, é um direito humano. Quando se fala em direito de personalidade, estamos a nos referir a direitos da pessoa, inerentes a sua condição humana, que é supralegal. São direitos inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis.


JC - Qual o papel do Direito em debates como esse?
Claudia - O livro se propõe a demonstrar que esse direito apesar de não estar expressamente previsto em nossa constituição formal, faz parte do que se chama direitos materialmente fundamentais, ou seja, enquadra-se entre os outros direitos que podem ser reconhecidos, decorrentes de tratados internacionais, princípios ou regime adotado pela Constituição Federal. Penso que deixo com esse livro a contribuição de oferecer as bases teóricas desse direito, sobre o qual o sistema jurídico, como um todo terá que se debruçar. Como diz a jurista portuguesa Vera Lúcia Raposo, a maioria das legislações internacionais que contemplam direitos fundamentais não mencionam esse direito que, é das mais recentes dimensões. Sem embargo, os órgãos jurisdicionais sempre o têm reconhecido, em meio às disposições nelas previstas. A ratificar a tese da doutrinadora, menciono que no ano 2000, o STJ reconheceu a um filho adotivo o direito de reconhecer sua origem, considerando sua necessidade psicológica e a ausência de lei que proibisse revelar as origens. A porta está aberta e o trabalho é de todos nós, operadores do Direito.

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