Especialista em Direito Civil, a jurista Judith Martins-Costa faz duras críticas à proposta de reforma do Código Civil elaborada pelo senador Rodrigo Pacheco e entregue ao Senado no início deste ano. Em entrevista ao Jornal da Lei, a presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) afirma que o anteprojeto representa não uma atualização do texto vigente, mas a criação de um novo código, elaborado às pressas, sem estudos prévios ou diagnósticos. Além disso, analisa que o texto, que visa moderniza a legislação civil brasileira, não possui nenhum ponto positivo, devendo, portanto, ser arquivado.
Jornal da Lei - Como a senhora avalia o processo de elaboração do anteprojeto de reforma do Código Civil?
Judith Martins-Costa - Foi uma surpresa para todo mundo. Ninguém estava pedindo um novo Código Civil, até porque o atual ainda é recente. Estávamos comemorando seus 20 anos quando veio essa notícia. Os códigos civis são feitos para durar. O francês é de 1804 e segue em vigor, com alterações pontuais. O alemão, de 1900, idem. No Brasil, não há motivo para uma mudança tão profunda. Além disso, embora o nome seja "reforma", na prática trata-se de um novo código. Estima-se que cerca de 65% do texto atual foi modificado. Mudou a filosofia, a linguagem e o conteúdo. E o mais grave: tudo isso sem estudos preparatórios.
JL - De que maneira esse processo deveria ocorrer?
Judith - Em qualquer lugar do mundo, uma reforma legislativa começa com uma demanda social real, seguida de diagnósticos, debates e testes. Só depois se redige um anteprojeto, como ocorreu com o Código Civil de 2002. Desta vez, nada disso aconteceu. A comissão surgiu repentinamente e, em menos de oito meses, apresentou as propostas. Foram poucas reuniões com universidades e, no site do Senado, há registro de apenas nove encontros — só dois após a divulgação do texto. É um processo atípico, sem precedentes aqui ou fora do País. O Direito tem dois laboratórios: a história e o Direito comparado. Este projeto não passou por nenhum dos dois. Trata-se de um experimento social inédito.
JL - O anteprojeto propõe submeter fundos de investimento à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Qual o impacto disso?
Judith - Esse projeto representa uma enorme insegurança jurídica, tanto para o mercado quanto para os cidadãos em geral. Ele cria categorias contratuais com critérios obscuros, transforma o direito de danos em algo imprevisível e trata temas econômicos de forma muito arriscada. No caso dos fundos, o problema é sério. Em 2019, o Código Civil foi alterado para estabelecer que fundos sigam regras de condomínio. Agora, o projeto volta a mexer nisso, sem esclarecer o que são os fundos — e atribui a eles regras típicas de sociedades, como a desconsideração da personalidade jurídica, sendo que fundos não têm personalidade jurídica. É uma ruptura com a lógica do sistema. Um projeto que altera fundamentos consolidados, sem testes, sem estudos e sem diagnóstico.
JL - Quais os efeitos possíveis desse projeto sobre os investimentos no Brasil?
Judith - Podem ser desastrosos. O investidor calcula o risco jurídico e o risco legal antes de aportar recursos. Se a legislação é instável ou ambígua, o investimento se torna inviável. O texto do anteprojeto é cheio de conceitos vagos e cláusulas gerais. Deixa muito para o juiz decidir sem fornecer critérios. Isso gera decisões imprevisíveis — e imprevisibilidade significa insegurança. O investidor não consegue calcular o risco. Sem isso, não há como investir. Então, ainda é necessário um estudo aprofundado, feito por economistas, sobre o impacto do projeto, mas o que já podemos prever é essa insegurança.
JL - Outro ponto polêmico foi a tentativa de excluir advogados da responsabilização por negligência. Como vê isso?
Judith - Como advogada, foi um dos trechos mais ofensivos que li. Todos os profissionais liberais — médicos, engenheiros, dentistas — respondem por danos causados por negligência. Por que o advogado seria diferente? Imagine um jurista que perde um prazo e prejudica seu cliente. Isso é gravíssimo. A proposta nos isenta da responsabilidade nesses casos. É um privilégio corporativista que rompe com a tradição jurídica e humilha a própria advocacia. É como se estivéssemos pedindo uma autorização legal para errar. É espantoso.
JL - Num cenário em que o texto venha a ser alterado, há algo específico que obrigatoriamente deveria ser revisto?
Judith - Na minha avaliação técnica, esse projeto não tem salvação. Ele não tem alguns pontos isolados que poderiam ser melhorados. Ele tem problemas transversais, do primeiro ao último artigo. Uma norma remete à outra, e os defeitos se multiplicam dentro da própria estrutura. Por isso, a única saída que vejo é o arquivamento. Mesmo assim, temo que essa mudança seja aprovado pois ele surgiu de forma repentina — e nada impede que seja aprovado do mesmo jeito.