A morte do cão Joca, em abril de 2024, após ser embarcado por engano em um voo da Gol com destino errado, comoveu o País e expôs as falhas nas regras de transporte aéreo de animais no Brasil. A repercussão levou à criação de um projeto de lei que estabelece diretrizes mais rígidas para o setor. Aprovada pelo Senado há duas semanas, a proposta — batizada de Lei Joca — retorna agora à Câmara dos Deputados, onde precisa ser votada novamente devido às alterações feitas pelos senadores.
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O texto determina que as companhias aéreas ofereçam condições apropriadas para o transporte de cães e gatos, com equipes capacitadas, monitoramento contínuo e comunicação transparente com os tutores. Um dos pilares do projeto é a responsabilização objetiva das empresas: elas poderão ser cobradas por danos aos animais mesmo sem comprovação de culpa.
Relatora do projeto, a senadora Margareth Buzetti (PSD-MT) consolidou propostas de quatro diferentes iniciativas legislativas. "Até hoje, o transporte era regulado apenas por normas internas das companhias. Agora, teremos uma legislação clara, que deverá ser cumprida", afirmou. Ela citou ainda o caso da cadela Pandora, extraviada por 45 dias entre 2021 e 2022, como outro exemplo da urgência por regulamentação.
Entre os pontos centrais da Lei Joca está a exigência de que as empresas mantenham informações atualizadas sobre os serviços oferecidos, respeitando protocolos de segurança. A versão original do projeto previa a presença de veterinários nos aeroportos de grande porte, mas a proposta foi retirada após avaliação da relatora, que a considerou excessiva.
A legislação também amplia as possibilidades de transporte na cabine, desde que respeitados os limites de peso e tamanho estabelecidos pelas companhias. Já para o compartimento de carga, passa a ser obrigatório um sistema de monitoramento constante. "A empresa não poderá mais alegar desconhecimento ou isenção de culpa. A responsabilidade será objetiva, independentemente de dolo ou negligência", explica o advogado Rodrigo Alvim Pereira, especialista em Direito dos Passageiros.
Para a defensora dos animais Paola Saldivia, fundadora do Instituto Eu Salvo Vidas, a nova legislação traz alívio para tutores e mais dignidade para os animais. "Já é bastante estressante para os pets entrar em um bagageiro, ficar confinados e longe de seus tutores por horas. A possibilidade de mantê-los na cabine representa um ganho significativo para o bem-estar deles e para a segurança emocional de quem cuida", avalia.
Ela destaca que a nova legislação representa um reconhecimento da sensibilidade dos animais. "Eles sentem dor, medo e afeto. Não podem ser tratados como malas ou objetos. A Lei Joca é um passo importante porque reforça que essas vidas importam e merecem respeito", afirma. Casos de recusa ao transporte seguem previstos, desde que justificados por razões técnicas ou de segurança, como risco à tripulação ou problemas de saúde que inviabilizem o voo. Situações consideradas abusivas, no entanto, poderão ser questionadas judicialmente.
Apesar dos avanços, há pontos que ainda exigem regulamentação complementar. "A lei define os princípios, mas os detalhes técnicos, como o tipo de monitoramento ou a capacitação das equipes, dependerão de normas infralegais futuras. Esse é um ponto vulnerável do texto", observa Pereira. Outro aspecto sensível é o impacto econômico: embora a proposta não autorize expressamente o repasse de custos aos passageiros, esse efeito colateral é considerado provável.
Ainda assim, o advogado avalia que o Brasil dá um passo relevante em direção a padrões internacionais. "Países com políticas mais maduras já adotam protocolos de segurança, monitoramento e acompanhamento rigoroso do transporte de animais. Não se trata apenas de logística, mas de respeito à vida. A Lei Joca se alinha a essa visão", afirma.
A proposta se insere em um processo histórico de quase cem anos de consolidação dos direitos dos animais no Brasil. Desde o Decreto 24.645, de 1934 — um marco pioneiro de proteção animal —, passando pela Constituição de 1988, pela Lei de Crimes Ambientais de 1998 e pela Lei Sansão, de 2020, que endureceu as penas para maus-tratos contra cães e gatos, o arcabouço jurídico tem se ampliado. Em julgamentos recentes, o Superior Tribunal de Justiça também reconheceu os animais como seres sencientes, ou seja, com capacidade de sentir e perceber sensações, reforçando esse entendimento.
"Mais do que nunca, os animais estão ganhando a visibilidade que sempre mereceram", afirma Paola. "Anos atrás, raramente se falava em Direitos dos Animais e muitos viviam acorrentados, no fundo dos pátios. Hoje, temos leis que permitem resgatá-los em situação de maus-tratos e oferecer a eles qualidade de vida. A Lei Joca mostra que eles estão, pouco a pouco, ocupando seu espaço como parte da sociedade", finaliza.