O debate sobre os modelos de jornadas de trabalho no Brasil voltou à pauta diante das mudanças sociais e econômicas que impulsionam novos formatos de organização laboral. A busca por alternativas que conciliem produtividade empresarial, segurança jurídica e qualidade de vida dos trabalhadores tem atraído a atenção de empresas, entidades e órgãos de fiscalização. Entre os modelos ainda predominantes está o regime de seis por um, no qual o empregado trabalha seis dias consecutivos e descansa apenas um, prática recorrente em setores como comércio, indústria e serviços essenciais. Para aprofundar a discussão, o Caderno JC Contabilidade conversou com Antônio Bernardo Santos Pereira, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT), que destacou os papéis da instituição e os desafios atuais em torno das jornadas. O procurador-chefe afirma que o tema da jornada é vital para a saúde do trabalhador. Ele destaca que o MPT reafirma seu compromisso em atuar para que os limites legais e as condições de trabalho sejam respeitados, utilizando os mecanismos de atuação coletiva para coibir o excesso.
JC Contabilidade – Quais são as atribuições do MPT em relação às jornadas de trabalho no Brasil?
Antônio Bernardo Santos Pereira – O MPT atua em matérias trabalhistas vinculadas a direitos indisponíveis e/ou que possuam uma repercussão social relevante. A questão da jornada de trabalho na atuação do MPT perpassa por múltiplos temas. Em geral, o enfoque dado pelo MPT aos limites de jornada se volta à preservação da saúde e segurança dos trabalhadores. A extrapolação habitual da jornada com supressão habitual dos períodos de descanso pode causar danos psicossociais aos próprios trabalhadores, estando correlacionado ao adoecimento físico e psíquico, à maior incidência de acidentes de trabalho (trabalhadores cansados ao final de longas jornadas estão mais sujeitos a acidentes), além de prejuízo no convívio familiar e social.
Contab – Quais são as consequências da extrapolação da jornada?
Pereira – Há casos em que a acidentalidade maior em razão do cansaço do trabalhador por excesso de trabalho pode atingir pessoas que nem se relacionam diretamente com o trabalhador ou a empresa, a exemplo das jornadas de motoristas profissionais, aeroviários, profissionais de saúde e tantos outros. Em situações extremas, a extrapolação da jornada e a supressão de descansos podem ser enquadrados como condição análoga à de escravidão, exigindo a atuação do MPT. Esse enquadramento normalmente está relacionado a trabalho por produção, com ritmo acelerado e sem descanso, em condições extenuantes. Há casos, inclusive, de óbitos de trabalhadores por estafa e excesso de esforço nessas situações.
Contab – Em quais situações o MPT passa a intervir no controle da jornada?
Pereira – Já o regular controle de ponto e as diferenças de horas extras em geral são matérias de interesse individual disponível, não havendo atuação do MPT salvo nos casos em que atinjam um número suficiente de empregados a ponto de gerar repercussão social, a exemplo de empresas com atuação nacional e empregadores de grande porte em pequenas cidades que praticamente monopolizam a força produtiva da região. Em todos esses casos, o MPT atua por meio de investigações e, se reconhecidos os ilícitos, deve adotar medidas para compensar o dano já causado e impedir sua repetição, seja por meio de termos de ajuste de conduta, seja por ações judiciais, em especial a ação civil pública.
Contab – Como o MPT acompanha as discussões sobre novos modelos de jornada, como a semana de quatro dias?
Pereira – Atualmente vigora no Brasil a chamada jornada 6x1, em que os trabalhadores se ativam por seis dias na semana, sendo resguardado um dia de descanso. O modelo é alvo de propostas de mudança legislativa para garantir maior período de descanso, permitindo convívio social, interação familiar, mitigando acidentes de trabalho e impulsionando setores ligados a atividades recreativas e culturais. É importante lembrar que o trabalhador não é apenas “um trabalhador”, ele é também cidadão, familiar, consumidor e membro de comunidades sociais. Essa questão é ainda mais relevante para famílias chefiadas por mulheres, especialmente as mais de 11 milhões de “mães solo” no Brasil.
Contab – O senhor tem conhecimento de como este assunto é tratado por outras nações?
Pereira – Países desenvolvidos já adotam jornadas inferiores, e nações em desenvolvimento, como Chile e Colômbia, têm reduzido gradualmente a jornada máxima. Os impactos positivos na produtividade e bem-estar superam os custos de uma jornada menor. O MPT acompanha a discussão com atenção, contribuindo com base na realidade cotidiana da instituição.
Contab – Quais os riscos de implantar modelos alternativos sem respaldo jurídico claro?
Pereira – A legislação estabelece limites máximos de 8 horas diárias e 44 semanais. Uma empresa que opte por adotar 40 horas semanais, suprimindo o trabalho aos sábados, não incorre em risco jurídico, pois está dentro do limite legal. Além disso, é possível fazer ajustes de jornada mediante negociação coletiva, com parâmetros definidos pela legislação e jurisprudência.
Contab – Há espaço para negociação coletiva nesses novos formatos?
Pereira – Sim. O Direito brasileiro aceita diversas possibilidades de compensação de jornada. A negociação coletiva pode instituir a jornada 12x36, comum no setor de vigilância, além de bancos de horas e compensações pelo sábado trabalhado. Contudo, é essencial que os acordos sejam cumpridos de fato. A Justiça tende a afastar a validade quando a compensação prevista não é gozada, como ocorre em jornadas 12x36 com frequentes “dobras” de turno. Nessas situações, não há acordo legítimo, mas renúncia a direitos trabalhistas, o que não é válido.
Contab – Como o MPT fiscaliza o cumprimento da lei?
Pereira – Qualquer interessado pode denunciar ao MPT pelo canal eletrônico. Aberta a investigação, instaura-se um inquérito civil, permitindo aos procuradores ouvir testemunhas, realizar diligências e analisar documentos. Havendo ilícitos, pode haver um TAC ou o ajuizamento de ação civil pública, garantindo reparação e impedindo novas irregularidades. Os valores de indenizações são revertidos à comunidade afetada. É importante ressaltar que essa atuação não substitui a do advogado trabalhista ou da assistência sindical, que cuidam de direitos individuais.
Contab – De que forma o MPT atua para coibir o assédio moral relacionado a cobranças excessivas de produtividade?
Pereira – Cobranças abusivas, com metas inalcançáveis, configuram assédio moral organizacional, que compromete o ambiente saudável de trabalho e causa adoecimento. O MPT atua como órgão investigador e indutor de mudanças, promovendo dignidade e restabelecendo condições adequadas.
Contab – Qual a importância dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs)?
Pereira – Os TACs são fundamentais porque oferecem solução rápida e efetiva. Neles, o empregador se compromete a cessar o ilícito e reparar danos. Por terem força de título executivo, permitem a aplicação de multas em caso de descumprimento.
Contab – Como o MPT enxerga o futuro das jornadas de trabalho?
Pereira – O futuro das jornadas no Brasil deve acompanhar a tendência internacional de redução gradual. Além disso, ganha relevância o direito à desconexão, que busca garantir que o trabalhador esteja de fato afastado das demandas laborais fora do expediente. Com celulares e aplicativos de mensagens, é comum levar trabalho para casa, o que causa estafa mental. Embora já exista previsão legal, a expansão tecnológica torna o tema cada vez mais urgente. O MPT seguirá atuando para priorizar saúde, dignidade e direitos dos trabalhadores.