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REPORTAGEM

- Publicada em 31 de Janeiro de 2023 às 15:57

Brasil busca estabelecer nova âncora fiscal

Após sucessivos furos no teto de gastos, governo federal deve apresentar proposta até abril

Após sucessivos furos no teto de gastos, governo federal deve apresentar proposta até abril


Marcello Casal JrAgência Brasil
A nova âncora fiscal do Brasil deverá ser um tema recorrente no debate econômico do País nos próximos meses. A proposta, que poderá ser apresentada pelo Ministério da Fazenda do novo governo, substituirá o chamado teto de gastos, em vigor desde 2017.
A nova âncora fiscal do Brasil deverá ser um tema recorrente no debate econômico do País nos próximos meses. A proposta, que poderá ser apresentada pelo Ministério da Fazenda do novo governo, substituirá o chamado teto de gastos, em vigor desde 2017.
A medida ocorre após a regra atual ter sido driblada sucessivas vezes, além de ser alvo de críticas relacionadas ao engessamento provocado na máquina pública a partir do mecanismo.
Criado por emenda constitucional, o teto prevê um limite de aumento de gastos dos cofres da União atrelado ao aumento da inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Dessa forma, o orçamento disponível para gastos do governo federal só pode ser reajustado em um ano levando em conta a inflação do ano anterior. A medida seria válida por 20 anos, de 2017 a 2036.
Tudo isso passou a ser questionado depois que a regra foi descumprida em diferentes oportunidades. Segundo levantamento do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), feito a pedido da BBC News Brasil, os gastos do governo de Jair Bolsonaro acima do teto somaram R$ 794,9 bilhões de 2019 a 2022.
A maior parte dos gastos acima do limite envolveu o Orçamento de Guerra para enfrentar a pandemia de Covid-19. Mas a flexibilização da regra se deu já no primeiro ano do governo de Bolsonaro e seguiu após o arrefecimento da pandemia. Conforme o estudo do economista, o teto foi 'furado' cinco vezes durante o último mandato: R$ 53,6 bilhões em 2019, R$ 507,9 bilhões em 2020, R$ 117,2 bilhões em 2021 e R$ 116,2 bilhões em 2022.
Aprovada em dezembro passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição ampliou, para este ano, o teto de gastos em mais de R$ 145 bilhões. O montante será utilizado para bancar despesas como o Bolsa Família, o Auxílio Gás e a Farmácia Popular.
Um dispositivo presente na PEC determina que, em contrapartida, o governo apresente uma proposta de nova âncora fiscal por meio de um projeto de lei complementar até o fim de agosto de 2023. Durante a sua participação no Fórum Econômico Mundial, em Davos, porém, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adiantou que pretende apresentar o arcabouço fiscal até abril.
Mas por que, afinal, o teto de gastos acabou não dando certo? Para o professor convidado da FGV Direito Rio Gabriel Quintanilha, um dos motivos foi o forte aumento de despesas gerado pela pandemia. As explicações, contudo, não param por aí.
"Mesmo antes da Covid já havia uma necessidade de ultrapassar o teto de gastos, porque a definição da regra não levou em consideração as despesas extraordinárias que são intrínsecas ao poder público, além da própria inflação, que passou a ser bastante importante na economia brasileira", analisa Quintanilha.
A principal crítica, portanto, está ligada ao fato de que os gastos obrigatórios (incluídos no teto), como benefícios da Previdência Social, têm crescido acima da inflação, o que, na prática, faz com que os gastos "livres" da máquina pública, como investimentos e programas sociais, diminuam ano a ano.
"Se a despesa com o benefício cresce acima da inflação, é preciso pegar outros gastos e fazer com que eles cresçam menos do que o IPCA. E qual foi o principal gasto que sofreu durante esse período? Os investimentos públicos", contextualiza o economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Sergio Gobetti.
Gobetti cita três principais razões para que a regra não obtivesse êxito. A primeira é que se buscou usar uma regra fiscal - que é algo permanente - para resolver um problema de curto prazo, que era o ajuste fiscal necessário na época em que o sistema foi criado. A situação em 2016 era de déficit nominal do setor público consolidado de 9% do Produto Interno Bruto (PIB), déficit primário de 2,5% do PIB e dívida bruta do governo geral de 70% do PIB, crescendo aceleradamente.
Além disso, conforme o economista, a regra se mostrou muito rígida e sem válvulas de escape em caso de eventos excepcionais, como a pandemia. Por fim, ele avalia que a aplicação do teto acabou resultando, na prática, em redução do investimento público.
Agora, com o fim do sistema de teto de gastos se aproximando, analistas passam a conjecturar qual modelo de arcabouço fiscal o governo apresentará. Há várias propostas sendo colocadas na mesa. Em Davos, Haddad anunciou que o governo brasileiro contará com o suporte técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI) para essa formulação.

Propostas para novo arcabouço fiscal do País entram em debate

Fernando Haddad disse que contará com suporte do FMI para criação de novo arcabouço fiscal

Fernando Haddad disse que contará com suporte do FMI para criação de novo arcabouço fiscal


Boris Baldinger/Divulgação JC
Desde o fim do ano passado, algumas ideias para substituir o atual teto de gastos da União já foram colocadas no centro do debate. Técnicos do Tesouro Nacional, por exemplo, defendem uma regra de despesa vinculada a uma âncora fiscal que tem a dívida como referência. Enquanto o teto de gastos limita o aumento das despesas do governo à variação da inflação, a proposta do Tesouro estabelece um limite para o crescimento real (acima da inflação) da despesa da União, condicionado ao nível e à trajetória da Dívida Líquida do Governo Geral (DLGG). Em novembro, esse índice estava em 57% em relação ao PIB.
O ponto central da proposta é: quanto maior o nível de dívida pública, menor será a taxa de crescimento real (acima da inflação) das despesas. Ou seja, se a dívida estiver em trajetória crescente, o limite para a despesa será menor do que se a dívida estiver em trajetória declinante. Análises indicam que os gastos do governo federal poderiam crescer acima da inflação em até 2,5% no cenário mais favorável.
Há também um desenho de arcabouço fiscal feito pelo grupo de economistas que fez parte do governo de transição da atual gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os pilares da proposta, está a implementação de uma meta de despesas, separando as obrigações correntes de curto prazo (que sustentam o custeio da máquina pública) do gasto com investimentos de longo prazo.
O grupo, que reuniu André Lara Resende, Guilherme Mello, Nelson Barbosa e Persio Arida, entende que o conceito de meta para gastos poderia transportar para a política fiscal princípios que foram bem-sucedidos com o uso do sistema de metas de inflação na política monetária, como previsibilidade e senso de compromisso.
Conforme a Folhapress, a proposta foi entregue aos integrantes do governo, mas não chegou a ser divulgada. Dentro do PT, ainda existe um grupo que defende que o terceiro mandato de Lula retome a lógica de se cumprir apenas a meta de resultado primário, retirando da conta investimentos públicos, por exemplo.
Segundo o professor convidado da FGV Direito Rio Gabriel Quintanilha, independentemente do caminho que for tomado, a adoção de uma âncora fiscal se faz necessária para que haja uma confiabilidade do mercado na economia brasileira. "Ela demonstra que o estado brasileiro não vai gastar mais do que efetivamente pode sustentar com a sua arrecadação. Ou seja, haverá uma responsabilidade no gasto público", diz.
Para o especialista, a nova âncora fiscal deve levar em conta a necessidade de gastos obrigatórios, como benefícios previdenciários e salários que crescem acima da inflação, além dos gastos livres da administração pública, como a necessidade de investimentos e de financiamento de programas sociais. "Com um teto de gastos muito inflexível ou muito rígido, não há a possibilidade da gestão pública efetuar gastos que são essenciais para a manutenção do bem-estar da sociedade", pontua.
O economista e pesquisador do Ipea Sergio Gobetti avalia que, por se tratar de um tema controverso, o ideal seria reunir especialistas do País, com diferentes ideias, para que fossem debatidas até se chegar a um denominador comum sobre qual seria a melhor fórmula de âncora fiscal para o Brasil neste momento.
Embora não crave um modelo pronto de âncora fiscal, Gobetti se arrisca sobre algumas possibilidades que poderiam ser levadas em conta. "Tendo a achar que uma regra de controle da despesa poderia ser mantida, mas sem um limite tão rígido como a inflação e sim um que permita o crescimento num ritmo parecido com o do PIB, semelhante ao que acontece na União Europeia", sugere. O economista avalia também que seja necessário incluir no teto os chamados gastos tributários, ou seja, os incentivos fiscais e os incentivos financeiros, algo que não ocorre atualmente.
"Seria uma forma de permitir que o governo escolha entre expandir o gasto de investimento ou o gasto tributário. O que é melhor para o crescimento econômico? Depende. Mas não há razão para que o gasto tributário tenha tratamento privilegiado em relação às demais despesas", justifica Gobetti. 
 

Experiência internacional pode servir de exemplo

Em 1992, a União Europeia definiu as suas primeiras regras fiscais

Em 1992, a União Europeia definiu as suas primeiras regras fiscais


WIKTOR DABKOWSKI/ACTION PRESS/JC
O modelo de âncora fiscal vigente no Brasil tem pouca similaridade ao que é adotado hoje ao redor do mundo. A maioria dos países que adota o teto de gastos o faz por meio de leis ordinárias ou de planos plurianuais, de no máximo três ou quatro anos, por exemplo. Além disso, poucos países fixaram a âncora fiscal na Constituição como ocorre aqui.
Também diferentemente de outros países, o teto de gastos no Brasil inclui os investimentos (obras públicas e compras de equipamentos) e não tem válvula de escape em momentos de recessão ou de crise econômica. No Peru, por exemplo, que adota um teto de gastos desde 1999, a despesa não era corrigida simplesmente pela inflação, podendo ter crescimento real (acima da inflação) de 2% nos primeiros anos e de 4% a partir de 2004.
A Nova Zelândia, por sua vez, tornou-se referência no tema por ter sido um dos primeiros países a construir um arcabouço fiscal, nos anos 1990, o Fiscal Responsibility Act. O FRA diferenciou-se ao não definir metas numéricas específicas de dívida ou de superávit do setor público.
O propósito da medida foi cobrar dos governos ações de curto prazo e objetivos de longo prazo com princípios de responsabilidade fiscal. O país tem avançado e renovado a sua política fiscal, incluindo indicadores sociais, como a qualidade de vida.
A União Europeia também é foco de atenção quando o assunto é gestão de regras fiscais. A presença de economias com condições distintas impôs o desafio de adotar políticas homogêneas a fim de garantir a sustentabilidade das contas públicas do bloco. O Tratado de Maastricht, em 1992, definiu as primeiras regras fiscais com a responsabilidade de prevenir e de corrigir o eventual excesso de déficit dos estados membros.
O acordo fixava um teto de déficit nominal em 3% e da dívida em 60% do PIB. Ao longo do tempo, reformas das normas fiscais foram implementadas, buscando atender a situação específica de cada membro do bloco e as condições fiscais de longo prazo. Em geral, as regras são ajustadas conforme o ciclo econômico de cada país. Além disso, é limitado o aumento das despesas dos membros ao mesmo porcentual previsto para a taxa de crescimento do PIB em médio prazo.