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Reportagem especial

- Publicada em 08 de Maio de 2022 às 14:00

O antigo e o moderno juntos: retrofit se consolida na construção civil

Edifício de oito andares, de frente para o Guaíba, será o primeiro licenciado pela prefeitura após mudança no Plano Diretor de Porto Alegre

Edifício de oito andares, de frente para o Guaíba, será o primeiro licenciado pela prefeitura após mudança no Plano Diretor de Porto Alegre


ANDRESSA PUFAL/JC
O termo não é novo – empregado há muitos anos no setor industrial, o retrofit faz aquilo que indica a tradução da palavra do inglês para o português: dar nova forma a algo antigo.
O termo não é novo – empregado há muitos anos no setor industrial, o retrofit faz aquilo que indica a tradução da palavra do inglês para o português: dar nova forma a algo antigo.
Incorporado pela construção civil inicialmente na Europa, o conceito tem uma pegada sustentável e explica o trabalho que recupera edificações já existentes ao invés de demolir a estrutura para recomeçar a obra do zero.
No Brasil, a técnica ganhou adeptos nos anos mais recentes e agora está na mira das prefeituras de capitais que querem atrair investimentos e novos moradores para os centros históricos – a aposta é conceder incentivos para recuperar prédios subutilizados nessas regiões. É o caso do Cais Rooftop, no Centro Histórico da Capital (foto), em frente aos armazéns do Cais Mauá. 
O conceito de retrofit popularizado no meio da construção civil se diferencia da simples reforma (que não tem como premissa preservar a memória do local) e do restauro (preservação da memória que tem como um dos pilares priorizar a originalidade dos materiais). Embora não tenha uma definição arbitrária, as referências recorrentes apontam o retrofit como uma espécie de combinação dessas práticas: o respeito à memória sem as restrições aplicadas ao patrimônio tombado. É uma ressignificação daquela construção.

Arquiteto e urbanista do escritório A3 arquitetura.engenharia - que tem no portfólio dois projetos de retrofit em andamento - Valdir Bandeira Fiorentin define a técnica como "reuso adaptativo": quando materiais e novas formas de uso são incorporadas ao local, buscando preservar a estrutura e dar a ela um melhor aproveitamento.
Tão importante quanto considerar o passado da construção "retrofitada" é olhar para o futuro daquele prédio. "O retrofit tem uma tendência à modernização e alteração do uso" com o objetivo de "aumentar o desempenho e a vida útil do edifício", explica a arquiteta e urbanista Audrey Bello Ramos, do escritório Iglesias & Bello Arquitetura. Isso porque, ao mesmo tempo que o retrofit garante o reaproveitamento possível da estrutura principal, também atualiza materiais e processos, adaptando a construção aos conceitos contemporâneos. Se bem empregados, os novos recursos investidos revertem em economia durante o uso.
Essa característica complementa outra que garante o perfil sustentável da prática do retrofit: a manutenção da estrutura, que não foi demolida para dar lugar a outra. Parafraseando o arquiteto norte-americano Carl Elefante, Valdir sustenta que "o prédio mais verde é aquele que já foi construído". É a ideia de aproveitar os materiais já empregados, valorizar o recurso natural que já foi utilizado na construção original.
Vários são os ganhos ambientais que se pode elencar quando a opção é o retrofit, desde não precisar retirar da natureza e transportar toda a matéria prima que será empregada na obra (isso ainda acontece, mas em menor escala), passando pela redução drástica da geração de resíduos (o lixo, conhecido como caliça, que nem sempre tem condição de ser reutilizado ou reciclado), até a adoção de novos materiais que darão ganho de eficiência para construção adaptada.
A atualização dos materiais pode ser percebida numa escala micro, como a troca de uma esquadria que permitirá melhor circulação do ar ou conforto acústico, a mudança do revestimento de forma a interferir no conforto térmico, a adoção de lâmpadas econômicas. E vai até a adaptação do condomínio todo para receber placas solares ou armazenar água da chuva.
E, embora essa não seja a regra - aproveitar as obras do retrofit para incorporar ações de sustentabilidade à edificação passa por uma escolha do investidor - Audrey aponta que o fato de manter e modernizar a estrutura, o que por si só aumenta o seu tempo de vida útil, já é um grande ganho.
Cabe aqui a fala da arquiteta francesa Anne Lacaton (que ao lado de Jean-Philippe Vassal venceu a edição de 2021 do Prêmio Pritzker de Arquitetura - considerada a maior honraria nesse campo profissional) sobre demolição: "É um desperdício de muitas coisas: de energia, de material e de história. Além disso, tem um impacto social muito negativo".

Modelo ajuda a aproveitar a infraestrutura urbana

Rooftop no Century Park, na região central, ganhou uma identidade mais moderna

Rooftop no Century Park, na região central, ganhou uma identidade mais moderna


Bruna Suptitz/ESPECIAL/JC
O edifício Century Park Living, no Centro de Porto Alegre, converteu um hotel (que estava em funcionamento) em unidades residenciais. Além da pegada ecológica durante o processo construtivo, o projeto é assinado pelo escritório Iglesias & Bello Arquitetura fez adaptações ao imóvel que estimulam um estilo de vida mais sustentável, a exemplo do bicicletário coletivo.
Este caso mostra que o retrofit não se restringe a edificações antigas e abandonadas - o entendimento entre arquitetos é que o processo de reforma preocupada com a preservação do imóvel pode acontecer em qualquer situação, mesmo com prédios relativamente recentes e que estejam em uso. Talvez a característica mais comum a todos os casos é da estrutura que perdeu a sua identidade devido à dinâmica urbana e social - caso que explica a recente transformação do hotel.
Mas ainda é mais comum identificar casos de retrofit em estruturas antigas, que não têm o seu potencial totalmente aproveitado e muitas vezes estão abandonadas. Nesse ponto, respeitadas as particularidades de cada cidade, dá para se dizer que é uma tendência em grandes centros urbanos ao redor do mundo encontrar prédios nessas condições nas áreas mais antigas - é o caso dos Centros Históricos, a partir de onde as cidades se formaram, e das zonas industriais hoje subutilizadas. Entram para a lista as estruturas que abrigaram escritórios ou pavilhões de fábricas e que não encontraram público suficiente para manter o seu uso original.
Ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento que conheceram no passado, essas áreas já estão atendidas por toda gama de serviços públicos, como abastecimento de água, tratamento de esgoto, rede de energia elétrica, ruas asfaltadas e atendimento por transporte público de massa - além daqueles oferecidos pela iniciativa privada, como o comércio em geral. Permitir que perdure em regiões assim um edifício abandonado, "do ponto de vista urbanístico é um desastre, por ter uma infraestrutura instalada que poderia estar sendo otimizada" alerta o arquiteto Valdir Fiorentin.
Nesse ponto, a adaptação de uso dessas edificações permite que voltem a ser utilizadas, o que é também uma forma de permitir o melhor aproveitamento da cidade já construída e o uso racional dos recursos públicos que ela dispõe. Mas, "para o mercado estar preparado (para o retrofit), a população precisa estar preparada", continua Valdir, fazendo referência à ideia que ronda o imaginário popular, de que tudo o que é novo é melhor.

Antigo hotel na região Central se transformou durante a quarentena

A pandemia de Covid-19 impactou diretamente muitos serviços e o setor hoteleiro foi um dos que mais sofreu com a falta de público nos períodos mais intensos de quarentena. A leitura do cenário fez daquele o momento escolhido pelos investidores de um hotel em Porto Alegre para mudar o rumo da operação. Cada quarto do edifício rebatizado de Century Park Living, na Avenida Loureiro da Silva, foi transformado em um apartamento no modelo coliving e a técnica empregada na adaptação é o retrofit.
A localização também foi decisiva para se decidir pela mudança na finalidade de uso da edificação. O prédio de 13 andares está de frente para a primeira perimetral, a meio quilômetro de distância do campus central da Ufrgs, com ponto de ônibus e ciclovia em frente. A esse caso coube muito bem empregar o conceito de colocar moradia próximo das regiões já atendidas por infraestrutura. Facilitou a conversão que na origem o edifício foi pensado como residencial e cada unidade já contava com as matrículas individualizadas.
"O retrofit foi pensado para atender a necessidade dos investidores", explica Gibran de Oliveira, CEO da My Way Assessoria em Negócios Imobiliários Ltda, que gerencia o condomínio e, em alguns casos, a locação dos apartamentos. Por se tratar de uma construção relativamente recente - do início dos anos 2000 - que não apresentava problemas estruturais, foi possível realizar a obra sem interromper o uso.
A nova vocação encontrada foi do aluguel por temporada, seja curta ou longa. Mesmo cada apartamento tendo estrutura própria para a cozinha, o condomínio tem uma cozinha compartilhada, e também lavanderia e sala para atividade física. Alguns inquilinos estão no local desde a mudança de perfil do prédio - e, durante, o South Summit Brazil, registrou lotação máxima.
 

Corretor investe em retrofit para a revenda de imóveis

Centro Histórico tem atrações como a proximidade com o Guaíba

Centro Histórico tem atrações como a proximidade com o Guaíba


ANDRESSA PUFAL/JC
Há 10 anos, o corretor de imóveis Kleber Sobrinho decidiu se tornar um franqueado no Centro Histórico de Porto Alegre, instigado em entender o que fazia com que muitas pessoas quisessem permanecer mesmo diante das notícias negativas sobre segurança, estrutura e qualidade de vida. Apesar disso, o bairro mantém as características da sua origem, que é ser ponto de encontro da cidade, polo de negócios e centro administrativo da Capital e do Estado. "Entendi (o momento ruim) como algo cíclico e passei a querer 'vender' o bairro, não apenas os imóveis", conta.
Mas vender apartamentos, salas comerciais e mesmo edifícios inteiros ainda era a sua função e também o maior desafio. Superada a barreira de resistência ao bairro, percebeu que a dificuldade maior era fechar negócio de imóveis depreciados. "Muitas vezes quem vende tira o que tem valor, deixa para trás o que não quer mais e espera que outra pessoa compre", avalia. No meio dessa equação - de um lado o vendedor que não prestava uma curadoria; do outro um possível comprador que não enxergava o potencial - Kleber decidiu ser ativo no processo.
Há pouco mais de um ano, criou junto com a esposa a empresa Recons, que compra imóveis, aplica o retrofit e recoloca no mercado para venda, dessa vez valorizado. "Retrofit é o resgate daquilo que existe. Uma das coisas que sempre nos nortearam é entender o que ainda tem valor aqui", conta sobre os imóveis do portfólio - 15 nesse período. O mais emblemático é certamente o prédio na esquina da Avenida Mauá com a Rua Caldas Júnior, que receberá o Cais Rooftop, primeiro projeto a ser enquadrado pela prefeitura nas novas regras para construção no Centro Histórico.
Kleber ofereceu o edifício a três investidores antes de decidir comprar. A cada nova apresentação, se convencia ainda mais do potencial. "Quando entrei no prédio, vi que tem valor, tem o que muitas pessoas querem, que é olhar para o Guaíba", recorda. Ele pondera que "obviamente não basta só o olhar artístico, também precisa de viabilidade técnica e financeira". Ele acredita que são as questões "intangíveis" o que faz com que as pessoas não explorem o terreno do retrofit.

Modelo exige investimento e pode ter retorno mais rápido

Caza Incorporações promove remodelação de esqueleto de edificação em Canoas

Caza Incorporações promove remodelação de esqueleto de edificação em Canoas


DIEGO LARRÉ/DIVULGAÇÃO/JC
"Vi a oportunidade de acelerar o retorno do investimento por meio do reuso adaptativo", conta o empresário Renan Zancanaro, proprietário da Caza Incorporações, que está transformando um "esqueleto urbano" em Canoas por meio do retrofit com o projeto Caza Urbano. A transformação é bem mais rápida que iniciar a obra no "greenfield" - campo verde, termo usado na construção civil que indica o terreno vazio -, isso mesmo considerando os riscos desse perfil de trabalho, como por exemplo encontrar uma estrutura comprometida e ter que refazer estudos e orçamento.
O retrofit já tinha aparecido não como técnica, mas como inspiração de um projeto novo, feito antes desse pela incorporadora. Entender o potencial de ganho atraiu a atenção de Zancanaro. "A construção civil do zero carrega toda a burocracia estatal, tem uma série de licenças envolvidas". Como exemplo, fala do Caza Urbano, que levaria provavelmente quatro anos para ficar pronto - metade desse tempo, no início e no fim, dedicado às aprovações e licenciamento. "Pretendemos fazer (o retrofit) em seis meses. Financeiramente é um negócio muito positivo", aponta.
Mas, para colher o resultado em pouco tempo, o investimento é alto e também no curto prazo. Se a obra partisse do campo vazio, dos dois anos de construção, levaria pelo menos um erguendo a estrutura e fechando a "carcaça". Isso representa entre 30% e 35% do custo da obra. Os cerca de dois terços do recurso restantes são empregados no acabamento (aberturas, rede elétrica e hidráulica, revestimento e outros). No seu caso, o aporte que seria feito no futuro precisará ser desembolsado praticamente de uma só vez. "Quando tem obra mais pronta e conclui rápido, consegue acelerar esse retorno e ter mais liquidez".
 

Para requalificar regiões centrais, poder público concede incentivos

Com edificações antigas, Centro Histórico tem potencial para atrair investidores

Com edificações antigas, Centro Histórico tem potencial para atrair investidores


MARIANA ALVES/JC
Núcleo onde se encontram muitos prédios com potencial para receber retrofit, os Centros Históricos estão na mira dos incentivos concedidos pelo poder público de capitais brasileiras para recuperar regiões degradadas. No Rio de Janeiro, o Reviver Centro compensa com incentivos urbanísticos e tributárias a conservação e o retrofit. Em São Paulo, uma lei de 2021 trata especificamente de retrofit: concede isenção de ITBI, desconto do ISS relacionado à obra, e IPTU progressivo - partindo de isento e aumentando até o sexto ano.
Em Porto Alegre o incentivo ao retrofit aparece com outro nome no Programa de Reabilitação do Centro Histórico (Lei Nº 930/2021). Pela norma, será concedido desconto ou isenção na compra de Solo Criado (índices construtivos) para quem aderir ao programa, que pode ser para a "reabilitação de edificações existentes" - termo que apareceu nas apresentações da prefeitura como o equivalente ao retrofit. Dos dez projetos que pediram enquadramento, um é para retrofit.
Que os incentivos são importantes é consenso. Mas os especialistas alertam que não é somente assim que serão resolvidos os problemas urbanos da cidade, especialmente nas áreas com edificações mais antigas. "A iniciativa privada não consegue sozinha mudar a cidade", alerta Valdir Bandeira Fiorentin.
CEO da Space Hunters, uma consultoria que analisa o potencial de investimento em áreas da cidade sob o viés do urbanismo, Francisco Zancan chama atenção que "não adianta retrofit quando se tem equipamentos (públicos) que prejudicam o entorno". Ou seja, o esforço para recuperar uma área deve ser conjunto e a escolha por investir em retrofit "deve considerar a localização, não só se o prédio tem potencial, mas se o entorno tem a ganhar ou se é só uma aposta", completa.

*Bruna Suptitz é jornalista formada pela Pucrs. Mora e trabalha em Porto Alegre desde 2010. No Jornal do Comércio, foi repórter de Política entre 2016 e 2019 e desde 2020 assina a coluna e o blog Pensar a cidade.