Eram duas da manhã quando o telefone de Douglas tocou. No outro lado da linha estava um de seus amigos, avisando que a água havia avançado para o pátio de sua casa. No dia anterior, o morador do bairro Sarandi tinha ido até o Dique da Fiergs para checar qual a situação nos arredores, após rumores de que a barragem iria estourar. Mesmo vendo que a água ainda estava longe de sua casa, ele decidiu passar a noite na residência do irmão. Naquela madrugada, Douglas voltou a sua casa para salvar alguns de seus pertences, como as televisões e algumas roupas de seus filhos. Quando chegou, a água já alcançava a porta. Na manhã seguinte, já estava na altura de seu pescoço. "Eu nunca me esqueço", conta o homem.
Acolhidos pelo irmão de Douglas, a esposa, os 4 filhos, a mãe e o motorista de aplicativo passaram 31 dias longe de sua residência. Ao longo desse período, o homem visitou periodicamente a casa, com medo dos assaltos na região. Com o recuo das águas, ele e sua família conseguiram iniciar a limpeza da casa, que precisou ser feita duas vezes devido a proporção do estrago e a prevalência da umidade dentro do lugar. "Foi cruel, ver tudo que tu construiu e perder em segundos", conta.
Após retornar ao lar, a reposição de itens perdidos na enchente tem sido um desafio. "Aos poucos estou voltando", diz ele, relatando que o acesso a doações, cestas básicas e produtos de limpeza foi difícil, especialmente pelo tempo de espera para a retirada. Dentre os benefícios que recebeu, Douglas foi contemplado com um voucher do projeto "De volta ao lar", encabeçado pelo Instituto Moinhos Social, pilar social do Hospital Moinhos de Vento.
O projeto, como explica Melina Schuch, superintendente de Estratégia e Mercado do Hospital, surgiu a partir da experiência que as equipes de voluntários da instituição tiveram em setembro de 2023, quando foram até cidades do Vale do Taquari. Nesse período, perceberam que, para além das necessidades imediatas dos moradores, a ajuda no momento de retorno às casas era vital. No princípio da enchente de maio, o Instituto já reservou uma parte dos valores recebidos em doações para montar vouchers de R$2.500, que seriam entregues às pessoas desalojadas quando fosse a hora de retornar aos lares. Segundo Melina, a meta é arrecadar R$2,5 milhão, beneficiando assim mil famílias.
Dentre os doadores, a maior parte são pessoas físicas. "É gente como a gente que faz a diferença", pontua ela. Todo o valor doado é destinado aos vouchers, que só podem ser gastos pelos beneficiados em empresas parceiras, como as Lojas Lebes, rede oriunda do Rio Grande do Sul.
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Antes de receberem a doação, os moradores afetados pela enchente passam por um processo concorrido e exigente, que consiste em três etapas. Na primeira fase, um formulário deve ser preenchido, efetuando assim o cadastro de sua família no programa. Até o momento, a iniciativa já recebeu mais de 66 mil candidaturas. Após análise dos dados fornecidos, alguns são escolhidos para uma entrevista presencial, conduzida por assistentes sociais do Instituto. O último estágio é a visita da equipe da instituição ao local em que o morador reside ou residia antes da enchente, para assim comprovar se o que foi dito anteriormente traduz a realidade daquela família. Se escolhida, a pessoa que encabeçou o cadastro recebe o dinheiro em seu CPF, cadastrado na loja parceira. A avaliação das famílias é feita com base em alguns critérios, como a proporção das perdas e dos danos em sua casa, qual a renda familiar, quantos idosos e crianças a família tem, se são pessoas que conseguem trabalhar e se há alguma demanda de saúde.
No dia 30 de julho, os primeiros 150 vouchers foram entregues em evento simbólico, que contou com a presença de 10 moradores do bairro Sarandi. Entre eles, lá estava Douglas. Com o dinheiro recebido, o homem comprou um roupeiro e uma cama para seus filhos, que, até então, estavam dormindo no chão. O homem, mesmo afirmando que ainda existe um longo caminho para o seu restabelecimento pleno, não esconde a sua gratidão pelo projeto. Para a representante do Instituto Moinhos Social, realizar ações como essa "é continuar fazendo nosso propósito em um momento em que realmente precisam de nós". "É sobre pessoas no final das contas", coloca ela.
Comércio varejista já enxerga recuperação após perdas durante a enchente
O projeto produzido pelo Instituto Moinhos de Vento, além de prestar auxílio na recuperação dos moradores afetados, também leva em conta as perdas do setor comercial do Estado, apoiando o reerguimento da economia local. A parceria da instituição com as Lojas Lebes é um amparo ao comércio local, já que, dentre as lojas do grupo no Estado, 35 estabelecimentos foram inundados, dos quais 20 apresentaram perda total.
Em geral, essa é uma realidade predominante no varejo gaúcho. Durante 20 dias, 30% dos estabelecimentos do setor, em especial nas cidades do Vale do Taquari, em Porto Alegre e na região metropolitana, paralisaram as suas operações. Depois das águas baixarem, uma parte do comércio varejista seguiu fechada por danos no estoque e patrimoniais, como explica Vilson Noer, presidente da Federação AGV.
Mesmo com as perdas, a "volta para casa" renovou as esperanças dos lojistas do setor. Em junho, o varejo passou a vender reposições de produtos perdidos nas enchentes, além de contar também com a chegada do frio, o que sempre ajuda a aumentar os números da área, como explica Noer. Como afirma representante do Grupo Lebes, à medida que os gaúchos retomaram suas rotinas, a economia passou a se movimentar.
Mesmo com registros de vendas semelhantes aos do mesmo período no ano passado, os próximos meses guardam alguns desafios, especialmente porque a maioria das reposições já foi feita e a perda de mais de 30 mil funcionários do setor repercute na produção. Ainda assim, as projeções da Federação AGV preveem que as vendas de 2024 sejam iguais, ou até melhores, das registradas no ano anterior.