Enquanto o mercado mundial de semicondutores patinou nos últimos dois anos, a Ceitec viveu uma situação quase à parte. Seguindo o ritmo típico de um grande empreendimento ainda em implantação, investiu, prospectou mercado, contratou pessoas e, por fim, iniciou os testes em campo daquele que será o seu primeiro projeto comercial, o chip do boi. A inauguração da fábrica, na Lomba do Pinheiro, está marcada para os primeiros meses de 2010. O plano era que isso acontecesse ainda esse ano. Mas o projeto é estratégico para o governo atual - o seu principal financiador - e, em um ano eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá desembarcar em Porto Alegre para o ato solene.
Enquanto isso, o presidente da Ceitec, Eduard Weichselbaumer, usa toda a sua experiência internacional para formatar uma empresa eficiente e preparada para a competição. Aos 55 anos, esse alemão que fugiu do frio da Europa e passou os últimos 18 anos na Califórnia (EUA), começa a se acostumar com o clima gaúcho. Solteiro, ele aproveita os raros momentos de descanso para velejar, pilotar aviões, fotografar e encontrar formas de viabilizar os planos ambiciosos que tem para a Ceitec.
JC Empresas & Negócios - A poucos meses de inaugurar a sua fábrica de chips, o cenário econômico mundial está sendo uma prova de fogo para a Ceitec?
Eduard Weichselbaumer - Por mais incrível que isso seja, 2009 foi um ano muito positivo para a Ceitec, pois foi quando realmente iniciamos as nossas operações. A crise internacional nos abriu a possibilidade de contratarmos profissionais de fora com experiência no setor, o que não é tarefa fácil. O que também ajuda é o fato de que as outras empresas de semicondutores estão sofrendo desde 2008 porque não existe dinheiro suficiente no mundo. Já nós tivemos o financiamento do governo federal, que é mais ou menos seguro. Estamos também na fase de começar a montar a nossa estrutura e, com isso, temos todas as chances de adotar um modelo mais eficiente. Em cerca de dois anos, estaremos mais suscetíveis a questões de mercado como essas enfrentadas hoje pelos nossos concorrentes, mas, por enquanto, a crise nos ajudou.
Empresas & Negócios - Como enfrentar as oscilações do mercado em um setor altamente sensível?
Weichselbaumer - Eu estou há 28 anos trabalhando com semicondutores, o que é uma eternidade nessa área e já me acostumei. Sempre ocorreram crescimentos expressivos desse mercado e, a cada seis ou sete anos, ciclos para baixo. É um movimento natural, de limpeza do ecossistema. Esses sustos acontecem porque quando uma empresa está tendo um crescimento veloz, não costuma olhar para algumas coisas básicas, como controle de custo, e se foca em capturar o mercado. No momento em que a demanda é reduzida, as companhias passam a prestar atenção em questões internas e partem para limpar as estruturas. É um ciclo permanente.
Empresas & Negócios - O momento começa a ser de calmaria para as empresas de semicondutores no mundo?
Weichselbaumer - É um período de consolidação para toda a área de high tech. Este setor geralmente tem altos crescimentos e investimentos, o que deve continuar acontecendo nos próximos anos, apesar das dificuldades enfrentadas, principalmente, em 2008.
Empresas & Negócios - Qual a estratégia da Ceitec para competir internacionalmente com os gigantes do setor de semicondutores?
Weichselbaumer - A mercado mundial de semicondutores é de US$ 300 bilhões. As pessoas costumam perguntar como vamos montar uma companhia na América Latina para competir com players como Intel, AMD e, ainda, com tecnologia dita atrasada. Estamos focados em nichos, que são segmentos de mercado com alto potencial de crescimento para o futuro, mas sem jogadores pesados nele. O segredo é pegar segmentos razoavelmente vazios (pelo menos sem dominadores), desempenhar um bom papel e crescer junto. Feito isso, o nosso objetivo é fazer produtos competitivos e vender internacionalmente. O Brasil importou US$ 1 bilhão nesse segmento em 2001, chegando a US$ 14 bilhões no ano passado. Exportação nem existe, mas queremos começar a equilibrar essa balança.
Empresas & Negócios - Qual a avaliação que pode ser feita do desenvolvimento tecnológico brasileiro?
Weichselbaumer - O País está se desenvolvendo rápido, junto com os demais do Bric, e tem uma economia robusta. Os brasileiros estão consumindo cada vez mais tecnologia, como computadores, celulares e TV digital. Mas temos um Produto Interno Bruto (PIB) gerado pela indústria eletrônica que é de 1,2% do total, enquanto na Europa, Estados Unidos e Japão alcança os 12%. Existe ainda uma cultura nesses países que ainda não repetimos aqui: lá, a indústria eletrônica está voltada para a criação de propriedade intelectual, enquanto, no Brasil, temos as montadoras. Por isso, a importância da Ceitec. Temos bons engenheiros, pessoas criativas e liderança na América Latina. Há um caminho que deve ser percorrido rapidamente. A estimativa é de que, daqui a cinco ou dez anos, a América Latina tenha no máximo 15% de tudo que é movimento no setor no mundo.
Empresas & Negócios - Como se estabelece a diferenciação de quem cria propriedade intelectual?
Weichselbaumer - Quem cria propriedade intelectual manda. Produção não é tão importante se formos pensar na construção de uma rede de criação de valores agregados. Fazer fábrica aqui ou ali é uma decisão operacional apenas. Recentemente, o Brasil disputou com a Costa Rica para ter uma fábrica da Intel e perdeu. Agora, essa unidade até já fechou. Dentro desses nichos nos quais a Ceitec vai atuar, competiremos mundialmente, exportaremos e vamos decidir quem serão os nossos parceiros e onde vamos produzir. Isso só será possível porque estamos criando propriedade intelectual.
Empresas & Negócios - Quais os desafios que o mercado deve impor para a Ceitec?
Weichselbaumer - Temos bons exemplos de companhias brasileiras high tech que são bem-sucedidas, como a própria Embraer. Mas existem questões importantes a serem observadas, para repetirmos esse sucesso. Há uma tendência à canibalização de mercados no Brasil. Se você tem um produto com sucesso, todos entram para fazer o mesmo. Aí, são 50 jogadores pequenos sem nenhuma condição de competir com mercado internacional. E isso não funciona. No Ceitec, estamos com sucesso apostando em RFID (comunicação feita através de radiofrequência), segmento que deve ser empurrado, mas não com todos fazendo a mesma coisa.
Empresas & Negócios - Como estão ocorrendo os testes do chip do boi?
Weichselbaumer - Estamos evoluindo. Lançamos a última fase de testes de campo antes de vender o produto, para nos certificarmos se tudo está funcionando bem. O brinco com chip é avaliado em fazendas de produção de leite e de gado de corte, em Minas Gerais. As diferenças serão estudadas e, se for necessário, teremos uma versão três.
Empresas & Negócios - Por que a opção de começar por Minas Gerais?
Weichselbaumer - Eles foram muito rápidos. E há o fato de que Minas Gerais possui um dos maiores produtores de rebanho do País, além de exportar. Temos uma lista das próximas fazendas nas quais faremos testes. No Rio Grande do Sul, talvez comece ainda este ano.
Empresas & Negócios - Como estão as negociações para a venda do chip do boi?
Weichselbaumer - Conversas com representantes de vários estados já estão acontecendo. O caminho preferido deve ser o daqueles que possuem o rastreamento obrigatório, como Santa Catarina, mas que usam os brincos ópticos, com grandes desvantagens técnicas em relação ao chip do boi. O modelo que desenvolvemos faz a leitura a distância. Existem diferentes tipos de leitores, alguns com conexão sem fio via bluetooth, que envia os dados imediatamente para o computador. A diferença de custo também mostra que não vale a pena usar um sistema com tantas falhas. O brinco óptico custa entre R$ 1,80 e R$ 2,00, enquanto o eletrônico, que já foi R$ 7,00, atualmente fica entre R$ 2,50 e R$ 3,00.
Empresas & Negócios - Já existe um palpite sobre quem deve adquirir primeiro?
Weichselbaumer - Não sei. Minas Gerais já foi muito rápida, mas também tem uma boa possibilidade de substituirmos o brinco óptico pelo eletrônico em Santa Catarina. Estamos esperando para ver o interesse do Rio Grande do Sul, que é um dos mais tradicionais nesse setor. O importante é que temos um produto de muita qualidade e competitivo nacionalmente.
Empresas & Negócios - Os projetos da Ceitec vão se concentrar na tecnologia RFID?
Weichselbaumer - Sim, até mesmo porque essa tecnologia possibilita o reúso de parte do trabalho para outras aplicações. Além do chip do boi, estamos envolvidos com os projetos nacionais como o do passaporte digital, identidade digital, identificação de medicamentos e de veículos. Esse último, em parceria com o Denatran, vai permitir que um chip aplicado nos carros contenha todos os dados de identificação, como chassi, seguro obrigatório e IPVA, além da cor, ano e placa. Possivelmente, o chip será introduzido nos carros já no momento da fabricação.
Empresas & Negócios - Qual o montante de investimentos que a Ceitec espera ter em 2010?
Weichselbaumer - Ainda estamos discutindo com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que, felizmente, está bem impressionado com o progresso que alcançamos. Precisaríamos de algo em torno de R$ 70 milhões e R$ 80 milhões, incluindo todas as finalizações da fábrica. De onde virá esse dinheiro? Ainda vamos ver se será das vendas ou dos cofres federais.
Empresas & Negócios - E quando a Ceitec terá cash flow positivo?
Weichselbaumer - Vamos ter o nosso cash flow positivo (receber mais do que vamos gastar) em cerca de três anos. Mas isso não significa que a gente possa sobreviver com capital próprio até porque, até lá, a tecnologia precisará ser atualizada. Temos produto, infraestrutura e mão de obra qualificada. Em pouco tempo esperamos abrir o capital. Se tivermos sucesso nesse período, será mais fácil receber dinheiro privado.
Empresas & Negócios - Como está a montagem da equipe de profissionais para atuar nesse setor, que não tem tradição no País?
Weichselbaumer - Nas últimas seis semanas contratamos 110 pessoas. Hoje temos 125 funcionários e vamos chegar a 250 no começo de 2010. Tivemos 110 vagas e mais de 3 mil candidatos. No Brasil as pessoas têm experiência de no máximo três anos em semicondutores, e mesmo assim de forma pontual. Como temos a metade, para cada dez engenheiros temos um com experiência, fomos buscar essas pessoas fora do Brasil. É um grande ganho poder contratar estrangeiros ou repatriar brasileiros que atuam há 15, 20 ou 30 anos nesse mercado. Eles já são 10% do nosso quadro. Se quisermos ter uma atuação internacional, precisamos ter um ponto de vista internacional. E isso pode ser feito mesclando brasileiros, alemães e americanos, entre outras nacionalidades. Estou confiante de que, para agirmos em vários mercados, precisamos ter pessoas com personalidade e técnicas diferentes, além de experiências culturais diversas.