O governo federal promete apresentar ainda neste ano um novo modelo de seguro rural, com o objetivo de ampliar a cobertura, garantir previsibilidade orçamentária e atender às novas demandas do setor produtivo. A proposta, que vem sendo desenhada pela equipe técnica do Ministério da Agricultura, foi apresentada na terça-feira ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. E deverá ser lançada ainda neste ano, para atender a safra de verão.
O ministro Carlos Fávaro aposta na solidez do projeto, que foi objeto de estudo desde o ano passado. "Viemos apresentar uma proposta para reconstruir o seguro rural no País. Trouxemos algo muito factível, que ainda precisa ser aperfeiçoado e debatido em outras instâncias do governo. Nosso objetivo é deixar como legado um novo modelo de seguro agrícola para o Brasil”, destacou.
A iniciativa é parte de um esforço para consolidar uma política pública mais moderna e adaptada ao cenário de maior instabilidade climática, agravada pela alternância de eventos de seca e excesso de chuvas. Mas o processo de construção tem despertado preocupação entre seguradoras e resseguradoras, que afirmam não terem sido convidadas a participar das discussões. A Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), que representa as companhias do setor, vê com cautela a forma como o debate vem sendo conduzido e alerta que o desenho de um sistema sem diálogo com o mercado pode resultar em mais discurso do que resultado prático.
“Não houve qualquer discussão com as seguradoras ou com os resseguradores sobre o novo modelo que está sendo elaborado”, afirmou Glaucio Toyama, presidente da Comissão de Seguro Rural da FenSeg. “Você não muda um modelo de negócio da noite para o dia sem conversar com todo o ecossistema. A realidade do produtor do Rio Grande do Sul é muito diferente da de um agricultor do Mato Grosso, e isso precisa estar refletido nas regras e na precificação do seguro.”
O secretário de Política Agrícola do Ministério, Guilherme Campos Jr., disse que a construção da nova ferramenta está a cargo do ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, articulador da criação do seguro agrícola no País, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E acrescentou que as companhias operadoras estão a par do desenvolvimento do novo modelo, mas que elas terão de se adaptar às circunstâncias.
"O seguro rural feito pelas empresas privadas só existe porque existe a subvenção. Se não houvesse subvenção, não haveria seguro. E o Ministério da Agricultura, enquanto o condutor da política pública do seguro rural, tem esse protagonismo."
Campos defende que o seguro paramétrico — baseado em indicadores como chuva, temperatura ou produtividade — pode representar um avanço importante, ao permitir pagamentos mais rápidos e simplificados, sem a necessidade de vistoria in loco. Também está em estudo a vinculação do seguro à contratação de crédito rural, o que, segundo o governo, garantiria maior segurança às operações e reduziria o risco de inadimplência.
O governo ainda avalia mecanismos para assegurar o cumprimento integral do orçamento destinado ao Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), que neste ano ficou em R$ 1,06 bilhão. Em alguns anos, parte desses recursos foi contingenciada, o que afetou o planejamento das seguradoras e limitou o alcance da política.
Esse ponto enfrenta resistência na equipe econômica, que alerta para o "engessamento" do orçamento da União. Para isso, a ideia é incluir no Projeto de Lei 2.951/2024, da senadora Tereza Cristina (PP/MS), que está tramitando no Congresso Nacional, a indicação da fonte de recursos para o PSR, como compensação, para cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Alíquota única por cultura é criticada pelo setor privado
Outro item que estará no novo seguro - é é alvo de questionamentos do setor privado - é a adoção de uma alíquota única nacional por cultura, medida que busca simplificar as regras e ampliar a transparência na concessão da subvenção. "O prêmio no Rio Grande do Sul é o mais caro do Brasil. E para poder fazer um subsídio cruzado desse seguro você precisa colocar o Brasil inteiro nessa cesta para poder ter uma compensação", afirmou Guilherme Campos ao JC.
Na avaliação de Glaucio Toyama, as ideias em debate no governo são positivas em teoria, mas carecem de discussão técnica e clareza sobre sua execução. Ele cita o exemplo do seguro paramétrico, que poderia agilizar indenizações, mas traz o chamado “risco de base” — quando o indicador climático de referência não reflete as perdas reais do produtor em campo.
“Pode chover o suficiente na microrregião e, mesmo assim, o produtor perder a lavoura por causa de uma geada localizada. Nesse caso, o índice diria que não houve sinistro, mas a perda foi real”, explicou. “É um modelo que pode funcionar bem para determinados públicos e produtos, mas não pode substituir integralmente o seguro tradicional.”
O dirigente da FenSeg também se mostra preocupado com a possibilidade de vinculação obrigatória do seguro ao crédito rural - medida que o governo irá confirmar - para ampliar a adesão. Ele alerta que essa prática poderia ser interpretada como venda casada, restringindo a concorrência entre seguradoras. “O ideal é que o seguro seja um indutor, e não uma imposição. O produtor deve ter liberdade de escolher se quer contratar crédito com ou sem seguro, com condições diferenciadas em cada caso”, defendeu.
Previsibilidade orçamentária é ponto de atenção
Um dos principais gargalos apontados pelo setor é a falta de previsibilidade orçamentária. O PSR tem sido marcado por contingenciamentos e liberação tardia de recursos, o que, segundo Toyama, compromete o planejamento tanto das seguradoras quanto dos produtores. “O seguro rural é uma política pública que precisa de estabilidade. Não dá para ter surpresas a cada safra. Sem previsibilidade, não há como expandir cobertura ou atrair novos agentes”, afirmou.
Ele defende que o governo estabeleça um piso mínimo anual de recursos, blindado de contingenciamentos, e que a alocação da subvenção seja transparente e planejada. Atualmente, a diferença entre o potencial de risco do setor agropecuário e a capacidade financeira do mercado segurador é expressiva: o valor total dentro da porteira é estimado em R$ 1,3 trilhão, enquanto o volume segurado gira em torno de R$ 80 bilhões.
“É uma defasagem enorme. O mercado brasileiro ainda cobre uma fatia muito pequena do risco existente no campo. Sem segurança orçamentária, não há como mudar esse quadro”, observou.
Apesar das divergências em relação à forma como o novo modelo vem sendo construído, há pontos de convergência entre governo e mercado. Um deles é a necessidade de criação de um mecanismo público de proteção contra eventos climáticos extremos, capaz de dar sustentabilidade ao sistema no longo prazo.
A FenSeg defende a constituição de um fundo de catástrofe, destinado a cobrir perdas de grande magnitude e reduzir o risco das seguradoras. No governo, a proposta ganha contornos semelhantes: o assessor especial do Ministério da Agricultura, Carlos Augustin, tem defendido a criação de um fundo garantidor nacional para viabilizar financiamentos e ampliar a capacidade de cobertura do seguro rural.
Toyama cita o exemplo dos Estados Unidos, onde mais de 90% da área agrícola é coberta por algum tipo de seguro, resultado de um sistema consolidado, com subsídios estáveis e regras previsíveis. No Brasil, a área segurada ainda não chega a 20% da área plantada, e há o risco de encolhimento em 2025 se o orçamento do PSR não for executado integralmente. “A demanda de risco é muito maior do que a oferta de capacidade de seguro. O produtor está cada vez mais exposto a eventos extremos, e o sistema não está crescendo na mesma velocidade”, avaliou.
Além da questão climática, o dirigente menciona o alto endividamento do setor produtivo e o custo do crédito como fatores que desestimulam a adesão ao seguro. “A taxa de juros elevada e a incerteza sobre o próximo Plano Safra reduzem a disposição do produtor em investir na proteção da lavoura”, afirmou.
Para a FenSeg, o maior desafio do momento não está apenas no desenho técnico do novo modelo, mas na falta de interlocução entre o governo e o mercado. “O diálogo é o ponto-chave. O governo precisa construir esse novo modelo junto com quem opera o seguro no dia a dia. Caso contrário, há o risco de se criar uma política que parece boa no papel, mas não se sustenta na prática”, advertiu Toyama.
Apesar das críticas, o governo firmou convicção e vai, agora, acelerar o processo para aprovar a proposta e colocá-la em ação. E, segundo Campos, as seguradoras terão de "rebolar" para participar do sistema. "Esse negócio só para de pé se botar todo mundo junto. Porque o seguro só quer segurar quem não precisa. E só quer fazer seguro quem precisa."
Enquanto o Ministério da Agricultura prepara o anúncio oficial, o setor segurador aguarda com expectativa — e apreensão — os próximos passos. A promessa de modernização do seguro rural é vista como necessária e urgente, mas, sem clareza e participação técnica, há o temor de que o Brasil siga distante da meta de proteger de forma efetiva seus produtores contra as perdas que o clima impõe com cada vez mais frequência.