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Entrevista Especial

- Publicada em 07 de Novembro de 2021 às 11:00

Metodologia de ensino perpetua desigualdade, diz Esther Grossi

"A casa grande surta quando a senzala aprende", critica a professora e ex-secretária de Educação de Porto Alegre

"A casa grande surta quando a senzala aprende", critica a professora e ex-secretária de Educação de Porto Alegre


ANDRESSA PUFAL/JC
Referência em alfabetização e no método pós-construtivista de aprendizado, a educadora Esther Grossi segue lecionando adaptada às mudanças trazidas pela pandemia de Covid-19, substituindo encontros físicos por canais digitais de comunicação. Atualmente ministrando curso online sobre a Teoria dos Campos Conceituais, desenvolvida pelo pesquisador francês Gérard Vergnaud, Esther continua à frente do Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa) e acompanha de perto os problemas na área da educação no Brasil.
Referência em alfabetização e no método pós-construtivista de aprendizado, a educadora Esther Grossi segue lecionando adaptada às mudanças trazidas pela pandemia de Covid-19, substituindo encontros físicos por canais digitais de comunicação. Atualmente ministrando curso online sobre a Teoria dos Campos Conceituais, desenvolvida pelo pesquisador francês Gérard Vergnaud, Esther continua à frente do Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa) e acompanha de perto os problemas na área da educação no Brasil.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Esther Grossi afirma que o método de ensino para filhos de pais alfabetizados não serve para filhos de analfabetos. "E não serve não porque eles são menos inteligentes, é porque eles tiveram menos oportunidades de ter contato com a escrita." Ela também relembra seu período à frente da Secretaria Municipal da Educação na gestão do então prefeito Olívio Dutra (1989-1992) e seus dois mandatos como deputada federal (1995-2002), além de comentar sua atual relação com o Partido dos Trabalhadores (PT) e suas perspectivas sobre o aprender e a sociedade.
Jornal do Comércio - Como a senhora avalia, em retrospecto, a sua trajetória como secretária municipal da Educação em Porto Alegre?
Esther Grossi - O mais positivo possível. Eu brinco que, se algum dia eu estiver deprimida, eu tenho que sair às ruas. Agora na pandemia, a minha única saída é para fazer cooper, eu saio caminhando aqui nas proximidades da minha casa. Mas se eu saía, antes da pandemia, para qualquer lugar da cidade ou até de outros estados, pessoas que estavam na rede quando eu era secretária testemunham que foi um grande momento, de muitas aprendizagens, de muito respeito com o professor. A prefeitura paga muito melhor que o Estado, e foi no governo de Olívio Dutra, e eu, na Secretaria de Educação, que asseguramos esse salário dos professores municipais. Lógico que depois não foi tão atualizado quanto no nosso tempo, mas realmente a valorização era também material aos professores. E eu, claro, sinto muita saudade, porque foi uma experiência muito boa. Tanto que ela foi considerada pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) como uma das melhores gestões em educação naquele período no Brasil. Mas, infelizmente, quando o Tarso (Genro, PT) se elegeu, ele não me manteve, isso aí foi uma lástima. Aí depois eu fiquei deputada federal imediatamente após ter sido secretária. E eu sei que foi porque eu fui secretária da Educação.
JC - E como foi essa experiência na política representativa como deputada federal em dois mandatos?
Esther - Eu realmente gostei muito de ser deputada. Mas, na verdade, eu não deixei de ser professora. Tanto que eu só participei de duas comissões: da Comissão de Educação e da Comissão de Ciência e Tecnologia. E nunca usei da tribuna para me meter em outras áreas. Como o PT tinha uma assessoria muito combativa nas outras áreas, quando ia falar de economia, cultura, segurança, eu me valia da orientação do partido que era bem assessorado. Ao mesmo tempo, na educação, eu era respeitada por todos os partidos. Quando tinha uma votação sobre a educação, colegas vinham me perguntar "qual é a tua posição?". E aí eu dava uma posição, e eles me diziam "infelizmente não vou poder votar como tu, porque meu partido está fechado na outra posição". Mas eles vinham se orientar comigo sabendo que aquela era a minha área de competência. E, claro, eu fiz algumas coisas ótimas. Uma foi participar, sobretudo com (o antropólogo e educador) Darcy Ribeiro, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ele era senador quando eu era deputada, e aí ele teve câncer e caiu o cabelo dele, e ele brincava: "quando o meu cabelo crescer de novo, eu vou pintar que nem o teu". Infelizmente, ele não teve tempo de fazer isso. Depois, fui autora da lei que posteriormente originou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), fiz cursos na Câmara de formação de professores, e acabei alfabetizando 127 funcionários da Câmara que não sabiam ler e escrever. Foi fantástico porque como deputada eu fui também educadora.
JC - Por que decidiu não concorrer mais a cargos eletivos?
Esther - A minha filha Miriam, que é antropóloga e foi minha grande conselheira, foi a Brasília para uma cerimônia no Palácio do Planalto com a doutora (e ex-primeira-dama) Ruth Cardoso, que era antropóloga também, e eu estava junto. Nós saímos de lá e fomos almoçar no restaurante do Senado, e aí a Miriam me sugeriu "mãe, a senhora teve dois mandatos aqui e é uma das poucas pessoas que entende de ciências de aprender no mundo. Aqui, o que tinhas que fazer já fizeste". E eu acatei a sugestão. Anunciei para o partido, com mais de um ano de antecedência, que não ia me recandidatar. E fiz muito bem de deixar o Parlamento. E não é porque eu não estava gostando, mas porque eu achei que já tinha feito, na minha área, o que era importante de fazer, e que tinha um outro lugar em que eu era mais necessária, que era no Geempa, que é uma organização que fez 51 anos dia 9 de setembro, e que tem um currículo retíssimo sobre o aprender, com uma relação muito grande de pessoas de todo o Brasil e do exterior.
JC - A senhora ainda está filiada a algum partido político?
Esther - Não. Eu deixei o PT porque, quando estourou o mensalão, eu não consegui suportar que colegas com os quais eu tinha convivido, que eles tivessem feito essa mesma manobra que os nossos adversários eram os autores antigamente. Então, naquela situação, eu já me desvinculei do PT. E, claro que eu sou uma pessoa de esquerda, mas não sou filiada ao PT nem a nenhum outro partido. E acho também que aprendi com (o educador) Anísio Teixeira, que se filiou ao Partido Comunista e, depois, chegou à conclusão de que era um equívoco, que seria melhor - ele que trabalhava na área da educação - que ficasse independente das frentes partidárias.
JC - Mas a senhora ainda mantém uma relação amistosa com os quadros partidários?
Esther - Claro, lógico. Com o (Luiz Inácio) Lula (da Silva), com a Dilma (Rousseff). E quero mesmo conversar com o Lula, é um objetivo meu conversar com ele sobre a problemática da educação. Eu fui ministra do governo paralelo do Lula (durante o governo FHC). Quando ele se elegeu, evidente, ele queria que eu fosse a ministra. Mas o (ex-senador) Cristovam Buarque queria muito ser ministro, e era muito meu amigo naquela ocasião. Eu, claro, gostaria era de alfabetizar no governo do Lula, tínhamos um plano perfeito, completo, com previsão orçamentária, como seriam as estratégias. E, lógico, a minha área é onde eu tenho mais experiência e competência. E aí o Cristovam perguntou "quer ser ministra?", e eu disse "não, não quero". Aí ele disse "então, vou falar com o Lula". O Lula queria criar até um Ministério da Alfabetização, e o Antonio Palocci foi contra, disse "eu não vou fazer mais um ministério". Aí o Lula disse "não, vai ser uma secretaria vinculada a mim". Aí a sugestão era deixar uma secretaria, mas dentro do Ministério da Educação. Essa secretaria tinha a perspectiva de ser algo muito forte, e eu ia ser a secretária. Pois, 15 dias depois que o Cristovam foi empossado como ministro, ele nomeou um engenheiro agrônomo para essa secretaria (o professor da Universidade e Brasília João Luiz Homem de Carvalho). Eu me penitencio porque eu não fui conversar com o Lula. Eu realmente deixei o barco correr, né? E foi uma lástima, porque nos primeiros quatro anos nós podíamos ter alfabetizado 15 milhões de analfabetos adultos, isso acoplado com o aumento da alfabetização de crianças. Quero reapresentar esse plano.
JC - No discurso político em relação à área da educação, existem setores mais conservadores que se opõem à sua visão pós-construtivista, que traz a dimensão social e cultural ao construtivismo, método que trata o conhecimento como uma construção feita pelo indivíduo com base em sua interação com o ambiente e os objetos desse conhecimento. Por que a senhora acredita que haja essa resistência?
Esther - Porque a casa grande surta quando a senzala aprende. Nós continuamos em um regime escravocrata, em que não se prevê que as classes populares aprendam. Então, temos, nas escolas públicas, um déficit enorme de aprendizagem. Tanto que, em 2019, eu fui alfabetizar no Morro da Cruz crianças de três escolas públicas cujos professores me enviaram como um trabalho complementar que eu fazia no contraturno. Eles eram uns capetas, tidos como os piores nas escolas e, em cinco meses, consegui alfabetizar todos eles. Havia crianças que estavam há sete anos na escola e não aprendiam a ler, não sabiam nem as vogais, porque a metodologia é equivocada. A metodologia que serve para filhos de pais alfabetizados, que têm computador, livros em casa, que usam a escrita regularmente, não serve para filhos de analfabetos. E não serve não porque eles são menos inteligentes, é porque eles tiveram menos oportunidades de ter contato com a escrita. Há um pensador norte-americano chamado Jerome Bruner que diz que a gente pode aprender qualquer coisa, em qualquer idade, desde que tenha boas provocações. Então, o problema da não-aprendizagem é porque as crianças têm um background do seu passado em casa muito menor que os outros. E aí, quanto menos pessoas pensantes, melhor para se conservar essa desigualdade. Claro que também há uma reação ao que é novo. Por exemplo, a teoria dos campos conceituais não é fácil, ela é supercomplexa, com muitas ideias novas, e existe uma resistência ao novo em qualquer circunstância. Mas a resistência ao pós-construtivismo vai além dessa resistência ao novo. É porque, com o pós-construtivismo, as crianças do povo podem aprender, e aí não é interesse para eles. Nas últimas Avaliações Nacionais de Alfabetização que foram feitas, nós só alfabetizamos em torno de 43% do alunado a cada ano. Isso é um horror! Porque a gente sabe que nas escolas particulares praticamente 100% das crianças se alfabetizam. E, nas escolas públicas, não é porque as crianças tenham problemas, não. É porque é usada uma metodologia que serve para alunos que têm pai e mãe letrados, com material escrito em casa, e os que não têm precisam dessa metodologia baseada no pós-construtivismo e na teoria dos campos conceituais.
JC – E a senhora acredita que é por isso que existe tanta resistência, inclusive por parte do governo federal, à ideia de Paulo Freire como patrono da educação brasileira?
Esther – Lógico, Paulo Freire é justamente o contrário de tudo isso, ele fez a pedagogia do oprimido, que mostrava justamente o quanto os oprimidos podem se libertar pela conquista justamente dos seus conhecimentos, do seu valor - do seu valor pessoal. Então o Paulo Freire representa, para esse governo que aí está, o contraponto.
JC – A senhora defende a importância de um educador dominar o conceito de psicogênese, na sua definição “a fatia intermediária da aprendizagem entre o conteúdo científico e o processo do próprio aluno, que ele próprio constrói através de circunstâncias do seu próprio cotidiano”. Acredita que discussões sociais recentes sobre questões raciais, de gênero e sexuais que têm acontecido na sociedade podem ampliar de alguma maneira o acesso à ideia da psicogênese dentro das escolas e influenciar uma mudança pedagógica?
Esther – A psicogênese da leitura e da escrita, a psicogênese da alfabetização, foi elaborada por Emília Ferreiro, que é uma argentina, que vive agora no México, mas que estudou em Genebra com Jean Piaget (psicólogo e criador da teoria cognitiva). E a psicogênese, sozinha, não dá conta da aprendizagem dos alunos. Eu estive três vezes em Genebra, porque o meu diretor de tese foi orientando do Piaget, e me mandou a Genebra para fazer estágio lá, aprender com os cientistas do Centro Internacional de Epistemologia Genética (Cieg). E aí lá eu encontrei com Emília Ferreiro, que me deu de presente o primeiro livro dela sobre psicogênese, que eu trouxe para o Brasil. Mas Emília Ferreiro não superou o construtivismo. O que eu ouvi do próprio Piaget, da boca do Piaget, quando eu contei que Lauro de Oliveira Lima (pedagogista brasileiro) tinha uma escola que se chamava Chave do Tamanho, que se dizia uma escola construtivista, ele disse “mas como uma escola construtivista? Não pode haver uma didática construtivista, porque eu não estudei todo o aluno, eu estudei só o sujeito da inteligência, só o sujeito lógico. E o sujeito é um ser desejante, é um ser cultural, é um ser social”.  Então a psicogênese, se ela não se associar aos aspectos que estou falando, desejantes, sociais e psicanalíticos da pessoa, ela não constrói uma didática. Além disso, o Piaget, como inicialmente ele era biólogo, teve sempre um viés inatista. Ele não acreditava na escola, ele achava que a criança se desenvolvia ao natural na sociedade. E Emília Ferreiro também achava isso, ela achava que a criança vai aprender simplesmente com o contato com o texto. E não é por aí, é preciso criar boas oportunidades para que o aluno realmente aprenda. Esse é um ato político. Paulo Freire também colocou muito bem que “por trás de toda a prática, há uma teoria”. Não existe um educador neutro, ele ensina com alguns fundamentos.
JC - Nos últimos anos despontaram debates levantados por alguns movimentos dentro da comunidade LGBT para propor a inclusão de um novo pronome neutro na língua portuguesa. Como que a senhora percebe mudanças desse tipo dentro da área da pedagogia?
Esther - Pode saber que é muito clara a minha posição: o ensino tem que acompanhar as mudanças históricas, sociais, políticas e econômicas de uma população. A homossexualidade é histórica, mas agora ela está sendo admitida na nossa civilização abertamente. Então, isso tudo tem que entrar na escola, e a língua tem que acompanhar essa mudança. A língua é viva, e o bom da língua é isso, ela se apodera do cotidiano. Fico sempre muito curiosa de saber por que, por exemplo, que algumas palavras são femininas e outras são masculinas, e isso varia de uma língua para outra. No português "a ponte", feminina, no francês "le pont", masculino. Isso aí tem um fundamento na vivência das pessoas, na contribuição que as pessoas que constituíram essa língua, que falavam essa língua, nela expressaram. Então, eu sou precisamente a favor; se tem o que mudar, vamos mudar. E porque, se existe a língua, tem que servir para a comunicação. Se existem novos objetos, se existe toda a gama dos LGBTs, vamos ao encontro disso. E tenho certeza de que vai fazer muito bem para as crianças. Na minha turma lá no Morro da Cruz tinha um meninozinho que os colegas diziam a ele, zombavam, como se ele fosse "bicha", e ele sofreu muito. A mãe dele me contou que teve dias em que ele chegou em casa e foi dormir chorando. E aí eu abordei esse conteúdo em sala de aula com muita clareza e foi ótimo. O menino se alfabetizou, permaneceu na turma, foi respeitado, e acabou a história de ofender o outro chamando de "bicha", de "viado". E, depois que eu saí de lá, um outro meninozinho da minha turma se declarou abertamente trans, ele quer ser menina. Então, isso está aí, no nosso dia a dia.

 

Perfil

Esther Pillar Grossi nasceu na cidade de Santa Maria, em 24 de abril de 1936. É a nona entre dez filhos. Se mudou em 1955 para Porto Alegre para estudar Matemática, e nesta área fez mestrado na Universidade de Sorbonne, em Paris. Em 1985, concluiu o doutorado em Psicologia da Inteligência na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na Universidade de Paris com a tese Psicogênese da Aprendizagem do Conceito de Múltiplo, sob a orientação de Gérard Vergnaud. Em setembro de 1970, fundou, junto a mais 49 professores de Porto Alegre, o Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa). Na área acadêmica, é referência na área do pós-construtivismo e da alfabetização, e é autora de uma série de livros sobre ensino e educação. Foi casada com o pediatra Sérgio Grossi, falecido em 2015, e tem três filhos, Alberto, Gabriel e Miriam.