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Entrevista especial

- Publicada em 30 de Agosto de 2020 às 20:40

Projetos de reforma tributária não resolvem distorções, critica Maria Lucia Fattorelli, da Auditoria Cidadã

Maria Lucia Fattorelli afirma que modelo tributário brasileiro é considerado o mais injusto do mundo

Maria Lucia Fattorelli afirma que modelo tributário brasileiro é considerado o mais injusto do mundo


CLAITON DORNELLES/JC
Para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã, Maria Lúcia Fattorelli, os principais projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso Nacional não resolvem as distorções do sistema tributário brasileiro. Ela acredita que "uma proposta que não muda a matriz, que não aumenta tributação sobre o patrimônio e sobre as altas rendas e lucros, não pode ser chamado de reforma".
Para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã, Maria Lúcia Fattorelli, os principais projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso Nacional não resolvem as distorções do sistema tributário brasileiro. Ela acredita que "uma proposta que não muda a matriz, que não aumenta tributação sobre o patrimônio e sobre as altas rendas e lucros, não pode ser chamado de reforma".
Quanto às propostas que sugerem a simplificação do sistema, unificando impostos federais, estaduais e municipais em um único tributo, a coordenadora da Auditoria Cidadã alerta para o risco de aumento da carga tributária. Isso porque setores que hoje pagam somente um tributo municipal, por exemplo, passariam a pagar mais dois impostos embutidos na alíquota unificada.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Maria Lucia também analisa as medidas do governo federal para combater a crise econômica causada pela pandemia de coronavírus no Brasil. Ela explica por que o socorro de R$ 1,2 trilhão repassado pela União aos bancos não tem chegado às empresas e pessoas físicas na forma de empréstimos. Ela também alerta para a mudança na Constituição que pode permitir que o Banco Central compre papeis podres de bancos e fundos de investimentos. Ao concluir sua análise, ela não hesita ao dizer: "não falta dinheiro no Brasil, o problema são as escolhas de como aplicá-lo".
Jornal do Comércio - Qual o principal problema do modelo tributário brasileiro?
Maria Lucia Fattorelli - No modelo tributário brasileiro, cerca de metade de todos os tributos federais, estaduais e municipais incide sobre o consumo. É o caso do ICMS estadual, do ISS municipal, do IPI e PIS, que são federais. Só que o tributo que incide sobre o consumo é considerado um tipo de tributo muito injusto, porque, ao incidir sobre o produto, não faz distinção entre a capacidade contributiva de cada pessoa. Isso significa que quem compra um pacote de macarrão, por exemplo, está pagando entre 25% e 30% de tributos federais e estaduais. Mas a injustiça está aqui: se um miserável que recebe esmola na rua comprar aquele macarrão, vai pagar aqueles 30% de tributos embutidos no preço; se um bilionário que ganha milhões por mês comprar aquele mesmo macarrão, vai pagar os mesmos 30% naquele produto. Então, a tributação sobre o consumo não respeita a distinta condição das pessoas. Por isso, o modelo tributário brasileiro é considerado o mais injusto do mundo. Além disso, os tributos sobre patrimônio estão em cerca de 4%. O imposto sobre a renda tributa basicamente salário de trabalhadores. O banqueiro que recebe bilhões de lucro paga zero de imposto de renda, zero de contribuição para a Previdência.
JC - Por que os banqueiros não pagam nada?
Maria Lucia - Em 1995, foi aprovada a Lei de Isenção sobre os Lucros Distribuídos. A desculpa era a seguinte: só a pessoa jurídica vai pagar imposto, a pessoa física não precisa mais pagar nada sobre o lucro; se a pessoa jurídica já paga sobre o lucro da empresa, os sócios não precisariam pagar quando recebessem sua parte do lucro da empresa; afinal o lucro já havia sido tributado na pessoa jurídica. Seria uma bitributação. Mas, se fosse assim, tudo seria bitributação. O trabalhador também está participando da produção de riqueza de uma empresa. Essa lógica é tão errada que é praticada somente em dois países em todo o planeta: no Brasil e na Estônia. Só que, na Estônia, a tributação da pessoa jurídica é pesadíssima; aqui no Brasil, não é. A isenção na distribuição de lucros é apenas uma das distorções do sistema tributário brasileiro. Há muitas outras, como a não tributação de fortunas - que está prevista na Constituição de 1988 e até hoje não foi regulamentado. Os projetos de reforma tributária que estão no Congresso não enfrentam esses problemas.
JC - Os projetos no Congresso não resolvem o problema?
Maria Lucia - Se for uma reforma que não muda essa matriz, que não aumenta tributação sobre o patrimônio e sobre as altas rendas e lucros, não pode ser chamado de reforma. O que consta na PEC 45, que tramita na Câmara dos Deputados, e na PEC 110, que tramita no Senado, é basicamente a transformação dos tributos sobre o consumo das esferas federal, estadual e municipal em um novo imposto chamado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A justificativa é que isso vai simplificar para o contribuinte. Porém, essa simplificação vai causar um aumento de alíquotas. Afinal, existem setores que só pagam ISS (municipal), não pagam ICMS (estadual) nem IPI (federal). No momento em que os três impostos se tornam um só, esses setores vão pagar os três impostos embutidos no IBS. Ou seja, também vão pagar os dois impostos que não pagavam antes.
JC - No Congresso, a reforma passa por uma análise política. Isso pode dificultar uma mudança da matriz tributária?
Maria Lucia - Com certeza. Inclusive, foi apresentada uma emenda substitutiva global à PEC 45, que está assinada por parlamentares de vários partidos considerados de esquerda. O problema é que nem esses parlamentares que assinaram essa emenda substitutiva fazem a devida propagação dessas propostas. É uma proposta que vem exatamente nessa linha de mudar a matriz: passa a tributar grandes fortunas, tributa os lucros, acaba com a isenção na distribuição de lucros, na isenção em remessas para o exterior, aumenta o imposto sobre heranças e várias outras distorções do modelo. Então, a questão política é uma engrenagem inseparável. É justamente pela omissão brutal da classe política que esses mecanismos da política monetária, de política econômica, política tributária chegaram a essa vergonha (no modelo tributário brasileiro).
JC - A Auditoria Cidadã tem criticado as medidas do governo federal para combater a crise econômica, causada pela pandemia de coronavírus. Parte desses recursos está se perdendo no caminho e não estão chegando às empresas, aos cidadãos. Por quê?
Maria Lucia - No dia 20 de março, uma sexta-feira, o Congresso Nacional confirmou o estado de calamidade pública por causa da pandemia de coronavírus. Na segunda-feira, dia 23 de março, o Banco Central (BC) anunciou um pacote de R$ 1,2 trilhão em medidas para dar liquidez aos bancos. Com isso, eles deveriam emprestar dinheiro às empresas para que elas não precisassem fechar as portas ou demitir funcionários. A medida do BC buscava viabilizar empréstimos rápidos e baratos (com juros baixos), principalmente para as micro, pequenas e médias empresas - que são as que mais geram emprego no Brasil. Assim, o objetivo era evitar o desemprego.
JC - Na semana seguinte ao anúncio do BC, que foi bastante saudado, as empresas começaram a denunciar que os financiamentos não estavam chegando ou que o custo dos empréstimos estava muito alto, se tornando inacessíveis. O que aconteceu com esse R$ 1,2 trilhão?
Maria Lucia - O que aconteceu no Brasil foi que o BC liberou liquidez para os bancos, mas os bancos não emprestaram. Em vez disso, ao embutir nos juros de mercado o risco da pandemia, dobraram as taxas. Ao mesmo tempo, várias linhas de crédito que existiam antes da pandemia deixaram de existir. O resultado foi que, em abril, com um mês de pandemia, já tínhamos 600 mil empresas fechadas. A maioria era de pequenas empresas, conforme denunciaram as entidades representativas. O ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que o dinheiro ficou "empossado" nos bancos, que só passaram a emprestar, depois que o Congresso aprovou o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) e que o Tesouro começou a injetar nos bancos para eles emprestarem. Em outras palavras, o Tesouro está dando garantias para os bancos. Ora, os bancos existem para emprestar dinheiro e o risco faz parte de qualquer negócio.
JC - Por que a maior parte dos recursos anunciados pelo BC não chegou às empresas?
Maria Lucia - Os bancos não emprestaram às empresas, porque o BC aceita que as instituições financeiras façam uma espécie de depósito voluntário da sua sobra de caixa no BC (a sobra de caixa é o dinheiro que deveria ser destinado a linhas de crédito para empresas e pessoas, mas que acaba ficando no caixa dos bancos, devido à baixa saída de empréstimos). Em vez de eles (as instituições financeiras) emprestarem para as empresas e a população, eles pegam esse dinheiro (que não foi emprestado) e depositam no BC. Ao receber esse dinheiro, o BC passa a remunerar (pagar juros) os bancos todos os dias. Então, por que os bancos vão correr o risco de emprestar para uma empresa ou para uma família, se eles podem depositar o dinheiro no BC? Por isso, os bancos aumentam os juros dos financiamentos às empresas, para o dinheiro sobrar no seu caixa e eles depositarem essa sobra no BC. É importante dizer que essa dinâmica não tem fundamentação legal.
JC - O BC alega que a remuneração das sobras dos bancos serve para controlar a quantidade de moeda em circulação e, por consequência, a inflação...
Maria Lucia - Essa é a desculpa. Mas isso é desmentido por estudos do próprio BC, que apontam que a inflação no Brasil é provocada pelo aumento dos preços administrados e pelo aumento dos preços de alimentos. Os preços administrados são aqueles teoricamente controlados pelo governo, como combustível, gás de cozinha, planos de saúde, tarifas de energia elétrica, transporte público etc. A desculpa do BC para controlar a inflação é subir juros (o BC estimularia o aumento dos juros de mercado, através da remuneração da sobra de caixa dos bancos) e enxugar moeda. Só que subir os juros dos empréstimos para as empresas não faz o preço da gasolina cair. Da mesma forma, enxugar a moeda que está nos bancos disponível para empréstimos não faz o preço do tomate cair. Então, a desculpa de remunerar a sobra de caixa para controlar a inflação é desmentida pelo próprio BC.
JC - Alguns dias depois de anunciar R$ 1,2 trilhão destinado à liquidez dos bancos, o governo também enviou uma PEC regulando as medidas que viriam a ser tomadas nos meses seguintes para amenizar a crise. Essa PEC já foi aprovada, se tornando a Emenda Constitucional (EC) 106. O texto é objeto de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), que questiona a constitucionalidade da proposta. A Auditoria Cidadã criticou, pelo menos, 11 pontos dessa EC. Por quê?
Maria Lucia - Essa emenda tem uma série de regalias para o que denominamos sistema da dívida. Por exemplo, libera a emissão de títulos da dívida à vontade para pagar juros. Enquanto os gastos urgentes com educação e saúde estão submetidos ao teto de gastos, a dívida pública não está. Outro mecanismo criado foi a autorização para o BC comprar qualquer ativo dos bancos. No Senado, os parlamentares chegaram a detalhar quais ativos o BC poderia comprar. Mas, quando o texto foi para a Câmara dos Deputados, tiraram esse detalhamento. Então, não foi estabelecido o tipo de ativo que poderia ser comprado, nem o prazo do ativo, nem a origem. Nos últimos 15 anos, os bancos acumulam quase R$ 1 trilhão de papéis podres nas suas carteiras. A EC 106 liberou o BC para comprar esses papéis, por exemplo.
JC - Quando o auxílio emergencial foi discutido no Congresso, o ministro Guedes argumentou que não havia recursos suficientes para conceder R$ 600,00 - como foi aprovado.
Maria Lucia - As pessoas precisam perceber que não falta dinheiro no Brasil. Existe R$ 1,5 trilhão de recursos disponíveis nos bancos para ser emprestado a empresas e pessoas físicas. Só que esse dinheiro é depositado no BC, sendo remunerado diariamente. Para essa remuneração, não falta dinheiro. Também não falta dinheiro para o governo comprar quase R$ 1 trilhão de cestas de títulos, como ele propôs. Tudo isso sem contar as centenas de bilhões gastos no sistema da dívida. Então, o problema do Brasil não é o dinheiro, são as escolhas de onde gastar esses recursos. E essas escolhas estão conectadas com o modelo econômico. Um dos eixos que sustenta esse modelo é a política monetária do BC, que envolve a política de juros e liquidez da moeda. O outro eixo é o modelo tributário.

Perfil

Maria Lucia Fattorelli Carneiro nasceu em Belo Horizonte (MG), em 10 de abril de 1956. Graduou-se em Administração e em Contabilidade pela UFMG. Em 1982, passou em um concurso da Receita Federal, tornando-se auditora - profissão na qual se aposentou. Possui especialização MBA na Fundação Getulio Vargas, em Administração Tributária. Em 1999, presidiu o sindicato dos auditores fiscais em Belo Horizonte. No mesmo ano, organizou o Fisco Fórum, movimento que reuniu auditores para analisar a dívida. Nos anos 2000, participou do plebiscito popular sobre a dívida pública, organizado por entidades como a OAB e CNBB. Em 2001, foi criada a organização não-governamental Auditoria Cidadã da Dívida, coordenada por Maria Lucia até hoje. Entre 2009 e 2010, foi assessora técnica da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados. Foi filiada ao PSOL de 2009 a 2014. Chegou a concorrer a deputada federal em 2014. Deixou o partido ao final do pleito, a pedido do conselho político da Auditoria Cidadã, para preservar o caráter suprapartidário do órgão.