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entrevista especial

- Publicada em 30 de Dezembro de 2019 às 03:00

Obscurantismo é pior agora, opina professora Lorena Holzmann

'A universidade não sofreu (na ditadura militar) o ataque que está sofrendo hoje', afirma Lorena Holzmann

'A universidade não sofreu (na ditadura militar) o ataque que está sofrendo hoje', afirma Lorena Holzmann


fotos: MARCO QUINTANA/JC
Em duas ocasiões, nos anos de 1964 e 1969, a ditadura militar que governava o Brasil fez a expulsão de dezenas de professores, servidores e até estudantes das universidades federais, tidos como "esquerdizantes" e "doutrinadores". Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), isso ocorreu com docentes das faculdades de Arquitetura, Economia, Direito e Filosofia, que ficaram estigmatizados pelo rótulo negativo imposto pelo regime.
Em duas ocasiões, nos anos de 1964 e 1969, a ditadura militar que governava o Brasil fez a expulsão de dezenas de professores, servidores e até estudantes das universidades federais, tidos como "esquerdizantes" e "doutrinadores". Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), isso ocorreu com docentes das faculdades de Arquitetura, Economia, Direito e Filosofia, que ficaram estigmatizados pelo rótulo negativo imposto pelo regime.
Quem relembra e resgata esses fatos é a professora Lorena Holzmann, estudante de Ciências Sociais da universidade durante os expurgos, e que, à véspera da anistia, já como professora da Ufrgs, atuou na organização de um livro a respeito do tema. Agora, os 50 anos dos expurgos da Ufrgs motivaram a inauguração de um memorial em frente ao anexo 3 da Reitoria, no Campus Centro.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Lorena salienta que, mesmo com o clima de medo que pairava no ambiente acadêmico, foi durante a ditadura que se iniciaram os cursos de pós-graduação na Ufrgs, em "uma visão desenvolvimentista que favorecia os segmentos superiores da escala social". Segundo a professora, um contexto que se agravou no presente, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), marcado por ações que receberam críticas da comunidade acadêmica - como a mudança na escolha de reitores e acusações sem provas por parte do ministro da Educação, Abraham Weintraub. "Não havia um ataque violento como há hoje contra a ciência, contra o conhecimento, contra a cultura", aponta.
Jornal do Comércio - O que foram os expurgos na Ufrgs, que completaram 50 anos em 2019?
Lorena Holzmann - Nos momentos que antecederam (o golpe de) 1964, toda a sociedade brasileira estava muito mobilizada em função das reformas de base, daquelas reivindicações, e a reforma universitária era uma delas. E havia um clima de grande mobilização nas universidades, inclusive aqui na Ufrgs, discutindo como seria essa nova universidade que estava sendo pensada. Havia sempre contradições, oposições. Isso criava um clima de muita mobilização, mas também de hostilidade. Em seguida, começaram a existir as pressões. Logo depois do golpe, houve intervenção nos sindicatos, prisões de lideranças. Na universidade, por determinação do Ministério da Educação, foram formadas comissões de inquérito para avaliar a conduta de professores "esquerdizantes", que estavam "doutrinando" a juventude, que eram contra os valores revolucionários. Foi um arremedo de tribunal... Aí foram feitas as listas, e alguns professores foram expulsos: a primeira leva foi de 17 professores, em 1964, que foram expurgados.
JC - A maior parte de que cursos?
Lorena - Da Arquitetura, do Direito e da Economia. E, no segundo, foi um grupo muito grande da faculdade de Filosofia. O curso de Filosofia da Ufrgs foi desmontado, porque os mais importantes professores foram afastados.
JC - Os professores expurgados em 1964 não foram os únicos.
Lorena - Foram em dois momentos. Em um segundo momento, em 1969, não houve nenhum inquérito, nenhum professor foi solicitado a dar depoimentos, absolutamente nada. Só houve a expulsão, anunciada no Diário Oficial da União ou na Voz do Brasil, que todo mundo ouvia na época. Nesses dias, a filha de um dos professores expurgados comentou como é que o pai ficou sabendo do seu afastamento. Ele estava indo de táxi para a universidade e ouviu o nome dele (na Voz do Brasil), então nem foi mais para a universidade.
JC - Que impacto a saída desses professores teve no dia a dia da universidade?
Lorena - Na Filosofia, o dia a dia continuou, a vida cotidiana continuou. Na minha área, que era Ciências Sociais, o único a ser afastado foi o professor Leônidas Xausa, que era da (Ciência) Política, mas ele já tinha alguns discípulos. Eu já tinha trabalhado com ele, era estudante e fui bolsista de pesquisa na cadeira de Política. Uma coisa muito curiosa é que na época da ditadura militar houve o desenvolvimento dos programas de pós-graduação. O nosso curso de pós-graduação foi formado por volta de 1972. Contraditoriamente, a gente até supõe que seja, um interesse de obter um conhecimento para poder definir a situação do próprio governo, que tinha, digamos assim, até um projeto de desenvolvimento, uma visão desenvolvimentista que favorecia os segmentos superiores da escala social.
JC - Depois do expurgo, o que aconteceu aos professores que saíram?
Lorena - Cada um seguiu sua vida, alguns trabalharam como podiam em sua área. Alguns professores da Arquitetura, como o Edgar Graeff, foram dar aula em Brasília. Acho que o professor Graeff trabalhou na Universidade de Brasília (UnB) até morrer. Outros tiveram muitas dificuldades, outros foram embora para o exterior, porque havia um clima de medo. Quando reunimos os professores para juntar material para o livro, um deles falou da dificuldade que tinha, porque muitos ficaram estigmatizados. Como havia um clima de muito medo, as pessoas evitavam encontrá-los.
JC - Quando esse clima começou a se dissipar? Foi só em 1979, com a anistia?
Lorena - A partir de 1965, o movimento sindical passou a ser todo dirigido pelo Ministério do Trabalho, sem nenhuma liberdade. A estrutura e o funcionamento sindical dependiam de autorização do ministério. As comemorações do 1 de maio eram sempre oficiais. Mas, por volta de 1975, 1976, começou a haver a Semana Sindical Independente, e aí os professores da universidade tinham um papel importante nisso. Começou a se discutir a questão da contenção salarial, da falta de liberdade, dos problemas vinculados ao trabalho e a questão sindical, a partir do meio dos anos 1970, já havia a onda dos movimentos contra a carestia, pela moradia, movimento dos clubes de mães, sobretudo em São Paulo. As greves de 1978 foram chave nesse movimento todo.
JC - Ocorreu uma distensão...
Lorena - Sim, porque as coisas não param. A repressão era violenta, mas as coisas estavam se articulando por outras vias, e o movimento pela anistia já estava se articulando também, então aqui apareceram, nesse contexto de mobilizações, as associações dos docentes das universidades. Tínhamos conquistas a fazer, reivindicações a encaminhar, e elas não podiam ser individuais, tinham que ser coletivas.
JC - No caso da exposição que a Ufrgs está realizando sobre os 50 anos dos últimos expurgos, qual a importância de se marcar essa data?
Lorena - Quem não resgata o passado não tem futuro, e acho até que talvez seja algo que esteja muito impregnado na sociedade brasileira, o não enfrentamento daquilo que é ruim na nossa história. Isso se dá em relação à escravidão, por exemplo. Rui Barbosa mandou queimar o que podia de documentos relativos à escravidão. É fundamental o resgate da história, para que o que aconteceu não se repita. As pessoas conhecendo, sabendo o que aconteceu, têm critério para avaliar o que ocorreu na universidade. Professores das universidades foram algozes de seus colegas, porque essas comissões (de inquérito) foram formadas pelos próprios professores.
JC - Que estavam em campos opostos?
Lorena - O que foi verificado nos documentos que a gente tinha, pelos depoimentos, é que uma situação dessas (dos expurgos) é uma chance de desforras pessoais. Então "aquele cara é uma pedra no meu caminho para fazer a minha carreira". Muito disso aconteceu.
JC - A partir da redemocratização, como é que foram as questões de memória, verdade e justiça na Ufrgs?
Lorena - Alguns professores retornaram à universidade. Lembro que, na Filosofia, houve uma recepção do professor (Ernani Maria) Fiori (1914-1985) e, poderia se dizer assim, um pedido de desculpas, não daqueles que eram seus opositores, que também não se manifestaram abertamente quando ele saiu, em 1969. Mas houve um tipo de retratação.
JC - Como a senhora vê, hoje, a questão da liberdade de expressão e de cátedra nas universidades federais?
Lorena - Quando eu era estudante e, depois, quando comecei a dar aula, não havia um ataque violento como há hoje contra a ciência, contra o conhecimento, contra a cultura, não havia. Acho que, hoje, a gente está em um caos.
JC - Comparando com 50 anos atrás?
Lorena - Isso. A universidade não sofreu o ataque que está sofrendo hoje. Acho que o obscurantismo não era tão violento naquela época como é hoje, são diferentes condições, as condições de convivência na universidade eram aquilo que eu disse: um temor, uma suspeita, todo mundo muito cauteloso. Hoje está tudo muito descarado, tem um ministro da Educação que diz horrores, é um ataque à ciência, é um cerceamento. A universidade desenvolveu a pós-graduação na época da ditadura militar e recebia recursos pra isso, hoje está sendo tudo cortado. Há formas diferentes de exercer um poder autoritário. Hoje, o que está havendo é um desmantelamento do Estado, dos serviços públicos, das estruturas de pesquisa, de ciência, de conhecimento, de cultura, tudo isso. Está tudo sendo atacado de uma forma muito rasteira. É obscurantismo mesmo, tanto que há quem acredite, lá no ministério (da Educação), que a Terra é plana.
JC - A senhora comentou que as pessoas seguiram se mobilizando naquela época. Como as vê se organizando hoje?
Lorena - Vou dar alguns exemplos: Mães e Pais pela Democracia, que surgiu no início do ano em função de uma manifestação de alunos do Colégio Rosário. Existem os Juristas pela Democracia, há, na universidade, o movimento Professores pela Democracia. Não se pode dizer ainda que seja um movimento de massa, mas acho que a juventude está mobilizada. O 15 de maio foi, sobretudo, uma promoção dos estudantes, estudantes secundaristas e universitários. Tem havido grandes manifestações de rua, mas está faltando articular isso em caráter mais permanente. Quando saiu este projeto, o Future-se, houve uma grande assembleia na Ufrgs - e também mobilizações ali nas Ciências da Saúde - que encheu o Salão de Atos da Ufrgs. Foi quase que unânime a oposição ao projeto, porque ele castra a universidade, não faz avançar a universidade e seus propósitos. Ao contrário: ele é extremamente recessivo.
JC - Uma das acusações que o ministro da Educação faz é que, nas universidades federais, existe um pensamento mais hegemônico de esquerda. Isso é verdade, ou já aconteceu?
Lorena - A universidade não é uma coisa homogênea. Dentro dela, existem áreas mais críticas, mais de esquerda, outras não estão nem aí, isso é quase histórico. Mas dizer que universidades federais abrigam um pensamento dominante de esquerda é não conhecer a instituição, é não conhecer a composição dela. Uma vez, um aluno me perguntou: "A senhora é liberal?". Eu estava dando aula na Economia e disse: "Ué, por que não?". "Porque aqui a maioria dos professores são neoliberais." Mas o espaço da universidade é para isso: vamos trazer o pensamento neoliberal: propõe-se isso e aquilo, não para se agarrar a uma "bíblia", mas como uma forma de analisar, de interpretar e propor soluções para a sociedade. Não vejo nada de mal em ter professores neoliberais na faculdade de Economia, por exemplo. Dizer que há predomínio da esquerda é uma exibição de desconhecimento absoluto, nem nas Ciências Sociais ou na área de História existe essa hegemonia.

Perfil

Lorena Holzmann nasceu em Porto Alegre, no ano de 1942. Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 1967. Fez mestrado em Sociologia também pela Ufrgs em 1977 e concluiu o doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1992. É uma das fundadoras da Associação de Docentes da Ufrgs (Adufrgs), em 1978. Atuou como professora titular da Ufrgs até 2010. Depois que se aposentou, lecionou outros cinco anos na pós-graduação em Sociologia, como professora convidada. Também é membro do corpo editorial das revistas Sociologia (São Paulo/Escala) e Isegoria - Revista Brasileira de Ciências Sociais e Humanas. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Outras Sociologias Específicas, e atua, principalmente, nos temas de cooperativas, gestão do trabalho e democracia na fábrica. Em 2008, foi coorganizadora do livro Universidade e repressão - Os expurgos na Ufrgs. É também coorganizadora, junto com Antonio David Cattani, do Dicionário de Trabalho e Tecnologia, publicado em 2006 pela editora da Ufrgs.