A mais recente mudança nas regras válidas para as eleições municipais de 2020 - sancionadas em 4 de outubro pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) - recebeu um olhar crítico do coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul, Rodrigo Zilio. O promotor rechaça principalmente medidas como o uso do fundo partidário para o pagamento de multas eleitorais. "É um grande deboche", classifica.
Porém, nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Zilio coloca como problema, sobretudo, o fato de que, em todo ano ímpar - como em 2019 -, o Congresso Nacional faz mudanças apenas pontuais. "Nunca coloca a reforma política no centro da pauta de debate", critica. Zilio reforça que, "sempre que mexeu em política eleitoral, de 2013 para cá, foram reformas para piorar o sistema" e para "criar imunidades para dirigentes partidários".
Na avaliação do promotor, todos esses fatores reforçam o descrédito da classe política perante o eleitor. "Temo que mudanças legislativas venham a ser mais um tijolo nessa pirâmide de descrença que se está passando para o eleitor", alerta. "Precisamos fazer o máximo de esforço para aperfeiçoar o regime democrático."
Jornal do Comércio - Como o senhor avalia a reforma da legislação para as eleições de 2020, tanto na parte sancionada pelo presidente quanto em seus vetos?
Rodrigo Zilio - Isso é uma coisa bem empírica de eleição para eleição. Em todo ano ímpar, o Congresso nunca trabalha com uma agenda pró-ativa, ou seja, nunca coloca a reforma política no centro da pauta de debate. Ela sempre fica periférica a outros temas. Neste ano, por exemplo, a reforma da Previdência pautou e está até hoje pautando. E aí sobrevive a lógica do legislador eleitoral. Temos um grande problema sobre a questão da integridade do legislador. Ele deveria respeitar o sistema jurídico vigente, e sempre produzir normas de aperfeiçoamento do sistema de Justiça. Mas o legislador eleitoral é o mesmo beneficiário da norma eleitoral; estamos falando de alguém que cria regras do jogo em que ele mesmo se beneficia. Neste ano, aquilo que eles trouxeram como reforma eleitoral foram regras de autobenefício. Se, antes, existia até um certo constrangimento do legislador, hoje, é cada vez mais claro que o legislador está perdendo todo esse excesso de zelo e está sendo o mais transparente possível quanto às suas intenções de preservação do status quo. Sempre que se mexeu em política eleitoral, de 2013 para cá, foram reformas para piorar o sistema, para afrouxar os mecanismos de fiscalização, dar menos transparência para o financiamento de campanha e criar imunidades para dirigentes partidários. Basicamente, o legislador se preocupou, na questão do fundo partidário, em introduzir dispositivos permitindo situações que vejo com muita preocupação. Ele está permitindo que o fundo partidário - que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) diz que é dinheiro público - seja usado para os partidos para pagar multa por infrações eleitorais. Quer dizer, é um grande deboche. A pessoa vai praticar um certame concorrencial, que é uma eleição, e tem regras de jogo preestabelecidas, que são igualitárias; fere e viola a regra do jogo, é punido por isso, e aí ele vai pagar essa infração com o dinheiro público. Esse artigo foi vetado, mas, se não fosse, acredito que seria objeto, tranquilamente, de uma ação de inconstitucionalidade pelo procurador-geral da República.
JC - Essas mudanças regulares aumentam o risco de judicialização?
Zilio - Sem dúvida nenhuma. Não há uma reforma estrutural, e o legislador não percebe que a legislação eleitoral é uma malha, composta por Código Eleitoral, Lei dos Partidos Políticos, Lei das Eleições, Lei de Inelegibilidades. Então, quando essa malha é modificada, tem que ser com coerência. Isso, sim, aumenta muito o risco de judicialização, porque, se eu não pedir para o Supremo que reconheça que não pode usar o recurso público para pagar infração eleitoral pois isso é inconstitucional, vou deixar que cada juiz eleitoral - estamos falando de 2,6 mil no País em uma eleição - decida de um jeito, e isso vai se tornando uma bola de neve.
JC - Dificulta a prestação de contas de campanha?
Zilio - Hoje, a prestação de contas não funciona. Não temos a mínima condição de analisar as contas de campanha dos candidatos eleitos hoje, porque temos menos de 40 dias para isso. Se eu quiser entrar com uma ação porque houve abuso de poder econômico, por exemplo, tenho prazo até janeiro do ano subsequente à eleição. Às vezes, tenho que fazer uma quebra de sigilo bancário e fiscal que demora seis meses para vir. Peço em agosto e ela só virá em março, mas em janeiro tinha que ter entrado com a ação. O que vejo é que o legislador nunca se preocupa em conferir mecanismos de fiscalização efetivos e idôneos para o MP e a Justiça Eleitoral.
JC - A justificativa para introduzir um fundo público de financiamento foi coibir caixa-2 e os ilícitos. Qual foi o resultado disso?
Zilio - Não coibiu. Pelo contrário, temos visto no noticiário recursos de caixa-2 sendo empregados através de laranjas. Quer dizer, as pessoas criam contratos com empresas gráficas que nunca prestam serviço nenhum e são até de familiares de candidatos, e, a partir daí, o recurso - que é público - acaba indo para um local que não conseguimos visualizar. O que o legislador tem que ter em mente é que não importa se o recurso é público ou privado. Não é a forma de financiamento que vai fazer com que tenha ou não caixa-2. O que vai combater isso é fiscalização efetiva e punição. E isso não temos. Os mecanismos de burla permanecem íntegros, e o que não tenho é a resposta que o Estado vai dar para alguém que está transgredindo a lei até com recursos públicos de campanha.
JC - Como essa inconstância na legislação pode impactar o eleitor?
Zilio - Isso reforça o sentimento de descrédito que o eleitor tem com a classe política como um todo. Por paradoxal que seja, ainda acredito muito na democracia e que precisamos fazer o máximo de esforço para aperfeiçoar o regime democrático, e não como muitos têm defendido, que tem que fechar tudo e que eleição não funciona mesmo. O que me preocupa é que o desencanto do eleitor chegue em um nível tal que nós percamos aquilo que chamo de cultura democrática. Temos que ter em mente que, em cada processo eleitoral concluso, quem é eleito vai lá e tem que fazer o melhor para o bem comum, mas quem perde tem que saber que faz parte do regime democrático ganhar e perder. O que não podemos é achar que resultado eleitoral só é bom quando eu for eleito, se não for eleito a urna está fraudada, como vimos nas campanhas passadas. O que me preocupa é que existe uma determinada nova classe política que está apostando no antiestablishment, contra tudo e contra todos. Isso passa para a população que a solução para o nosso regime democrático está fora das nossas instituições, quando, na verdade, é o contrário. Temos que fortalecer as instituições, o Judiciário, o MP, a própria imprensa, tudo tem que ser fortalecido. O que temo é que mudanças legislativas, feitas com alto interesse, a cada ano ímpar, venham a ser mais um tijolo nessa pirâmide de descrença que se está passando para o eleitor. O recado para o eleitor é que política não presta, que a eleição é ruim e que a democracia não funciona.
JC - Em 2018, a eleição teve uma profusão de fake news e acirramentos de ataques. Qual deve ser o clima em 2020?
Zilio - Por se tratar de uma eleição municipal, esse clima vai estar arrefecido em 2020, porque as circunscrições são menores, as paixões são as menores, você não está tratando de um presidente da República, é um prefeito de município. Não são 52 milhões de votos para lá e 52 milhões para cá, então acho que esse efeito não estará tão latente em 2020. Mas tenho temor do que virá em 2022. Muito temor. Muito temor mesmo.
JC - Como o MP Eleitoral atuará para combater as fake news em 2020?
Zilio - Fake news são um problema gravíssimo, mas isso é como perguntar como vamos combater a corrupção. Não tem como zerar a corrupção assim como as fake news. Podemos tentar reduzir o estrago. O problema é que há duas situações. De um lado, temos a questão da liberdade de manifestação de pensamento, eu tenho uma opinião sobre alguma coisa; e, de outro, a liberdade de imprensa, a questão sobre o fato. Enquanto a imprensa tem a obrigação de veracidade sobre os fatos, as pessoas têm a absoluta liberdade de falar o que quiserem, inclusive fatos inverídicos.
JC - Mas, para além dessa questão pessoal, há as ações coordenadas de disseminação de desinformação, com disparo de mensagens no WhatsApp, contratação de produtores de conteúdo falso...
Zilio - É uma estrutura. Se você tem uma máquina de produção de fake news, uma estrutura, você contrata pessoas, gasta não sei quanto. Eu não tenho nada, na legislação, para constranger ou dissuadir a pessoa de fazer isso, porque a legislação é antiga, e o legislador não fez nada nesse sentido. A lei tem de ser genérica, impessoal e abstrata, porque tem de perdurar no tempo. E, na internet, daqui a uma semana, a coisa já mudou de nome. A evolução tecnológica deixa a legislação anos-luz atrás. As fake news têm dois problemas que podemos discernir bem: um é a questão de cultura e educação digital, a primeira ponta que falamos, que é o eleitor ter consciência de seu papel como cidadão. É uma coisa séria, não é jogo de futebol, e o que faço como cidadão tem consequência. Mas isso demanda educação. O outro ponto são estruturas econômicas ou políticas que criam ferramentas de disseminação de fake news. Hoje, a legislação eleitoral, infelizmente, não dá nenhum mecanismo para que eu possa dizer: "Você criou uma estrutura, eu vou conseguir cassar o seu registro, seu diploma".
JC - Nas próximas eleições municipais, uma mudança importante é o fim das coligações...
Zilio - Que são uma coisa positiva. O fim das coligações é só para o sistema proporcional, para vereador. Um dos grandes erros do Poder Judiciário, se fizer uma autoanálise, uma questão que o Supremo decidiu lá em 2006, foi em relação à cláusula de barreira, o voto mínimo que o partido tem de obter para ter direito a alguma vaga. Isso foi em 1995, quando a Lei dos Partidos Políticos foi criada: já existia um dispositivo que dizia que, 10 anos depois, a cláusula de barreira iria valer. E o Supremo disse que a cláusula de barreira era inconstitucional. O fundamento teórico era maravilhoso: vivemos em um pluripartidarismo, temos de prestigiar as minorias, mas isso foi um horror para o sistema democrático. Hoje, temos mais de 35 partidos, e tem partido que é criado para viver às custas do fundo partidário. Parece-me que o Brasil não está maduro o suficiente para conviver com o pluripartidarismo, que significa várias ideologias disputando uma alternância de poder por meio do voto. Aqui, criamos uma disfuncionalidade do pluripartidarismo. No Brasil, do jeito que levamos a cabo a criação dos partidos, se instituiu um multipartidarismo fisiológico. Então, sim, é importante limitar a questão das coligações, mas é importante que isso vigore para daqui a dois anos, porque o limitador da cláusula de barreira é desempenho de voto na Câmara dos Deputados. Então não adianta valer para vereador e o Congresso Nacional mudar a regra do jogo daqui a dois anos.
JC - A questão dos fundos partidário e eleitoral é pivô da grande crise política atual, que é a disputa entre o presidente Bolsonaro e o seu partido. Luciano Bivar, presidente do PSL, reclama publicamente que o problema é a cota de 30% do fundo partidário destinada a candidaturas femininas. É esse o problema?
Zilio - Evidentemente que não. No sistema político brasileiro como é hoje, os dirigentes partidários apostam em uma imunidade total. Aprovam leis criando blindagens para eles. Confundem autonomia partidária - que é importante - com imunidade a ilícitos, que são coisas bem diferentes. Na última reforma partidária, que foi em maio ou abril deste ano, tiveram a capacidade de criar, de colocar na Lei dos Partidos Políticos, uma comissão provisória de partido que pode durar oito anos. Se tenho um diretório municipal, em que as pessoas têm que ser eleitas, ter um processo de transparência e prestação de contas, e nomeio quem eu quiser, a pessoa nomeada me deve um favor. A tríade que dá sustentação à disfuncionalidade dos partidos, que está no cerne do problema partidário hoje, é falta de responsabilidade dos dirigentes partidários, de transparência e de democracia interna.
Perfil
Rodrigo López Zilio graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) em 1992. É promotor de Justiça do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul desde 2002. No mesmo ano, começou a dar aula de Direito Eleitoral na Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e, em 2010, na Escola Superior da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. Também é professor no curso de especialização a distância em Direito Eleitoral da Universidade de Santa Cruz do Sul. Ainda na área acadêmica, é palestrante na Escola de Pós-Graduação da Verbo Jurídico e do Instituto de Desenvolvimento Cultural. Atualmente, Zilio coordena o Gabinete de Assessoramento Eleitoral do Ministério Público. É autor dos livros Direito eleitoral e Crimes eleitorais, e coautor da obra Comentários às súmulas do Tribunal Superior Eleitoral.