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Entrevista Especial

- Publicada em 22 de Setembro de 2019 às 21:18

Participação cidadã está sujeita à concessão política, avalia sociólogo Marcelo Kunrath

Professor vê contradição entre proposta de participação e lei que rege elaboração do orçamento

Professor vê contradição entre proposta de participação e lei que rege elaboração do orçamento


MARIANA CARLESSO/JC
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Marcelo Kunrath avalia que instâncias de participação social, como o Orçamento Participativo (OP), organizações não governamentais (ONGs) e conselhos políticos, estão passando por um momento de refluxo com base na crença de um alinhamento automático aos governos petistas - a ser combatido por governos de direita. Para além desse diagnóstico, o professor observa que a presença dos cidadãos na elaboração e execução de políticas públicas precisa ser aprimorada em relação aos modelos consolidados nas últimas décadas.
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Marcelo Kunrath avalia que instâncias de participação social, como o Orçamento Participativo (OP), organizações não governamentais (ONGs) e conselhos políticos, estão passando por um momento de refluxo com base na crença de um alinhamento automático aos governos petistas - a ser combatido por governos de direita. Para além desse diagnóstico, o professor observa que a presença dos cidadãos na elaboração e execução de políticas públicas precisa ser aprimorada em relação aos modelos consolidados nas últimas décadas.
Um desses problemas, segundo o acadêmico, está no fato de que mecanismos como o OP e a Consulta Popular do governo do Estado dependem de concessões dos governantes para serem efetivas. "A decisão de construir a peça orçamentária é do Executivo. E ele pode fazer o que quiser. A população pode decidir as prioridades, mas o governo pode não as implementar", explica. "Se não tem orçamento, como se faz o OP?", questiona.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Kunrath também avalia o decreto do governo de Jair Bolsonaro (PSL), que muda a gestão dos conselhos sociais, que em sua avaliação pode acarretar na "destruição das políticas de Estado" e como esse momento pode dar impulso a novas buscas de participação e pressão social.
Jornal do Comércio - Que balanço o senhor faz das instâncias de participação social no Brasil?
Marcelo Kunrath Silva - O tema da participação tem uma ascensão até um certo período, e hoje vive um refluxo bem significativo. No final dos anos 1970 havia uma crise da ditadura, mas também tem uma crise da democracia representativa. Então, na redemocratização brasileira, além da retomada das eleições, dos partidos, do Congresso, já havia toda uma crítica que demandava algo mais em termos de participação social. Então, já no início dos anos 1980 começaram a surgir experiências de participação. Aqui no Rio Grande do Sul, um caso que ficou muito clássico foi a prefeitura de Pelotas com Bernardo de Souza (PPS), que tinha a primeira proposta de participação da população no orçamento público. Aqui em Porto Alegre, no governo de Alceu Collares (PDT), entre 1986 e 1988, o lema era "o povo no governo", aí teve os conselhos populares. E nos anos 1990, aí sim, isso se difundiu. A proposta de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) de reforma do Estado, enfim, tinha como um dos seus núcleos a ideia da participação e do controle social. Transferir os serviços para o setor privado, mas com o estado atuando na formação das políticas e no controle da execução da política. Uma das formas era através dos conselhos políticos. Então era um ideário que já estava presente. E em Porto Alegre em particular, a experiência do PT do Orçamento Participativo (OP), que era uma das várias experiências participativas e que teve mais êxito, na medida que o PT começou a ter êxito eleitoral, praticamente começou a proliferar a ideia da participação. De fato, Porto Alegre o Brasil se tornaram uma referência internacional na participação social. Então a participação não é algo que surgiu do PT. É parte de um ideário.
JC - Como o modelo do OP de Porto Alegre foi aplicado em diferentes partes do mundo?
Kunrath - Há modelos muito diferentes. O modelo de Porto Alegre tinha de fato praticamente todo recurso de investimento, que era em torno de uns 16%, 17%, eram de fato decididos no processo. Mas há modelos que alocam um valor fixo. Aqui em Porto Alegre, na Região Metropolitana, houve casos de municípios em que uma parte do recurso para a saúde e para a educação é que seria decidido no processo de participação. Alvorada e Viamão são municípios muito pobres, e quando introduziram o OP, não havia praticamente recursos para investir. Se não tem orçamento, como tu faz o OP? E então depende das condições financeiras do município, de condições políticas.
JC - Questão de priorização?
Kunrath - É. O grande conflito, quando se introduziu o OP em Porto Alegre, foi tirar da mão dos vereadores, dos secretários e do prefeito o poder de decidir onde investir o recurso público. Significa que, agora, esses que muitas vezes mantém suas relações de clientelismo, com "olha, conquistei essa rua para você", ia passar a ser decidido por um processo público e eles não podiam mais dizer que aquela obra pública era seu trabalho. Alguns vereadores não conseguiram mais se eleger.
JC - A Câmara de Porto Alegre aprovou um valor para emendas impositivas no orçamento, e a mesma iniciativa está sendo tentada agora pelo governo do Estado. O vice-governador admitiu que o dinheiro que vai servir para emendas parlamentares vai sair justamente da consulta popular, que agora terá R$ 20 milhões para 28 regiões. Qual é o impacto dessas medidas?
Kunrath - Há uma certa contradição entre a proposta de participação da população na discussão orçamentária e a lei que rege a elaboração do orçamento público. A decisão de construir a peça orçamentária é do Executivo. E ele pode fazer o que quiser. Claro que o Estatuto das Cidades, a Lei de Responsabilidade Fiscal indicam que seria importante fazer consultas. Mas isso pode ser feito de várias formas. Então tem uma tensão. De fato, a população tem o direito e capacidade de decidir; de fato, o governo decide o que ele quer fazer. A população pode decidir as prioridades, mas o governo pode não as implementar. Então aqui tem um conflito: quando a população é chamada a participar, ela está decidindo ou não?
JC - Então quando há participação efetiva, é sempre uma concessão do governo?
Kunrath - Exatamente. Ele concede politicamente, numa concepção política, de fazer como participação. O próprio OP de Porto Alegre foi se esgotando bem antes da saída do PT do governo. Sempre houve uma tensão, por exemplo, entre setores da burocracia da prefeitura, setores de cargos políticos do governo, entre conceder todo o orçamento de investimento ou manter uma parte para a burocracia ou o gestor decidir.
JC - Que problemas isso gerou no OP?
Kunrath - A gente foi tendo com o tempo a aprovação de mais obras do que tem capacidade orçamentária para fazer. Ou que não consegue fazer por vários motivos. Por exemplo, a gente fala muito de regularização fundiária. Só que regularização é um processo de vários anos. Aquela decisão vai ficar gerando custos por vários anos. Ou, quando o clientelismo deixou de acontecer na decisão de algumas obras, e passou a ser na execução delas. Teve o caso de uma pessoa que era secretário da prefeitura, e depois foi vereador, e foi cassado há pouco tempo porque teve um vídeo na campanha eleitoral, ele como secretário, e depois como candidato, prometendo fazer as obras do OP caso a comunidade local o apoiasse nas eleições. Ou seja, ele estava negociando a execução. Então aqui tem uma tensão entre uma concessão política e uma obrigação legal. Não tem obrigação legal. Tem uma margem de manobra que o gestor pode usar.
JC - Em casos recentes, como na aprovação da reforma da Previdência, o uso das emendas para influenciar votos tem estado mais em evidência como uma prática não necessariamente ética.
Kunrath - É, aqui tem um problema porque antes, teve aquela mudança que tornou as emendas impositivas. Porque, quando eram só autorizativas, essa era uma grande moeda de troca do Executivo para ter fidelidade das bancadas para apoiar as propostas do Executivo. Bom, se vota, libera emenda. Se não vota, não libera. Agora, o problema é isso. Isso sustenta redes que podem ser de clientelismo, ou de outras coisas. Não estou dizendo que todas as emendas são simplesmente moeda de troca eleitoral. Mas é complicado.
JC - Indo para o âmbito nacional, como avalia o decreto que muda a gestão dos conselhos?
Kunrath - De fato, esse é um governo que não pode dizer que enganou ninguém, pois colocou claramente que o seu projeto de governo não teria espaço para a participação pelo menos no formato como ela estava ocorrendo. Já o ativismo conservador está bem confortável. Assim como um ativismo mais à esquerda tinha um bom espaço no governo petista. Então esse papo que os governos de esquerda colocam as pessoas do movimento para dentro... todo mundo coloca os seus. Quando o (Nelson) Marchezan (PSDB) ganhou, o MBL (Movimento Brasil Livre) foi para o governo. O Bolsonaro definiu como alvo o que a gente pode chamar de sociedade civil, as organizações sociais, ONGs, movimentos sociais. Agora, na questão da Amazônia, as ONGs são o problema. Mas muitas delas têm atribuições legalmente definidas. E implica que o governante, mesmo não gostando, tem que atender a certos requisitos. Então, essa guerra que se colocou, de destruição dos espaços participativos, já era esperada. O que está de fato sendo impactante é a velocidade e a ausência de qualquer preocupação, digamos assim...
JC - De metodologia?
Kunrath - É. Ou seja, é de fato um ataque direto.
JC - E que impacto isso deve trazer?
Kunrath - A destruição das políticas de Estado. Além dos canais de participação, tem o desmonte da própria burocracia de muitas políticas. O governo FHC foi chamado de neoliberal mas era um governo com conhecimento do que era o Estado, da complexidade das políticas públicas. Mas no caso do governo Bolsonaro, uma boa parte de quem está hoje nos postos de comando não tem a mínima ideia com que estão lidando. O nível de desconhecimento, inclusive dos procedimentos legais que tem que ter na gestão pública... eles não têm nem ideia. Então aqui há algo preocupante, porque estão desmontando vários mecanismos participativos, mas também outros mecanismos da gestão e o preço a ser pago pela desestruturação dessas políticas será gravíssimo.
JC - Com o fim ou desmonte de instâncias de participação social, as pessoas tendem a tentar participar de outras formas da elaboração e execução de políticas públicas? Isso abre espaço para a informalização dessa participação?
Kunrath - Essa é uma grande discussão. Uma parte de nós, que há mais de 20 anos pesquisamos sobre esses temas, fazemos análises muito críticas da participação, dos seus limites, dificuldades, vícios, de reprodução de desigualdades. Todos nós compartilhamos de um ideário de que a participação é fundamental à democracia mas, sempre fomos muito críticos de como a participação foi realmente instituída no País. E agora defendemos exatamente o que antes dizíamos que tinha problemas e limites. E uma das críticas é que essa institucionalização foi da própria sociedade civil, dos movimentos e das organizações sociais, de que as ONGs ficaram dependentes do Estado, presas à institucionalidade, à máquina pública, eventualmente aos recursos públicos - mas os conselhos são voluntários, nenhum é remunerado. E um dos diagnósticos é que esse processo de fechamento de espaços institucionais tende a ter como um de seus efeitos uma certa autonomização da sociedade, de busca de formas societárias de organização, atuação, pressão, reivindicação. Se tu fechas um canal de participação, as pessoas vão buscar outras formas de manifestar seus interesses. Mais manifestações, mais pressões, protestos... Isso pode pressionar pra abrir mais espaços para a sociedade ser ouvida ou pode levar a tentativas de saídas mais autoritárias.
JC - Existe algo, na prática, a se fazer para minimizar esses efeitos? Como buscar caminhos para manter essa institucionalidade, na medida do possível?
Kunrath - Aqui em Porto Alegre há o Fórum Municipal dos Conselhos, que vem lutando para defendê-los, fez audiências públicas, ações na Câmara. O grande desafio é como reconectar, hoje, essas organizações da sociedade civil com a própria população da cidade. A gente tem visto na cidade muitas iniciativas, repensando suas formas organizativas, avaliando os erros que fizeram. Estão pulsando na cidade várias iniciativas fundamentais para tentar construir novas formas organizativas que, de fato, envolvam as pessoas e coloquem a participação política, que está demonizada. Não há participação social se não houver organização. Não é um evento no Facebook. Tem que ter organizações para construir propostas e poder apresentar. É o grande desafio hoje.

Perfil

Marcelo Kunrath Silva graduou-se em licenciatura em História, em 1989, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Na mesma instituição, também concluiu o mestrado, em 1996, e o doutorado, em 2001, ambos em Sociologia. Também cursou pós-doutorado no Watson Institute for International Studies/Brown University em 2008. Desde 1999, é professor do Departamento de Sociologia da Ufrgs, integrando o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. Tem experiência na área de Sociologia Política, com o desenvolvimento de pesquisas nos temas de democracia, cidadania, conflitualidade, participação social, orçamento participativo, conselhos de políticas públicas, associativismo, movimentos sociais e engajamento militante. Atualmente, coordena o Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (Gpace) na Ufrgs.