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Entrevista especial

- Publicada em 16 de Junho de 2019 às 21:58

Aumentar idade para aposentadoria não resolve, diz Uthoff

Uthoff elencou alguns dos problemas que esse sistema causou no Chile

Uthoff elencou alguns dos problemas que esse sistema causou no Chile


LUIZA PRADO/JC
Estudioso do sistema previdenciário de capitalização individual, implantado no Chile em 1981, pelo ditador Augusto Pinochet, o economista chileno Andras Uthoff avaliou que o Brasil precisa melhorar o seu sistema previdenciário, não substituí-lo por um modelo capitalizado. Apesar disso, alertou que a reforma da Previdência no Brasil deve levar em conta a relação entre aposentadoria e mercado de trabalho: "não adianta aumentar a idade mínima para se aposentar, se não tiver emprego para as pessoas idosas".
Estudioso do sistema previdenciário de capitalização individual, implantado no Chile em 1981, pelo ditador Augusto Pinochet, o economista chileno Andras Uthoff avaliou que o Brasil precisa melhorar o seu sistema previdenciário, não substituí-lo por um modelo capitalizado. Apesar disso, alertou que a reforma da Previdência no Brasil deve levar em conta a relação entre aposentadoria e mercado de trabalho: "não adianta aumentar a idade mínima para se aposentar, se não tiver emprego para as pessoas idosas".
Diante da proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes, de implementar um regime previdenciário de capitalização no Brasil, semelhante ao que foi instalado no Chile, Uthoff elencou alguns dos problemas que esse sistema causou no Chile. Por exemplo, o alto custo de transição (cujo valor chegou a representar 136% do PIB chileno), a diminuição do valor das aposentadorias (pelo menos, 30% mais baixas que as do regime anterior) e o empobrecimento dos idosos (o que tem causado, inclusive, o aumento das taxas de suicídio na terceira idade).
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o economista chileno também detalhou como ocorreu a transição de um sistema para o outro no seu país. Conforme o professor, o custo está sendo pago até hoje, quase 40 anos depois da implementação do regime de capitalização. 
Jornal do Comércio - Como era o modelo previdenciário no Chile antes da reforma imposta pelo general Augusto Pinochet (que comandou a ditadura chilena de 1973 a 1988)? E como ficou a Previdência depois da reforma?
Andras Uthoff - Antes da reforma de 1981, existiram duas etapas fundamentais. Primeiro, existiam mais ou menos 20 casas especializadas na previdência. Por consequência, o sistema de previdência estava segmentado dentro do mercado de trabalho. Em geral, para as economias modernas e para o modelo neoliberal, ter casas separadas não é flexível. Então, houve a necessidade de um processo prévio à reforma de 1981, para instituir a mesma taxa de cotização, a mesma regra de benefício e um sistema praticamente unificado. A reforma de 1981, a reforma de Pinochet, levou ao extremo de transformar um sistema previdenciário que associava o direito previdenciário ao trabalho, em um direito previdenciário baseado na capacidade de o trabalhador poupar. Além disso, a contribuição passou a ser feita só pelo trabalhador, de acordo com a sua capacidade de poupança. No sistema anterior, a contribuição era tripartite: além da cota do trabalhador, também contribuíam o Estado e o empregador.
JC - Antes da reforma promovida pelo Pinochet, a contribuição para a Previdência era do empregador, do Estado e do trabalhador?
Uthoff - Antes, sim. Agora, não. Agora, a contribuição é somente do trabalhador. Ele se obriga a participar de uma indústria que gere as poupanças, em contas de capitalização individual que se chamam AFPs (Administradoras de Fundos Previdenciários). Costuma se falar que o Chile trocou o direito previdenciário pelo direito de liberdade de escolher, como indivíduo, quem cuida do dinheiro poupado para a aposentadoria. Então, é um sistema que passou de um sistema solidário para um sistema atuarialmente equivalente e individualista. É algo mais ou menos assim: 'agora eu resolvo o meu problema e não me preocupo com o resto'. Em essência, a partir de 1981, isso se transformou em um sistema de pensões e em um mercado de poupanças obrigatório.
JC - Quantas empresas administram os fundos de pensão no sistema de Previdência capitalizado, no Chile?
Uthoff - No novo sistema, incialmente, havia 12 empresas administradoras de fundos de pensão. Mais tarde, subiram para 20. Hoje em dia, são seis, mas estão criando mais uma. Portanto, vamos de seis para sete.
JC - Alguns analistas dizem que, no regime capitalizado, o trabalhador assume mais riscos que no sistema misto ou estatal. Quais são os principais riscos?
Uthoff - No sistema atual do Brasil, por exemplo, o Estado garante o sistema. No sistema chileno atual, tem que regular a indústria (de empresas administradores dos fundos de pensão) para que o sistema não corra o risco de quebrar. Há uma regulação bastante exigente no Chile, que passa pela Superintendência de Pensões, sobre o que as administradoras de pensão podem e o que não podem fazer. Até agora, não temos evidencia de quebra de nenhuma AFP. Então, até agora, não temos tido problemas com isso. O problema é outro. Se a rentabilidade (do fundo) cai, o problema é do trabalhador. Se a expectativa de vida no Chile aumenta, o problema é do trabalhador. Se o cidadão está desempregado, o problema é dele. Não há uma política social para resolver isso, porque, com o novo sistema previdenciário, a seguridade social deixou de existir. É o trabalhador, individualmente, quem tem que lidar com essas questões.
JC - O senhor mencionou alguns fatores que levam à diminuição do valor da aposentadoria, como a queda do rendimento dos fundos, o aumento da expectativa de vida etc. Quanto eles recebem a menos, comparado com os que recebem pelo o regime anterior?
Uthoff - As pensões são aproximadamente 30% menores. Mas tem algumas variáveis, por conta das regras de transição.
JC - Como aconteceu a transição?
Uthoff - Basicamente, ocorreu o seguinte: a partir de certa idade, as pessoas poderiam optar por mudar ou não (do sistema estatal de previdência para o capitalizado). De certa idade para baixo, as pessoas eram obrigadas a mudar para o sistema novo. E os novos contribuintes também entraram já no sistema capitalizado. Por isso, ao longo do funcionamento do sistema, os que ficaram no sistema antigo têm melhores condições do que os que mudaram. Como eles contribuíram mais, porque a taxa de participação era maior, tem pensões maiores. Quem trocou o sistema antigo pelo novo, recebeu um bônus de reconhecimento pelo tempo de contribuição no sistema anterior. Ou seja, o estado depositou um valor, relativo ao que o trabalhador havia contribuído no sistema estatal, na conta individual do sistema capitalizado. Por isso, essas pessoas que trocaram o sistema antigo pelo novo têm melhores pensões do que quem somente participou do sistema de capitalização. Então, os estudos mostram que, na medida que as pessoas se aproximaram mais do sistema de capitalização, as pensões foram ficando mais baixas.
JC - Se lê em algumas notícias que aumentou o índice de suicídios de idosos, porque não conseguem sustentar as famílias devido às baixas pensões. Além disso, alguns analistas dizem que a população idosa está empobrecendo no Chile. Qual foi o impacto social da mudança de sistema?
Uthoff - No sistema de capitalização individual, quem está em vida ativa faz seu fundo de pensão crescer. Para um trabalhador que ganha, digamos, mil dólares por mês, de repente tem 100 mil dólares na conta. Ele diz: "nunca havia visto esse dinheiro, fantástico!". Mas, uma vez que se aposenta, esses 100 mil dólares são pagos em um retiro programado, através de um algoritmo financeiro, que leva em conta a rentabilidade financeira e a expectativa de vida. Por isso, a pensão que recebe com esses 100 mil dólares baixa para 20% do seu ingresso inicial. Então, quem ingressa ganhando mil dólares, passa a ganhar 200 dólares. Essa é a vivência que estamos vendo para a grande maioria no Chile. Depois de passar toda sua vida como classe média, o cidadão se torna pobre. Com 200 dólares, no Chile, é pobre. Por consequência, a pessoa passa a viver uma vida dependente da família, de fazer outro trabalho, veem as doenças. E é certo que a taxa de suicídio entre os idosos aumentou no Chile. É muito mais alta que a média para outras idades.
JC - Como funciona o amparo aos desempregados nesse novo sistema? Ele recebe um seguro-desemprego, como aqui no Brasil?
Uthoff - Há um sistema similar ao de capitalização. Se você tinha um emprego formal, e contribuía a um seguro de assistência (para o caso de ficar desempregado), terá um seguro. Mas, se não contribuiu, se não pagava um seguro, não tem nenhum seguro-desemprego. Então, novamente, houve a criação de um mercado (de empresas de seguro-desemprego). Se o cidadão tem condições de participar desse mercado, existe a possibilidade de ter um seguro por algum tempo. Mas a grande maioria da população chilena não tem. Então, se vê muita informalidade e desemprego sem seguridade.
JC - Em 2008, durante o primeiro governo da ex-presidente Michelle Bachelet (2006-2010), o Chile promoveu uma reforma no modelo previdenciário. Que mudanças foram implementadas?
Uthoff - Através de duas medidas da ex-presidente Bachellet, há uma tentativa de melhorar o sistema previdenciário no Chile. A primeira medida foi a instituição, em 2006, de uma comissão de revisão dos sistemas de pensão. A partir do trabalho desse grupo, saiu a reforma de 2008, que basicamente corrigiu a cobertura do sistema, pois a metade das pessoas que estavam na idade de se aposentar tinha poucas condições de poupar. Em consequência, o Estado implementou um aporte solidário, financiado pelos impostos gerais, para complementar o sistema de capitalização dessas pessoas. Mas a níveis muito baixos. Foi isso que, em 2015, o segundo governo de Bachelet (2014-2018) se deu conta: 44% das pensões estavam abaixo da linha da pobreza; 80%, abaixo do salário mínimo. Então, a preocupação passou a ser a garantia de uma aposentadoria similar ao salário mínimo, através da implantação de um sistema misto, o que não foi aprovado. Agora, o governo de Sebastian Piñera (2010-2014) está tentando implementar uma proposta de melhora no sistema como é hoje.
JC - Qual a sua avaliação da proposta de reforma da Previdência no Brasil?
Uthoff - As populações da América Latina estão envelhecendo em uma velocidade muito rápida. Cada vez mais idosos estão vivendo por mais tempo. Significa que o custo com os sistemas de pensões vai aumentar. E também o custo com a saúde, porque os idosos ficam doentes com mais frequência. Em consequência, se o período de contribuição em sistemas contributivos é muito curto, algumas mudanças são necessárias. São as chamadas reformas paramétricas, que trabalham com três elementos: a idade da população, a taxa de contribuição e o valor da aposentadoria. Mas tem que alterar esses elementos muito ordenadamente. Não entendo por que, aqui no Brasil, querem aumentar a idade para se aposentar. Afinal, não há trabalho para os idosos, o mercado de trabalho não emprega a terceira idade. No Chile, por exemplo, mesmo que a idade mínima seja 60 anos para as mulheres e 65 para os homens, muito poucos estão contribuindo para a aposentadoria, porque não há emprego. Então, digo que não vai fazer muita diferença postergar a aposentadoria da população, porque há um vínculo importantíssimo entre o mercado de trabalho e o sistema previdenciário.
JC - Qual foi no Chile o custo de transição de um regime para o outro. Ficou para o Estado?
Uthoff - Enquanto os experts chilenos tentavam vender o sistema de capitalização para o resto da América Latina e para o resto do mundo, apoiados pelo Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional), eles não disseram que haveria um custo de transição. Se você troca um sistema de repartição por um sistema de capitalização, tem que seguir pagando as pensões que já foram concedidas pelo antigo sistema. Isso tem um custo. Como o dinheiro dos trabalhadores agora vai para o mercado financeiro, e não para o sistema de repartição, é o Estado quem tem que pagar. Além disso, o Estado tem que dar um valor aos trabalhadores que se mudaram para o novo sistema, relativo ao tempo que contribuíram no sistema antigo. Tudo isso teve um enorme custo no Chile. Em 1981, todas essas obrigações representaram 136% do PIB. Isso não quer dizer que o Estado tem que ter esse dinheiro em caixa, porque ele vai pagá-lo com o passar do tempo. Mas isso gerou um déficit para o orçamento público do nível de 5% do PIB no começo e, hoje em dia, 40 anos depois, estamos pagando 2% do PIB. Estamos pagando há muito tempo. Além disso, teve um custo social enorme, porque, para ajustar o orçamento ao pagamento da transição, o Estado teve que cortar gastos em educação, saúde e outras áreas sociais.

Perfil

Andras Uthoff nasceu em Santiago do Chile em 8 de abril de 1946.Seus pais pertencem à primeira geração de imigrantes alemães e húngaros em terras chilenas. Graduou-se em Engenharia Comercial na Universidade do Chile, formação que equivale a de Economista no Brasil. Fez doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Chegou a trabalhar no serviço público, na Universidade do Chile.Na ditadura militar comandada pelo general Augusto Pinochet, entre 1973 a 1988, aceitou o convite para trabalhar na Organização Internacional do Trabalho (OIT). Atuou no órgão internacional de 1987 a 1990. Depois, foi trabalhar na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), onde permaneceu até 2006. Aposentou-se pela OIT, não pelo serviço público chileno. Portanto, não recebe pelo regime previdenciário de capitalização do Chile. Em 2008, ajudou a implementar a reforma da Previdência promovida pela ex-presidente Michele Bachellet (2006-2010 e 2014-2018), que buscou expandir a cobertura do sistema previdenciário chileno.