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Entrevista Especial

- Publicada em 12 de Maio de 2019 às 21:20

Participação é saída à crise da democracia, diz Nelson Dias

"A participação não é uma questão de esquerda ou direita, mas de vitalidade", diz Dias

"A participação não é uma questão de esquerda ou direita, mas de vitalidade", diz Dias


LUIZA PRADO/JC
Para o sociólogo português Nelson Dias, a crescente crise da democracia é consequência da falta de participação da sociedade nas decisões políticas. Como saída a isso, aposta no avanço de experiências como o Orçamento Participativo (OP), que, na contramão de alguns recuos democráticos na América Latina, tem avançado em todo o mundo.
Para o sociólogo português Nelson Dias, a crescente crise da democracia é consequência da falta de participação da sociedade nas decisões políticas. Como saída a isso, aposta no avanço de experiências como o Orçamento Participativo (OP), que, na contramão de alguns recuos democráticos na América Latina, tem avançado em todo o mundo.
Como o OP é implementado principalmente em experiências locais, os municípios tendem a responder melhor a essa crise. Contudo, Dias observa um "salto de escala territorial e institucional" do OP, demonstrando que governos nacionais também têm buscado a participação como forma de reconquistar a confiança da população.
Nelson Dias esteve em Porto Alegre para o lançamento do livro "Esperança Democrática - Orçamentos Participativos no mundo", do qual é coordenador, e falou ao Jornal do Comércio sobre as mudanças que ocorreram com o OP nestes 30 anos de existência.
O sociólogo também demonstra preocupação com a falta de espaço para a participação social na política e avalia que, no caso brasileiro, a manutenção da democracia "não vai depender apenas das forças políticas, que estão muito extremadas", mas da sociedade.
Jornal do Comércio - Que transformações identifica no Orçamento Participativo ao longo destes 30 anos?
Nelson Dias - O Orçamento Participativo tem sofrido muitas transformações nos últimos 30 anos, ao nível dos modelos, das metodologias, muito distintas de local para local. Existe, no entanto, um princípio em comum, que é utilizar o poder de decisão dos cidadãos sobre os recursos públicos. Mas nos últimos cinco anos, há três grandes transformações. Primeira, com alguma surpresa, a América Latina deixou de ser o continente com o maior número de experiências. Hoje é a Europa, onde também se encontram as principais inovações na metodologia. Esta passagem tem outro impacto, relacionado com seus objetivos e propósitos. Na América Latina, tradicionalmente, o OP foi concebido como um instrumento de distribuição dos recursos públicos no combate à pobreza e à exclusão. Na Europa, o principal objetivo do OP é a reconstrução da confiança entre a população e os governantes, o diálogo, a credibilidade na democracia. A outra mudança é o salto de escala territorial e institucional. O OP é, na sua origem, a prática de um governo local, promovido pela prefeitura. Mas hoje encontramos, no mundo, governos de âmbitos regional, estadual e até nacional fazendo o OP. Isso é uma grande mudança, porque o OP foi concebido, na sua origem, como uma prática de proximidade com a população. A terceira mudança é a institucionalização, essencial na medida em que, tradicionalmente, o OP é uma prática que depende da vontade política dos eleitos.
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JC - Como acontece?
Dias - Não há uma lei que obrigue a fazer ou que diga como se faz. Mas, nos últimos anos, tem sido criadas legislações em alguns países que tornam obrigatório o desenvolvimento dos OP. São eles Peru, Indonésia, República Dominicana, Coreia do Sul e Portugal, que concentram até 65% de todos os OPs no mundo. E, se contarmos o caso da Polônia, em que o governo criou uma legislação que não torna obrigatório, mas incentiva os governos locais a fazer, transferindo adicionalmente uma verba para os municípios, temos até 85% dos OPs no mundo desenvolvidos com base em legislações. Essas transformações são próprias de uma viagem pelo mundo, onde o OP foi se confrontando com realidades políticas, sociais, culturais, muito distintas. Estes países sentiram a necessidade de legislar, porque a vontade política não seria suficiente para fazer o OP, ou o nível de transparência não seria suficiente no desenvolvimento destas práticas.
JC - A que se deve essa expansão e institucionalização?
Dias - O salto de escala, territorial e institucional, tem a ver com a necessidade que alguns países e regiões sentiram de também desenvolver novas práticas de participação dos cidadãos, encontrando no OP uma ferramenta muito boa para isso, porque é um instrumento de grande pragmatismo e realismo, e que toca no dinheiro público. O fato de a Europa ser hoje o continente com o maior número de experiências também tem a ver com isso. Os OPs enfrentam uma crise na América Latina, em alguns contextos, e no Brasil o recuo é o mais significativo. Na Europa, ao contrário, há uma grande receptividade ao desenvolvimento do OP. Esta viagem pelo mundo, ao longo de 30 anos, proporcionou essas e outras transformações.
JC - A que atribui as transformações dos últimos cinco anos?
Dias - Dentre outros fatores, ao agravamento da crise da democracia. Quando comparamos o mapa da democracia no mundo com o mapa dos OPs no mundo, vemos que são muitos os países onde se verificam recuos no regime democrático e, ao mesmo tempo, os OPs estão com nível de expansão significativos, são mais de 7 mil experiências no mundo. Muito mais que nós próprios imaginávamos que pudesse ser. Essa expansão também está intimamente relacionada com a crise da democracia e é uma resposta a essa crise.
JC - Que fatores identifica para a crise da democracia?
Dias - Há alguns indicadores que são muito preocupantes em relação à democracia. Um deles é o uso que é feito do voto. O voto é uma conquista histórica, que, na sua origem, teve muitas lutas sociais. O voto é um direito que o cidadão tem para uma escolha consciente do melhor para o futuro do seu país. Mas quando hoje olhamos para o voto, a tendência já não é essa. Em alguns é um ato de represália ou de castigo para algumas elites políticas. A eleição do Donald Trump, nos Estados Unidos, é um exemplo. A maioria dos americanos não gosta dele, mas votou para castigar as elites políticas que tradicionalmente governavam o país. Provavelmente a eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil, é também uma forma de castigar as elites políticas que governavam o País. Há hoje uma tendência de utilização do voto que é muito preocupante. E, em alguns contextos, essa arma de castigo é maioritária, o deve nos preocupar, porque não é esse o sentido que foi dado à origem do voto.
JC - No que pode resultar?
Dias - Os níveis de confiança na classe política, nas instituições, no governo, são muito baixos. Isso dá origem a um progressivo afastamento das pessoas da política, mesmo a não partidária. Há sinais muito preocupantes de crise de recuo das democracias. Nos últimos 12 anos, as democracias recuaram permanentemente em todo mundo. São mais países onde existem recuos democráticos do que aqueles onde existem avanços.
JC - Nesse contexto, o OP avança. Qual a lógica desse movimento?
Dias - Minha conclusão é que os governos locais são muito mais permeáveis à democracia participativa do que os governos nacionais. Ou seja, a crise da democracia é sentida, sobretudo, nos governos de Estado e de nação. Os governos locais, pela sua proximidade com as suas populações, estão muito mais disponíveis para práticas de participação que credibilizem a democracia e reforcem a proximidade. E, portanto, são muito mais democratas que os governos nacionais.
JC - Na América Latina, e sobretudo no Brasil, o OP sofre recuo, enquanto avança em outras partes do mundo. Que fator determina isso?
Dias - Há vários fatores que ajudam a compreender isso. Há um certo desgaste. O OP é uma ferramenta que necessita de uma reinvenção. Acompanho alguns OPs e todos os anos é feita uma pausa no processo, que pode durar dois ou três meses, para fazer avaliação e para compreender o que é necessário melhorar no processo. E isso implica anualmente reformular as metodologias, as regras de funcionamento, garantindo maior transparência e mecanismos que evitem o domínio do processo por parte de grupos mais organizados da sociedade. O OP necessita de uma vigilância permanente, para que seja um processo em permanente reinvenção e inovação democrática. Porque se não, o risco é que se torne num procedimento, algo como um outro trabalho que a prefeitura tem que fazer.
JC - Identifica isso no caso de Porto Alegre?
Dias - Não acompanho diretamente o caso de Porto Alegre, mas é visível um desgaste no processo aqui. O Orçamento Participativo de Porto Alegre serviu como fonte de influência e inspiração para o mundo e hoje já não é esse o caso. O mundo precisa de um novo OP em Porto Alegre, mais forte. Há um desgaste sim, na sociedade, que espera por demandas há muitos anos e que não são executadas, e as pessoas deixaram de acreditar no OP, porque não veem seus resultados. A execução é o primeiro momento de garantia do sucesso do OP. Mas há o desgaste político também, porque o OP está no meio de uma tensão muito forte no País, que hoje está muito polarizado politicamente.
JC - De que maneira isso interfere no OP?
Dias - Na história do Brasil, o OP tem sido um instrumento de governança da esquerda. E a polarização que hoje existe prejudica também a participação dos cidadãos, na medida em que é uma política mais de esquerda e que a direita não valoriza. Por exemplo, na Europa, e no caso de Portugal, a participação não é uma questão de esquerda ou de direita, é uma questão de vitalidade da democracia. Então não há discursos a favor e contra a participação dos cidadãos. Há uma necessidade que as instituições democráticas sentem, sejam de direita ou de esquerda, de reconstruir a confiança dos cidadãos, que é vital para a democracia. No Brasil não tem sido assim. A participação é uma política de esquerda, essencialmente. E com a crise da esquerda, o OP sofre com isso. É muito importante que o Brasil possa fazer uma reflexão estratégica sobre a participação dos cidadãos, retirando do debate ideológico. A participação é o cerne da democracia. Não é uma questão de direita ou de esquerda, mas o Brasil não tem sido capaz de fazer esse trabalho.
JC - Para essa reflexão, é preciso debater a democracia em si.
Dias - Sinto que as posições políticas estão muito extremadas e o diálogo é muito difícil. E há mágoas, uma história muito pesada hoje no Brasil que prejudica ou dificulta um diálogo construtivo entre forças políticas. Os prejudicados são os cidadãos, que deixam de ter espaço para participar, para discutir, para desenhar em conjunto com os governos as políticas do País, das cidades. Seria muito importante que o Brasil pudesse aprender com o que não funcionou. E o OP está no meio e sofre com isto, pela sua relação mais à esquerda e pelo fato de a direita não valorizar tanto as políticas de participação dos cidadãos, por ter o viés mais de ligação ao mercado e menos de ligação à sociedade. Vejo com preocupação o que hoje acontece no Brasil. É importante que a sociedade seja capaz de se organizar, porque o futuro da democracia no Brasil não vai depender apenas das forças políticas, que estão muito extremadas. O futuro da democracia no Brasil vai, sobretudo, depender do que a sociedade brasileira for capaz de reivindicar e de conquistar.
JC - Quais serão as mudanças do OP no futuro e qual será o papel da tecnologia nos processos de participação?
Dias - Uma frase que gosto de utilizar é que a democracia representativa está grávida de outra democracia, a participativa. Mas é uma gravidez de risco, digamos assim, porque está instável. Mas o embrião nos diz que é possível uma outra democracia. Este caminho vai ter que ser continuado, e por isso é muito importante uma agenda de democracia participativa nos próximos 10 anos, para que passem a ser práticas mais consistentes na vida das pessoas. O OP está em algumas tendências para os próximos 30 anos, que eu acho que são inevitáveis. Vai continuar crescendo porque a crise na democracia vai continuar. E é proporcional à crise da democracia a multiplicação das práticas do orçamento participativo como resposta a essa mesma crise. E isso vai trazer também a diversificação dos modelos, assim como a legislação e o salto de escala territorial e institucional. Outra tendência é o uso de tecnologias. Isso pode ter seus benefícios, mas tem riscos substanciais. A democracia não se faz pela internet. A tecnologia é um instrumento de apoio, mas não pode ser o cerne da democracia. Temos que ser muito vigilantes, porque o conhecimento científico é essencial, a inteligência artificial pode ser muito boa, mas depende da forma como ela será utilizada. Há um desafio muito grande em relação à democracia nos próximos anos e todos temos que estar muito atentos a isso.

Perfil

Nelson Dias é natural de Faro, em Portugal, e tem 45 anos. É licenciado em Sociologia e mestre em Planejamento e Avaliação de Processos de Desenvolvimento, ambos pelo Iscte-Instituto Universitário de Lisboa (IUL). Baseado em Portugal, atua como consultor e presta atendimento a diferentes instituições em todo o mundo: no Banco Mundial, para a implementação do Orçamentos Participativos (OPs) em municípios e regiões de Moçambique, México e Rússia; para o governo português, na implementação do Orçamento Participativo Nacional da Juventude; em diferentes municípios de Portugal, auxiliando na implementação de processos de OP e em processos de planejamento social e territorial; junto às Nações Unidas e ao governo de Cabo Verde, pela implementação dos OPs em quatro municípios. Desempenhou também o papel de consultor do governo do Brasil para uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento de Cidades de Médias Dimensão. Nelson Dias é autor de várias publicações, incluindo a coordenação das duas edições do livro “Esperança Democrática – Orçamentos Participativos no Mundo”.