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Política

- Publicada em 23 de Dezembro de 2018 às 21:24

Periferia insatisfeita deu vitória a Bolsonaro, diz pesquisadora

Rosana entende que o discurso de Bolsonaro é 'populista, de alguma maneira um pouco vazio e composto de clichês'

Rosana entende que o discurso de Bolsonaro é 'populista, de alguma maneira um pouco vazio e composto de clichês'


CLAITON DORNELLES /JC
Bruna Suptitz
A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a presidência da República evidencia a vontade de participação política da população das periferias e das pessoas que vivem longe dos grandes centros. A avaliação é da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que entende o discurso do futuro gestor como "populista, de alguma maneira um pouco vazio e composto de clichês".
A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a presidência da República evidencia a vontade de participação política da população das periferias e das pessoas que vivem longe dos grandes centros. A avaliação é da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que entende o discurso do futuro gestor como "populista, de alguma maneira um pouco vazio e composto de clichês".
Ela e a também antropóloga Lúcia Scalco estudam a relação de jovens de comunidades periféricas de Porto Alegre com o presidente eleito. Rosana afirma que o futuro presidente não é um fenômeno. "Quem está no campo (acadêmico) sabia que ele tinha chances de ganhar há, pelo menos, três anos", observa.
Ela destaca que Jair Bolsonaro encontrou espaço para transmitir a sua mensagem justamente por dialogar com a parcela da população que não se via inserida na política. "Estão errados os analistas que dizem que ele é só o candidato da frustração e da raiva. Tem muita gente que votou nele pela esperança, por se sentir pertencendo", sustenta.
Ao mesmo tempo, tanto a esquerda quanto a direita se afastaram da cultura popular e perderam a chance de se colocarem como alternativa ao trabalho de base iniciado por Bolsonaro pelo menos dois anos antes da campanha eleitoral deste ano.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Rosana apresenta sua aposta sobre a condução do governo Bolsonaro, que, distanciado do PT, buscará outros personagens para culpar por ações que não sejam bem-sucedidas em sua gestão. "Os nossos culpados serão os professores, e há uma tendência a perseguir a mídia, os jornalistas. Cria-se um inimigo e desvia a atenção, que é isso que os governos historicamente fizeram", projeta.
> VÍDEOS JC: Confira algumas opiniões da antropóloga 
Jornal do Comércio - O que a periferia quer politicamente?
Rosana Pinheiro-Machado - A primeira coisa que querem politicamente, em termos de política mesmo, é romper com o modo que, historicamente, tem operado nas periferias e nas pequenas cidades do Brasil: o clientelismo, a troca de favores. Uma grande parte dos vereadores de Porto Alegre e dos deputados vai no Morro da Cruz, na Restinga, na época da eleição, e oferece cargos, oferece dinheiro para pessoas em situação de miséria fazerem panfletagem e levantarem uma bandeira nas ruas, que aceitam porque precisam disso para comer. A grande desilusão das pessoas é que veem a política como um "toma lá, dá cá", que virou uma expressão política. Essa é a percepção popular, de que os políticos só vão lá para pedir algo em troca. Com algumas exceções, como o Orçamento Participativo, por exemplo, de momentos de maior engajamento democrático. Mas as pessoas sabem que, na periferia, é a ausência completa de consciência e de vivência democrática, de um sentido de que a democracia se define pelo engajamento cidadão no acesso aos bens públicos. As pessoas na periferia de Porto Alegre têm plena consciência de que não são cidadãos. Parece clichê, mas é a realidade: as pessoas morrem nas filas de postos de saúde, o ônibus não chega, a educação não chega, não tem escola secundarista em grande parte das periferias, ou, quando tem, não há professor. As pessoas, quando têm problema de saúde, são medicalizadas para ficarem dopadas, para não ficarem reclamando e pedindo mais bens públicos. E vivem tudo isso com o tráfico de drogas crescendo. Foi aí que o Bolsonaro entrou muito bem nas periferias. As pessoas que a gente entrevistava diziam que era a primeira vez na história da família que faziam política por amor, por acreditar, alegando que ele não pagou nem ofereceu nada em troca. Entendo completamente essa lógica. De um lado, o que as pessoas querem politicamente é não precisar trocar o seu voto; de outro, acreditar que o acesso aos bens públicos finalmente vai vir. Poder transitar nas ruas e ter acesso mínimo aos bens públicos que as camadas médias têm.
JC - Como vocês identificaram isso?
Rosana - Sentíamos que aquele trabalhador tentava romper com o tráfico e trabalhar, ser motorista, ter um carro, ganhar um salário-mínimo por mês. Ele se sentia penalizado, porque tenta trabalhar, é assaltado e nunca ganhou nada em troca, nunca recebeu nenhum tipo de bolsa. Eles pensam no caso individual, claro, mas tem uma lógica. Quando se pensa no sujeito que teve toda a oportunidade do mundo para se juntar ao tráfico, que perdeu todos os amigos para o tráfico, e que está fazendo um esforço sobre-humano porque o Estado brasileiro não dá nada - porque ele é pobre, mas não tanto para ganhar um Bolsa Família, um Fies ou um Prouni, mas que não tem condições de arcar com alguma coisa -, esse sujeito se vê profundamente prejudicado, quase traído.
JC - Como essa parte da população recebe o discurso de Bolsonaro?
Rosana - Além da pesquisa no morro, acabamos estendendo (nossa investigação) porque ela começou a ser muito solicitada, e entramos em diversos grupos de diferentes classes sociais. O que vemos é uma coisa típica do populismo. O Bolsonaro começou a produzir um discurso populista, de alguma maneira um pouco vazio e composto de clichês. É quase um discurso de metamorfose, que consegue se adaptar a qualquer situação, justamente por não ter muito conteúdo. É um discurso de raiva, contra tudo que está aí, cada um com a sua frustração. E é por isso que o populismo é sempre imbatível, porque é um discurso vazio. Ele joga com todos os possíveis discursos de frustração e, ao mesmo tempo, desmente tudo muito rápido, aprendendo já com o (presidente dos EUA, Donald) Trump.
JC - Esse tipo de discurso ganha mais forças no atual cenário político nacional?
Rosana - O Brasil vem vivendo uma crise do sistema político brasileiro e econômico, que começa com as manifestações de 2013. Isso abriu uma janela de oportunidades da direita se organizar, e, posteriormente, veio o impeachment (da ex-presidente petista Dilma Rousseff, em 2016) e o escândalo para a JBS, que foram um marco para mostrar para a população comum que, na interpretação popular, era tudo "farinha do mesmo saco". E aí o sistema político colapsou de alguma maneira, o impeachment não melhorou a vida das pessoas, o governo do Michel Temer (MDB) foi um dos piores da história. Isso fez com que elas, de alguma maneira, entendessem que tudo o que está aí, comunismo, esquerda, corrupção, tanto faz como a pessoa vai atribuir, mas que essa elite intelectual e política representa algo que rouba, que não presta, que não dá respostas. E o Bolsonaro encara muito isso. Quem ganhou foi a extrema-direita, mas poderia ter sido a extrema-esquerda se tivesse se organizado. E ganhou a partir do colapso da direita e da esquerda. A crise econômica no Brasil é umas das piores da sua história, e não é por motivos de corrupção, é pela baixa das commodities, ainda do refluxo da crise econômica global. Mas a interpretação popular é de que o PT afundou o País, de que estava todo mundo no mesmo saco e de que precisava de uma saída radical, tanto para a crise econômica quanto para a política. Havia um caldeirão de oportunidades para que o Bolsonaro crescesse, e não teve uma alternativa que estivesse fazendo um trabalho há dois anos, como ele faz.
JC - Há pelo menos dois anos, Bolsonaro já se colocava como candidato, mas ele é midiático há mais tempo ainda. Qual o papel dessa construção de imagem para se chegar até o resultado que o País viu?
Rosana - (Essa construção) Contribuiu 100%. Bolsonaro não é um fenômeno. Quem está no campo (acadêmico), de alguma maneira, sabia que ele tinha chance de ganhar há, pelo menos, três anos. Ele é um cara totalmente vinculado com a cultura popular, da qual a esquerda e a direita estão completamente afastadas. Ele vai de 7% de intenção de voto a 10% quando aparece no Superpop (programa da Rede TV!). O sistema político ignorou isso completamente, porque nem sabe o que é o Superpop. Começamos a fazer a pesquisa há dois anos e os jovens já eram "bolsominions". Já tinha vídeo na internet. Para nós, era uma surpresa na época, mas eles já eram totalmente vinculados a essa ideia, porque era uma coisa descolada e um trabalho que tem sido feito há muitos anos. E que poderia ter ficado em 7% se os sistemas político e econômico não tivessem colapsado.
JC - O novo governo vai ter condições de manter essas pessoas inseridas no debate político, do qual talvez não participassem antes por não se verem representadas?
Rosana - Antropologicamente falando, somos mais ou menos completos quando estamos no coletivo. As pessoas tiveram isso com o Bolsonaro, de ter esperança mesmo. Eu acho que estão errados os analistas que dizem que ele é só o candidato da frustração e da raiva. Tem muita gente que votou nele pela esperança, por se sentir pertencendo, por achar que "agora vai". Agora, uma vez ganho, e desde o final da eleição, quando começaram os escândalos das notícias falsas, as pessoas já começaram a ter uma sensação de "se ele fizer isso, a gente tira ele". Minha aposta, pelo que venho acompanhando há algum tempo, é: o nível de esperança depositado nele foi muito grande, e isso é muito frágil, porque não vai conseguir melhorar a vida dessas pessoas em seis meses. Até pode conseguir uma medida superpopulista de liberar as armas - e acredito que vai -, mas não vai ser assim para as pessoas conseguirem o porte, vai demorar um ano, no mínimo. E essa crise na qual o Brasil entrou, para gerar a quantidade necessária de empregos e sair dela, leva muito tempo. Não tem o que possa ser feito tão rápido.
JC - Então a frustração do eleitorado bolsonarista tende a ser mais imediata?
Rosana - Tenho certeza de que a frustração popular virá, e muito rápido. E o problema é o que vai ser feito. Têm várias apostas do que pode ser feito diante da frustração popular. Uma delas, a que eu acredito que vai acontecer, é que o Bolsonaro vai fazer como fizeram os chineses, por exemplo, durante a revolução cultural. A revolução chinesa foi um pouco isso: eles não conseguiram entregar a revolução que queriam, de uma maneira radical, e começaram a achar culpados. E aí, justamente radicalizando na perseguição de professores, alegando que o problema era doutrinação etc. Um dos cenários possíveis é a radicalização do desvio do foco econômico, e continuar procurando culpados. Como o Brasil não tem imigrante, não tem refugiado, os nossos culpados serão os professores, e há uma tendência a perseguir a mídia e os jornalistas. Cria-se um inimigo e se desvia a atenção, que é isso que os governos historicamente fizeram. O outro lado seria vir algum grande escândalo de corrupção e assumir o (general Hamilton) Mourão (PRTB), porque a população, se houver uma radicalização, não tem uma esquerda, nem um lado progressista, nem um setor liberal-democrata preparado para dar alguma alternativa.
JC - A consolidação de Bolsonaro na base pode sustentá-lo, mesmo que o resultado não seja o esperado?
Rosana - Não acredito. E não acho que seja necessariamente ele. É uma esperança em uma coisa radical, e ele só vai conseguir se manter se tiver mais radicalização. Nesse caso, do autoritarismo, que é a única maneira que você consegue manter um certo desejo por radicalização, porque, pela via democrática, vai demorar. E, se tiver uma oportunidade de intervenção, vai ter legitimidade popular, disso tenho certeza. Mas pode não vir. Pode ser simplesmente um governo "ok", e, daqui a pouco, volta uma estabilidade um pouco democrática, uma social-democracia, como de costume. Mas a decepção vem, e ele não se sustenta. Essa coisa do ódio ao PT, da corrupção, da construção do inimigo, acredito que não vai se sustentar a longo prazo. A minha aposta é de que, daqui a seis meses ou um ano, vamos estar em uma crise de novo, porque a situação não vai mudar tão rápido. Essa transição é central para analisarmos, porque não vai mais ter o PT nem o Michel Temer para ser associado ao PT. Vai ser ele (Bolsonaro) sozinho.
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