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Opinião

- Publicada em 24 de Abril de 2020 às 15:12

Vírus e vírgulas

Valny Giacomelli Sobrinho
Quando comecei a escrever minhas primeiras “composições” nas aulas de “Comunicação e Expressão”, intrigavam-me as vírgulas. Como e quando usá-las? Dentre outras explicações pouco convincentes (por exemplo, a de que nunca vai vírgula antes da conjunção “e”!), a mais curiosa era uma meio, digamos, pneumológica. A vírgula tinha a ver com a respiração de quem lia. Indicava uma pausa para respirar, dizia-se. O escritor era o médico; o leitor, o paciente, que devia cumprir as prescrições respiratórias do doutor.
Quando comecei a escrever minhas primeiras “composições” nas aulas de “Comunicação e Expressão”, intrigavam-me as vírgulas. Como e quando usá-las? Dentre outras explicações pouco convincentes (por exemplo, a de que nunca vai vírgula antes da conjunção “e”!), a mais curiosa era uma meio, digamos, pneumológica. A vírgula tinha a ver com a respiração de quem lia. Indicava uma pausa para respirar, dizia-se. O escritor era o médico; o leitor, o paciente, que devia cumprir as prescrições respiratórias do doutor.
Tal argumento respiratório nunca me convenceu. Embora até funcione às vezes, não se sustenta na maioria. Na verdade, a Sintaxe, estudo da estrutura dos idiomas, revela que a vírgula acusa o deslocamento do termo do seu devido lugar na frase. Portanto, ao contrário desse novo vírus, não perturba a respiração do paciente. Mas, mal colocada, perturba, sim, como o vírus, o pensamento do leitor.
Para quem pensa na vírgula como no vírus, existe ainda uma função bem mais obscura desse sinal. Para muitos, tão invisível quanto o vírus e tão improvável quanto sua razão econômica. Porém, como a quarentena, a vírgula também serve para separar sujeitos diferentes. Promove seu "distanciamento social", embora o entendimento dessa função seja difícil até mesmo para iniciados.
Na Língua Portuguesa, há sujeitos que não frequentam outras línguas, mesmo as de dentro de sua família latina. Ao contrário do francês, por exemplo, temos o estranho caso do sujeito “inexistente”, que inclui o verbo haver com sentido de “existir”! Pior é o sujeito indeterminado, para verbos na terceira pessoa do singular acompanhados da partícula “se”. Em “Trata-se de vírus desconhecido”, o sujeito é indeterminado; em “Trata-se vírus com medicamento”, não. Como, neste último caso, também se pode dizer “Vírus é tratado com medicamento”, há um sujeito bem determinado aqui, numa formulação da voz passiva (“é tratado”) que não estava explícita antes. Agora, misturem-se esses sujeitos com os demais (simples, composto, oculto), numa sentença só, e aplique-se-lhe a vírgula. É mais fácil associá-la a uma pandêmica função respiratória e dissociá-la dessa congênita função sintática.
Tal atitude confina a aflição, mas não previne o erro. Evoca as curiosas prescrições médicas dos séculos XV e XVI, que, em tempos de peste, condenavam os banhos por abrirem os poros à infiltração do ar infeccioso através da pele (Vigarello, G. O limpo e o sujo: uma história da higiene corporal. São Paulo: Martins Fontes, 1996). Portanto, privar-se do banho e isolar-se do estranho criariam uma crosta protetora no corpo e na alma. Assim, entre as pestes de 1510 e 1561, a França oficializou o fechamento e a suspensão sistemáticos de atividades que pudessem recrudescer a epidemia, principalmente os banhos. Olhando-se, quinhentos anos à frente, para esse laboratório pretérito de privações e imundície, a repressão aos vírus na época parece ter sido tão efetiva quanto a respiração regida pelas vírgulas.
Professor de Economia/UFSM
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