Criada em 1949 para unificar a defesa da Europa sob o comando dos Estados Unidos contra a União Soviética, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) agora luta não só para tentar se redefinir no ambiente multipolar do século XXI, mas também contra uma grande ameaça interna.
Trata-se do inédito acordo militar entre dois de seus 30 membros, França e Grécia. Segundo o texto, costurado em setembro e ratificado na semana retrasada, os países se comprometem à defesa mútua em caso de ataque externo.
Até aí, o artigo 5º da carta de fundação da Otan prevê o mesmo - só que contra inimigos externos ao bloco. No novo pacto, a defesa vale também contra ataques dentro do clube militar. O foco tem nome e sobrenome: a Turquia do presidente Recep Tayyip Erdogan, o estratégico membro da Otan com um pé no Oriente Médio.
A rivalidade entre Ancara e Atenas é histórica e com um fundo religioso e cultural - os países já travaram quatro guerras desde que a Grécia deixou o Império Otomano em 1830 e dividem a ilha de Chipre em zonas de influência. O mais novo ponto contencioso é a riqueza em óleo e gás no subsolo da plataforma continental que dividem no Mediterrâneo.
Em agosto do ano passado, a prospecção turca de áreas de hidrocarbonetos quase levou os rivais às vias de fato. No mês passado, um navio de guerra turco ameaçou afundar uma embarcação maltesa que estudava a rota marinha do East Med, um gasoduto que ligará Israel a Chipre e à Grécia.
"Se formos atacados, teremos ao nosso lado a mais potente força armada do continente, a única potência nuclear europeia", disse o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, na sessão do Parlamento que ratificou o acordo no dia 7. Não por acaso, ele omitiu a outra potência atômica da Otan, o Reino Unido, que deixou a União Europeia em 2020.
Ao mesmo tempo, Paris fez questão de demonstrar que ainda está no jogo maior: na quarta-feira passada, enviou pela primeira vez em anos um navio para cruzar o estreito de Taiwan, sinal de apoio à ilha que Pequim considera sua e ameaça militarmente o tempo todo.
No escopo do pacto, a Grécia fechou um pacote de US$ 7,5 bilhões (R$ 41 bilhões, no câmbio de sexta, 15) para comprar 24 caças Rafale, 4 corvetas e 4 fragatas, além de mísseis.
O comando da Otan não gostou. "O que eu não acredito é no esforço de fazer algo fora do arcabouço da Otan, ou competindo ou duplicando a Otan, porque a aliança continua sendo a pedra fundamental da segurança europeia e norte-americana", afirmou o secretário-geral, Jens Stoltenberg, no dia 7. Na prática, contudo, ele pouco pôde fazer. Com o foco norte-americano pós-retirada do Afeganistão quase todo na Ásia, a exposição da Europa ao maior atrito com a Rússia e fissuras internas sérias, a própria ideia de aliança ocidental fica desafiada.