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Internacional

- Publicada em 11 de Março de 2020 às 14:31

Memória do fim da ditadura chilena se mescla a atos contra Piñera

Como 11 de março de 1990 marca o momento em que Augusto Pinochet entrega o país à democracia

Como 11 de março de 1990 marca o momento em que Augusto Pinochet entrega o país à democracia


MARTIN BERNETTI/AFP/JC
Os chilenos terão nesta quarta-feira (11) um motivo para celebrar e outro para protestar. E ambos estão relacionados.
Os chilenos terão nesta quarta-feira (11) um motivo para celebrar e outro para protestar. E ambos estão relacionados.
De um lado, vão comemorar os 30 anos do fim da ditadura no país. De outro, gritarão contra os dois anos do centro-direitista Sebastián Piñera no poder.
Como 11 de março de 1990 marca o momento em que Augusto Pinochet (1915-2006) entrega o poder ao primeiro líder eleito democraticamente após o regime militar, a data se tornou também o dia para as posses presidenciais.
Com o país mergulhado em uma profunda crise social, o presidente chileno se vê em meio a seguidos protestos e a uma enorme queda de popularidade - hoje, sua aprovação está em 6%, segundo o instituto Cadem.
As manifestações, que começaram em outubro contra o aumento do preço das passagens de metrô e desembocaram numa pauta diversa sobre desigualdade social - abrangendo temas como acesso à saúde pública e sistema de aposentadorias, entre outros pontos -, arrefeceram em dezembro.
Voltaram com força em março, quando os estudantes, motor dos atos antigoverno, retornamàs aulas.
No dia 3, a violência paralisou parte do sistema de transporte público da capital, Santiago. Ao menos 283 pessoas foram presas, e manifestantes saquearam lojas, destruíram estações de metrô, montaram barricadas nas ruas e atacaram postos policiais.
Menos de uma semana depois, na sequência do Dia da Mulher, milhares de mulheres participaram de uma greve para defender bandeiras feministas e de direitos civis, no segundo dia consecutivo de manifestações sobre o tema no país.
Além dos protestos marcados para esta quarta-feira, há uma agenda de atos para todas as sextas-feiras seguintes até 26 de abril, quando ocorrerá o plebiscito para decidir se haverá uma nova Assembleia Constituinte, proposta impulsionada por Piñera em reação às demandas populares.
Os escolhidos devem promulgar uma nova Carta, que substituiráa atual, do tempo da ditadura militar.
Para a escritora e militante de esquerda Diamela Eltit, 70, uma nova Constituição pode não contemplar todas as demandas da população, mas seria "um símbolo de muito impacto, que ajudaria a reunificar o país e contemplar as minorias". "Algo que deveria ter sido feito logo depois da ditadura, mas que continuou sendo um projeto sempre adiado", diz ela à reportagem.
Embora seja uma entusiasta da presença dos jovens nas ruas nos últimos meses, Eltit, autora do romance "Jamais o Fogo Nunca", sobre pessoas que resistiram à ditadura militar, chama a atenção para a possibilidade de "os protestos passarem a ser uma forma de fascismo popular".
"Para evitar isso, é preciso que um grupo, eleito democraticamente ou de políticos já eleitos, assuma essas bandeiras de modo legal."
Promulgada nos anos de Pinochet, a Constituição chilena atinge pautas centrais dos manifestantes, como o sistema de aposentadorias. De acordo com a Carta atual, a contribuição deve ser recolhida pelos próprios trabalhadores.
Na gestão da centro-esquerdista Michelle Bachelet, o Estado passou a participar do rateio previdenciário, mas a ex-presidente jamais conseguiu transformar a alteração em uma nova lei. Tampouco obteve apoio para a proposta de uma Assembleia Constituinte.
Outra demanda relacionada à ditadura é o fim da violência e dos abusos cometidos pelos Carabineros, força armada que reprime duramente as manifestações. Piñera alega que o uso dos agentesé necessário porque haveria nos atos infiltrações de grupos estrangeiros financiados por Venezuela ou Cuba.
O fato é que centenas de pessoas perderam parcialmente a visão devido à utilização de balas de borracha, e, até agora, confrontos durante os protestos já deixaram mais de 30 mortos.
"Quando dizemos que há feridas abertas desde o tempo da ditadura, não nos referimos a uma questão de linguagem, pois a atuação e o treinamento dos Carabineros de hoje é herdeira do modo como agiam na ditadura", diz o cientista político Fernando García-Naddaf.
"Antes do regime militar, o Exército tinha uma outra leitura, muito mais ponderada, do que era o país e suas diferenças sociais históricas."
Embora exista um consenso de que a transição democrática tenha ocorrido entre o plebiscito de 1988, que determinou o fim do regime militar, e 11 de março de 1990, quando Patricio Aylwin (1918-2016) assumiu, hádiscordâncias.
Alguns historiadores afirmam que a transição só se completou com a vitória de Bachelet em 2006, quando a filha de um ex-militar ligado a Salvador Allende, morto pela ditadura de Pinochet, chegou à Presidência. Já outros defendem que ela só se completará quando a atual Constituição for substituída.
Para o analista político Patricio Navia, no entanto, o fato de a atual Carta se manter há muitos anos mostra que "para algo ela funciona". "Além disso, há setores da sociedade que não veem por que mudá-la. Não sei se será tão fácil convencer os chilenos, no plebiscito, que devemos substituí-la."
Durante a gestão do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), o documento sofreu 56 alterações, a maioria delas para retirar aspectos mais linha-dura. Permaneceram, porém, pontos relativos à aposentadoria, além da lei antiterrorismo, usada por gestões de direita contra, por exemplo, ataques de indígenas mapuches, que exigem demarcação de suas terras e respeito à identidade cultural.
"Temos que formar uma Assembleia Constituinte com uma representação muito igualitária entre chilenos de esquerda e de direita, representantes de minorias e dos povos originários. Se esse plebiscito não servir para isso, não alcançaremos esse objetivo", diz a escritora Lina Meruane.
O Chile ainda está muito atrás da Argentina, por exemplo, na investigação de crimes da ditadura, mas nos últimos anos houve vários avanços.
No campo dos direitos humanos, a Justiça chilena tem julgando delitos do período militar sob o conceito do "desaparecimento continuado"-em termos práticos, se o corpo de uma vítima não é encontrado, considera-se que o crime ainda está sendo cometido, todos os dias.
Também aplica-se a lei do direito internacional estabelecida pelo Estatuto de Roma que classifica como livre de prescrição os crimes de lesa humanidade -assassinatos, sequestros e torturas cometidos pelo Estado.
"Assim, é possível driblar a lei da anistia, assinada em 1978, e investigar crimes como o desaparecimento do cantor popular Victor Jara, do caso Quemados [em que dois estudantes foram queimados vivos por oficiais do Exército durante uma manifestação]", diz o juiz Mario Carroza.
Segundo estimativas de organizações de direitos humanos, houve cerca de 3.000 desaparecidos durante o período.
Um pouco desse trabalho começou logo após a redemocratização, quando Aylwin comandou o Informe Retting, uma espécie de Comissão da Verdade que recolheu mais de 3.500 denúncias de sequestros e torturas. O trabalho segue sendo base, até hoje, para investigações da Justiça.
Para García-Naddaf, o Chile não está tão mal na foto como as imagens das manifestações fazem presumir.
"Temos um sistema político que funciona, temos democracia, temos instituições, temos separação de poderes e um sistema eleitoral justo, além de uma inegável liberdade de imprensa", argumenta o cientista político.
"O início [das mudanças] não seráa partir de solo arrasado. E sim a partir do que esses 30 anos de democracia conseguiram avançar."
Folhapress
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