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Memória

- Publicada em 13 de Maio de 2021 às 17:59

Como a enchente de 1941 gerou o Muro da Mauá

Muro integra sistema de proteção contra cheias da cidade e provoca discussões até hoje

Muro integra sistema de proteção contra cheias da cidade e provoca discussões até hoje


MARCO QUINTANA/JC
Depois de os porto-alegrenses testemunharem o Guaíba alcançar a marca de 4,76 metros na enchente de 1941; de enxergarem o Mercado Público, a Praça da Alfândega e até a Rua da Praia embaixo d’água; de ver as fábricas do 4º Distrito interromperem suas atividades porque as máquinas estavam submersas; de se comoverem com o drama de 70 mil pessoas afetadas pela cheia; de contabilizarem mais de 300 contos de réis em prejuízo (aproximadamente US$ 30 milhões)... depois de tudo isso, não deu mais para negar que a cidade precisava se proteger das inundações.
Depois de os porto-alegrenses testemunharem o Guaíba alcançar a marca de 4,76 metros na enchente de 1941; de enxergarem o Mercado Público, a Praça da Alfândega e até a Rua da Praia embaixo d’água; de ver as fábricas do 4º Distrito interromperem suas atividades porque as máquinas estavam submersas; de se comoverem com o drama de 70 mil pessoas afetadas pela cheia; de contabilizarem mais de 300 contos de réis em prejuízo (aproximadamente US$ 30 milhões)... depois de tudo isso, não deu mais para negar que a cidade precisava se proteger das inundações.
Várias obras foram debatidas até que se chegasse a um projeto definitivo: a construção de diques e um muro na beira do Guaíba, formando uma barreira entre a cidade e o lago. Foi assim que surgiu o Muro da Mauá – que ainda hoje, 80 anos depois da maior enchente que Porto Alegre já viu, suscita discussões intermináveis sobre sua permanência ou não em uma área central da cidade.
O Muro da Mauá faz parte de um sistema maior de proteção contra enchentes. Esse sistema é composto basicamente por três elementos: 24 quilômetros de diques externos, às margens do Lago Guaíba e dos rios Jacuí e Gravataí; 44 km de diques internos, às margens dos arroios que atravessam a cidade; e uma série de casas de bombas para drenar mecanicamente a água da chuva que se acumula nas ruas.
A função dos diques externos, construídos ao longo dos anos 1950 e 1960, é evitar que o Guaíba, Jacuí e Gravataí transbordem para dentro da cidade. As elevações se estendem ao norte e ao sul do Cais Mauá. Ao norte, seguem o trajeto da avenida Castelo Branco e da freeway. Aliás, essas duas rodovias foram instaladas em cima dos diques de proteção contra as cheias. Por isso, as pistas para os veículos estão elevadas em relação ao resto da cidade e dos rios.
Ao sul, os diques acompanham o traçado das avenidas Edvaldo Pereira Paiva (Beira-Rio) e Diário de Notícias. Essas avenidas também foram construídas sobre os diques. No bairro Praia de Belas, o trecho entre o Guaíba e o Parque Marinha do Brasil foi construído sobre um aterro.
De acordo com o Atlas Ambiental de Porto Alegre, os 24 km de elevações englobam quatro diques externos. Do norte para o sul, são eles: freeway, Navegantes (sob a Castelo Branco), Praia de Belas (sob a Edvaldo Pereira Paiva) e Cristal (sob a Diário de Notícias).
Em frente ao Cais, não foi possível elevar a avenida Mauá sobre um dique. Além de a área ser bastante povoada, era inviável interromper o embarque e desembarque no porto, visto que o local era responsável pela movimentação de uma grande quantidade de produtos comercializados na Capital. Por isso, nos anos 1970, durante a gestão do prefeito Telmo Thompson Flores (Arena, 1969-1975), foi construído o muro ali.
“Ao redor do Cais do Porto, a situação era diferente. O porto ainda tinha bastante movimentação, um pouco diferente do que temos hoje. Então, tínhamos os armazéns do Cais, já tínhamos a avenida Mauá, já tínhamos todo esse trânsito (de veículos) intermunicipal e inter-regional. Não tinha espaço para fazer um dique. Por isso, a alternativa à época foi colocar um muro ali. Afinal, o muro nada mais é do que um dique reduzido”, explica o arquiteto e urbanista Demétrius Gonzalez.
Além dos 24 km de diques no limite da cidade com o Guaíba, Jacuí e Gravataí, há outros 44 km de diques internos – construídos nas margens de arroios que passam pelo meio da cidade. Nesses casos, a função é impedir que os córregos transbordem dentro do perímetro urbano. Conforme o Atlas Ambiental de Porto Alegre, a Capital possui cinco diques desse tipo: o Santo-Agostinho/Assis Brasil, Sarandi, Montante, Arroio Dilúvio, Sanga da Morte e Cavalhada.
“Então, o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre é formado por uma cortina de proteção, através de diques e do Muro da Mauá. Também faz parte do sistema uma série de casas de bombas. Afinal, não há só a necessidade de evitar que a água do Guaíba chegue à cidade (função desempenhada pelos diques externos). Também há a necessidade de tirar a água da chuva que cai na cidade, bombeando-a de volta para o lago. Sem as casas de bomba, a cidade não inundaria com o transbordamento do Guaíba, mas alagaria com a água da chuva”, resume Gonzalez.
Conforme dados do extinto Departamento de Esgoto Pluvial (DEP), a Capital conta com 22 casas de bomba. No site do DEP (que continua no ar), há a informação de que todas “as casas de bomba compreendem 86 bombas com capacidade total de bombeamento de 170 mil litros por segundo de água da chuva. Este total pode não ser atingido devido a avarias em algumas bombas”.
Na avaliação de Gonzalez, “tudo indica que o sistema de proteção contra cheia é eficaz”, embora só “se terá certeza disso, se tivermos outra enchente como a de 1941”. Mesmo assim, as comportas do muro já foram fechadas algumas vezes. “Em 2015, por exemplo, houve um excesso de chuva e os portões do Cais tiveram que ser fechados. Mas hoje há um problema, talvez, de manutenção e operacionalização do muro”, ponderou o arquiteto.
De qualquer forma, o Muro da Mauá continua sendo objeto de discussões. Os críticos do muro sustentam que ele separa a cidade do Guaíba, impedindo uma interação da população com a área do Cais Mauá. Para comprovar o seu ponto, citam outras cidades no mundo que também costeiam rios, lagos e mares – como Nova York, por exemplo – as quais não possuem muros semelhantes ao Mauá.
Demétrius Gonzales argumenta que, para o sistema de proteção contra as cheias funcionar, o muro é necessário. Contudo, não ignora os apelos por uma integração maior entre a cidade e o Guaíba. “Não temos só o muro. Temos a avenida Mauá, com cinco pistas, trânsito intra e interurbano, uma quantidade monumental de ônibus. Depois da Mauá, no trecho entre o Cais do Porto e a rodoviária, temos os trilhos do Trensurb. Aí, depois disso, tem o Muro da Mauá. Então, será que o muro é realmente o grande problema urbanístico daquela região? Será que não existem outras soluções urbanísticas que permitam que as pessoas saiam do centro da cidade e vão até o Cais do Porto?”, pondera o arquiteto.

A história do sistema de proteção contra cheias em Porto Alegre

Ex-prefeito e ex-vereador, João Dib lembra discussão sobre o projeto do Muro da Mauá

Ex-prefeito e ex-vereador, João Dib lembra discussão sobre o projeto do Muro da Mauá


CLAITON DORNELLES/ARQUIVO/JC
As discussões sobre o que poderia ser feito para proteger a cidade das cheias já vinham ocorrendo há muito tempo em Porto Alegre. Para o jornalista e escritor Rafael Guimaraens, autor do livro A Enchente de 41, a primeira autoridade a pensar em construir um muro às margens do Guaíba foi o português José Marcelino de Figueiredo, em 1772. Entretanto, ele tinha razões militares para isso.
As enchentes de 1873 (quando o Guaíba atingiu 3,5 metros), de 1928 (3,2 metros) e de 1936 (3,22 metros) esquentaram o debate sobre um sistema de proteção. Apesar disso, não geraram uma solução efetiva. Depois da enchente de 1941, a Sociedade de Engenharia centralizou a discussão, de onde surgiram três projetos – inclusive o que seria executado. Contudo, Porto Alegre ainda passaria pela enchente de 1967 (3,13 metros), antes que as autoridades decidissem executar uma das propostas.
Uma das soluções estudadas, por exemplo, previa a construção de um canal que, primeiro, ligaria o Rio dos Sinos ao Rio Gravataí. Depois, ligaria o Gravataí até o Oceano Atlântico. A obra inverteria o fluxo do Gravataí, fazendo a água do Jacuí e do próprio Gravataí escorrer no sentido oeste-leste até o mar. A obra foi descartada, porque, ao reduzir significativamente o volume do Lago Guaíba, acabaria esvaziando o Porto do Rio Grande e Pelotas. Além disso, seria muito onerosa.
A ideia que acabou efetivamente implantada, segundo Guimaraens, foi apresentada à Sociedade de Engenharia em 10 de maio de 1943, pelo presidente do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) Góis Monteiro. O sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre prevê proteção para a elevação das águas do Guaíba até 5 metros.
O projeto de Góis Monteiro começou a sair do papel a partir dos anos 1950, com a execução dos aterros nos bairros Praia de Belas (onde seria construído o dique sob a avenida Beira-Rio) e Navegantes (onde seria feito o dique sob a avenida Castelo Branco e a freeway). O sistema foi concluído nos anos 1970, quando o prefeito Telmo Thompson Flores edificou o muro.
Quando o ex-prefeito de Porto Alegre João Dib (PP, 1983-1985) era vereador de Porto Alegre, no início dos anos 1970, quando só havia dois partidos no Brasil (Arena e MDB), ele lembra que o muro passou pela pauta da Câmara Municipal. “Quando o Thompson Flores construiu o muro, também fez a fundação para uma elevada sobre a avenida Mauá. Mais tarde, quando ele tentou aprovar a construção da elevada, a Câmara não aprovou por causa do nome, que seria Artur da Costa e Silva. A Arena não poderia ter mudado o nome da elevada. Mas o MDB poderia ter feito isso. Em vez disso, não fez nada. Com o passar do tempo, a inflação aumentou e não houve outro caminho, senão desistir da construção da elevada”.
Quando assumiu a prefeitura, Dib foi o primeiro prefeito a ordenar o fechamento das comportas do muro, durante a enchente de 1984. “Eu ia todos os dias olhar o Guaíba de manhã e a tarde. Pensava que não iria transbordar. Mas o meu secretário da Saúde, Germano Bonow, me disse que um dos armazéns estava cheio de soda cáustica no chão. Por isso, não quis arriscar e fechamos as comportas pela primeira vez”.
Em 2015, as comportas do Muro tiveram que ser fechado outra vez. De qualquer forma, não se sabe se o projeto executado por Thompson Flores era fiel ao de Góis Monteiro, porque, conforme o arquiteto e urbanista Demétrius Gonzalez – que pesquisou o tema – o projeto final se perdeu. “Não se consegue acesso ao projeto do muro (que foi efetivamente executado). Não temos um histórico projetual, até porque foi desenhado por um órgão extinto (DNOS), não se tem muita informação para isso”.