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Memória

- Publicada em 29 de Abril de 2021 às 16:30

Primeira-dama liderou rede de solidariedade na enchente de 1941

Rua Voluntários da Pátria, onde se concentrava o comércio atacadista, foi um dos primeiros lugares a alagar

Rua Voluntários da Pátria, onde se concentrava o comércio atacadista, foi um dos primeiros lugares a alagar


Acervo fotográfico/Museu de Comunicação Hipólito José da Costa/Antônio Nunes/JC
No início da enchente de 1941, antes de o Centro de Porto Alegre ficar submerso, um desfile de bandas atravessou a avenida Borges de Medeiros – coletando doações para os desabrigados dos primeiros alagamentos, ocorridos na Ilhota, Ilhas do Delta do Jacuí e 4º Distrito. As bandas animavam milhares de pessoas, que desciam a Borges em direção ao Paço Municipal. Automóveis seguiam a multidão, carregando alimentos e agasalhos para os flagelados (como eram chamados os desabrigados). À medida que a turba avançava, moradores dos edifícios jogavam pela janela casacos, camisas, calças e outras doações. Parecia Carnaval. Mas era só solidariedade. Esse sentimento se manteve desde as primeiras inundações (em 22 de abril) até a diminuição das águas (em 14 de maio). Todos os que não foram atingidos pela cheia – dos mais abastados aos mais humildes – fizeram o que estava ao seu alcance durante aqueles 22 dias fatídicos, quando as águas avançaram sobre a cidade.
No início da enchente de 1941, antes de o Centro de Porto Alegre ficar submerso, um desfile de bandas atravessou a avenida Borges de Medeiros – coletando doações para os desabrigados dos primeiros alagamentos, ocorridos na Ilhota, Ilhas do Delta do Jacuí e 4º Distrito. As bandas animavam milhares de pessoas, que desciam a Borges em direção ao Paço Municipal. Automóveis seguiam a multidão, carregando alimentos e agasalhos para os flagelados (como eram chamados os desabrigados). À medida que a turba avançava, moradores dos edifícios jogavam pela janela casacos, camisas, calças e outras doações. Parecia Carnaval. Mas era só solidariedade. Esse sentimento se manteve desde as primeiras inundações (em 22 de abril) até a diminuição das águas (em 14 de maio). Todos os que não foram atingidos pela cheia – dos mais abastados aos mais humildes – fizeram o que estava ao seu alcance durante aqueles 22 dias fatídicos, quando as águas avançaram sobre a cidade.
Poucas pessoas encarnaram tão bem o espírito solidário quanto a primeira-dama do Rio Grande do Sul, Avani Cordeiro de Farias, que se tornou símbolo da filantropia. Sua posição de destaque atraía a atenção dos jornais, que registravam suas aparições públicas, em trajes elegantes, maquiagem bem delineada e cabelo milimetricamente penteado. Essa atenção permitiu que ela, transitando com desenvoltura pela alta sociedade, angariasse recursos entre socialites e empresários para ajudar aos desabrigados.
Em 11 de maio, quando as águas já haviam baixado consideravelmente, a Comissão de Auxílio aos Flagelados prestou contas das doações: tinha recebido 300 contos de réis, o que equivaleria hoje a US$ 150 mil. Ivani liderou o auxílio aos flagelados, e só depois o governo do Estado, comandado pelo seu marido, coronel Osvaldo Cordeiro de Farias, tomou medidas mais efetivas. A Comissão de Auxílio aos Flagelados, por exemplo, só foi criada em 30 de abril. Antes disso, a primeira-dama e um grupo de “distintas senhoras da sociedade metropolitana”, como descreveu a Revista do Globo, já havia visitado fábricas de colchões, cobertores e casacos que não tinham sido atingidas pela cheia. Diante do apelo da primeira-dama, industriais fizeram doações. A própria Ivani Cordeiro de Farias participou da entrega dos donativos.
Repórteres da Revista do Globo acompanharam-na em uma entrega na Praça da Harmonia, onde centenas de flagelados estavam instalados em barracas e tendas. Sob uma chuva torrencial, Ivani chegou ao local em uma caminhonete carregada de cobertores, colchões e casacos. Em seguida, subiu na carroceria e ajudou a distribuir as doações. Seus sapatos de salto ficaram enlameados. Sem se importar ela, antes de ir embora, conversou com desvalidos. Além de gerenciar doações, a primeira-dama dirigiu cinco albergues durante a enchente de 1941. Talvez o exemplo dela tenha inspirado outros cidadãos.
Em 3 de maio, a Rádio Farroupilha noticiou que 411 porto-alegrenses que possuíam mais de um imóvel haviam entregado às autoridades a chave dos seus apartamentos e casas desocupados. A ideia era que o poder público usasse esses locais para abrigar flagelados. Ao mesmo tempo, dezenas de sindicatos, clubes, igrejas e sociedades esportivas disponibilizaram suas dependências. Conforme levantamento do Diário de Notícias, em 4 de maio, todos esses locais poderiam abrigar até 3 mil pessoas. Graças à cooperação da sociedade, a Comissão de Auxílio aos Flagelados conseguiu criar 84 albergues.
Mesmo quem sofreu prejuízos por causa da cheia, deu a sua colaboração. Foi o caso dos proprietários da madeireira Noronha, Ibias e Cia Ltda, cuja sede ficava na rua Voluntários da Pátria, esquina com Gaspar Martins. O local ficou completamente submerso com a enchente. Mesmo assim, em 5 de maio, o dono procurou o Diário de Notícias para fazer um anúncio. “Ontem, o sócio dessa firma esteve em nossa redação, dizendo que pôs à disposição das pessoas necessitadas as madeiras que necessitarem para a construção de pontes e pinguelas”, publicou o jornal, no dia seguinte. Os repórteres da Revista do Globo também flagraram comerciantes de hortifrútis, distribuindo caixas de maças à população, pois seus armazéns estavam completamente inundados.
Para o escritor Rafael Guimaraens – autor da obra A Enchente de 41 – a soma de todos esses gestos ajudou a moldar o caráter solidário de Porto Alegre. “Essa ideia de uma cidade solidária, onde pessoas se preocupam umas com as outras, as mais abastadas se preocupam com as de menos posses, essa característica também é produto da enchente. De certa forma, a tragédia permitiu que as pessoas exercessem seu lado humano. É um jeito bonito de lembrar daquele episódio difícil”, conclui.

Poder público se mobilizou quando Centro foi inundado

Sede da prefeitura de Porto Alegre, Paço Municipal ficou ilhado em 1941

Sede da prefeitura de Porto Alegre, Paço Municipal ficou ilhado em 1941


Antônio Nunes/Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa/JC
As primeiras inundações da enchente de 1941 – na Ilhota, Delta do Jacuí e 4º Distrito, a partir de 22 de abril – não mobilizaram tanto o poder público quanto o avanço das águas sobre o Centro de Porto Alegre. Certamente, o alagamento das lojas atacadistas e das fábricas de tecidos do 4º Distrito havia preocupado o coronel Osvaldo Cordeiro de Farias, interventor federal nomeado pelo presidente Getúlio Vargas, para governar o Rio Grande do Sul. Entretanto, ele só se engajou no socorro à cidade, em maio, quando o Cais do Porto chegou a ficar sob 2 metros de água; o Mercado Público, sob 1,7m; a Praça da Alfândega, sob 1,5m; e a Usina do Gasômetro, sob mais de 1m.
Em 30 de abril, Cordeiro de Farias chamou ao Palácio Piratini o intendente da Capital José Loureiro da Silva (que governou a cidade de 1937 a 1943; e de 1960 a 1964); o administrador do Cais do Porto, Mario da Matta; o chefe de polícia, Aurélio de Lima Py; e o comandante da Brigada Militar, Ângelo Mello. Naquela reunião, Cordeiro de Farias requisitou duas coisas: a criação de um grupo para lidar com os danos da enchente e um barco para inspecionar a situação da cidade.
Foi criada a Comissão de Tabelamento e Abastecimento e a Comissão Central de Assistência aos Flagelados. O primeiro colegiado, presidido por João Dahne, fez um levantamento de todos os alimentos disponíveis nos armazéns não atingidos pela enchente. A Associação Comercial de Porto Alegre (ACPA) coletou informações junto aos seus filiados. Ao verificar que os gêneros alimentícios estavam atingindo preços estratosféricos, a comissão divulgou na imprensa uma tabela com o valor a ser cobrado pelos alimentos básicos. Os preços deviam ser praticados a partir de 5 de maio, sob pena de prisão a quem desrespeitasse o tabelamento. Na lista, itens como açúcar, arroz, feijão, café, banha e pão. Conforme Rafael Guimaraens, ao final da enchente, 117 comerciantes foram presos por cobrar preços acima do permitido.
Enquanto a Comissão de Tabelamento garantia que não faltasse comida durante a cheia, a Comissão de Assistência aos Flagelados garantia acolhimento aos desabrigados. Foram criados 84 albergues em prédios públicos, escolas da rede pública e privada, clubes recreativos etc. Esses locais chegaram a abrigar mais de 18 mil pessoas. O colegiado era presidido por Loureiro da Silva. Entretanto, ao longo da enchente, ele ficou de cama por conta de uma doença não especificada pelos jornais.
Quanto à segunda solicitação do interventor federal, a Diretoria de Navegação Fluvial, órgão vinculado à Secretaria de Obras Públicas, disponibilizou uma embarcação ao chefe do Executivo. Nela, o coronel Cordeiro de Farias passou a vistoriar diariamente a cidade. Por exemplo, em 3 de maio, por volta das 14h, se dirigiu ao Portal Central do Cais, onde subiu a bordo de uma das lanchas da Diretoria de Navegação Fluvial. Ele transitou pelas margens das ilhas, Lago Guaíba, Rio Jacuí, até a várzea do Rio Gravataí. Além de se deparar com o prejuízo material, encontrou dezenas de pessoas ilhadas nos telhados das casas, nas copas das árvores e em outros locais altos. Por volta das 20h, voltou ao cais com 50 flagelados resgatados durante a inspeção. Assim que atracou, ordenou que a lancha refizesse o trajeto, pois outros desabrigados não couberam na embarcação durante a primeira viagem. Antes de regressar ao Piratini, se informou sobre o nível das águas: a marcação estava em 3,25m. E subindo.
O interventor permaneceu no palácio até às 22h, quando foi de automóvel, na companhia do delegado do Dops, Plínio Milano, e outros homens de confiança, ver de perto o tratamento que estava sendo dispensado aos flagelados nos abrigos públicos. Um dos albergues visitados ficava na 4ª Delegacia, onde estavam 150 desabrigados. O coronel saiu de lá por volta da meia-noite. Voltou ao Cais do Porto, pois queria saber dos flagelados que não pôde socorrer à tarde. O próprio administrador do Porto lhe relatou os esforços para resgatá-los. Também elencou o que estava sendo feito para salvar as mercadorias dos comerciantes mais atingidos.
Essas inspeções se tornaram a rotina do coronel Cordeiro de Farias. Tanto que o viajante alemão Wolfgang Hoffmann-Harnisch, que passou por Porto Alegre durante a enchente de 1941, relatou ter visto o interventor federal duas vezes. Em uma das ocasiões, o alemão viu um homem abastecendo o automóvel do chefe do Executivo, em um posto de gasolina no bairro Navegantes. Era meia-noite. O guia que acompanhava o viajante estrangeiro explicou: “com esses dois homens (Plínio Milano e Major Walter), o interventor sai todas as noites para inspecionar os serviços de salvamento”.
Alguns dias depois de a enchente atingir o ápice – o que ocorreu em 8 de maio, quando o Guaíba chegou a 4,76m –, o interventor federal assinou o decreto que instituía um terceiro grupo de trabalho: a Comissão Verificadora de Danos. O colegiado foi oficializado em 11 de maio, com o objetivo de contabilizar o prejuízo de agricultores, comerciantes e industriais. Conforme o escritor Rafael Guimaraens – que, em 2009, escreveu o livro A Enchente de 41 – o prejuízo chegou a 60 mil contos de réis (o equivalente a mais de US$ 30 milhões). O historiador Sérgio da Costa Franco – autor de diversos livros sobre a história de Porto Alegre – tinha 8 anos em 1941. Ele lembra que o governo prometeu uma compensação aos empresários prejudicados – o que nunca teria se concretizado.