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reportagem cultural

- Publicada em 03 de Março de 2022 às 18:38

A música universal de Márcio Faraco, um exilado poético em Paris

Vivendo há três décadas na Europa, cantor e compositor gaúcho reflete sobre sua trajetória de idas e possíveis retornos

Vivendo há três décadas na Europa, cantor e compositor gaúcho reflete sobre sua trajetória de idas e possíveis retornos


ROBSON GALDINO/DIVULGAÇÃO/JC
"Quando cheguei aqui, a Torre Eiffel tinha apenas 15 centímetros", brinca o cantor e compositor Márcio Faraco para demonstrar há quanto tempo ele vive em Paris, na França. A capital francesa não foi a primeira parada. Desiludido com o Brasil e com os rumos que a cultura brasileira tomava naquele primeiro ano da década de 1990, com Fernando Collor ainda no poder, Márcio optou por morar no norte da Inglaterra. Mas não se deu bem. 
"Quando cheguei aqui, a Torre Eiffel tinha apenas 15 centímetros", brinca o cantor e compositor Márcio Faraco para demonstrar há quanto tempo ele vive em Paris, na França. A capital francesa não foi a primeira parada. Desiludido com o Brasil e com os rumos que a cultura brasileira tomava naquele primeiro ano da década de 1990, com Fernando Collor ainda no poder, Márcio optou por morar no norte da Inglaterra. Mas não se deu bem. 
"Eu estava morando no Rio com minha ex-mulher, que é francesa, e decidimos ir embora depois que o Collor acabou com tudo. Mas primeiro fomos para Inglaterra, em Newcastle, ao lado da Escócia. Mas já na época, eu não via como a música brasileira poderia entrar naquele universo hermético da música pop inglesa", explica. E para não ser obrigado a trabalhar em outra atividade, ele rapidamente decidiu se mudar para o sul da França.
A adaptação não teve mistério nenhum. Márcio se identificou de imediato com os hábitos, com o idioma e com a sensação de que o público francês parecia estar com os ouvidos mais abertos para os sons do mundo. Ainda que a primeira parada não tenha sido a ideal, no sul, em Saint-Tropez, Márcio já se sentia próximo do que almejava. Assim, a chegada em Paris, onde mora desde 1993, foi natural. "Na época, eu me sentia como um exilado poético. Lembrando que a França acolheu muitos exilados políticos brasileiros", compara Márcio. E completa: "Mas eu vim só porque não tive oportunidade de mostrar a minha música no meu país. Pensando bem, é uma espécie de exílio mesmo, porque, se tivesse tido a mesma chance no Brasil, jamais sairia daí".
Agora - há pouco mais de três meses - Márcio acaba de lançar um novo trabalho, L'Electricien de la Ville Lumière (O Eletricista da Cidade-Luz - alcunha pela qual a capital francesa é tão conhecida). É também o registro que comemora as três décadas que Márcio vive na França. "Esse é o primeiro disco que faço em francês, após nove discos em português. Desde meu primeiro contrato com a Universal Jazz France, em 2000, só faço discos com canções próprias e em português. Fiz dois álbuns independentes de reprises de música brasileira e sete com composições próprias, três pela Universal Jazz e quatro pela Harmonia Mundi", explica. E, com uma certa melancolia ao fazer um balanço de todo esse período, ele conclui: "Esse novo disco que lancei é um projeto especial. Não escrevi uma letra sequer, apenas compus e cantei. Não sou um cantor francês, sou um brasileiro que faz música brasileira no exterior porque não teve oportunidade no seu próprio país".

O poeta e o eletricista

Márcio Faraco largou carreira em cartório para dedicar-se à música

Márcio Faraco largou carreira em cartório para dedicar-se à música


ROBSON GALDINO/DIVULGAÇÃO/JC
Márcio Faraco conta que o que o animou a fazer um álbum em francês foi o encontro com alguns autores. O primeiro foi Alain Gerber, romancista e também um importante crítico de jazz francês, que o presenteou com uma letra. Depois foi a vez da jornalista e escritora Dominique Dreyfus - autora da biografia do violonista brasileiro Baden Powell - que lhe enviou duas poesias. Por fim, surge o poeta Philippe Thivet, que escreveu a maioria das letras das canções.
A trajetória de Philippe Thivet é curiosa. Na vida real, ele, de fato, trabalha como eletricista em Paris. "Além disso, é um grande poeta que ninguém conhecia até então. Um dia me enviou textos inacreditavelmente belos, dos quais fiz oito canções. O título do disco é uma homenagem a ele", conta Márcio.
Violonista, compositor, arranjador e cantor, Márcio Faraco nasceu em Alegrete, em 1963. Começou a se interessar pela música aos 12 anos, quando teve seus primeiros estudos de violão. "Meu pai era militar. Aos cinco anos, saí de Alegrete para morar em Porto Alegre, no Bom Fim. De lá, dois anos depois, partimos para Recife, depois Brasília, Belo Horizonte, Rio... Foi uma vida itinerante que já anunciava meu destino". Artisticamente, Márcio começou a se destacar em 1986, quando foi eleito o melhor compositor de Brasília em um concurso do jornal Correio Braziliense. Foi por essa época também que Márcio se aproximou de Cássia Eller (leia texto a seguir) e decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. "Eu faço parte de uma família de advogados. Estudei Direito, mas não me formei. Como estagiário cheguei a trabalhar no Cartório de Órfãos e Sucessões, onde meu maior feito foi ter vencido o campeonato de damas do Tribunal de Justiça do DF. No entanto, me sentia um traidor, já que desde os 16 anos já era músico profissional. Acabei trocando o Cartório de Sucessões pela tentativa de sucesso na música".
A temporada carioca foi curta e logo Márcio partiu para Paris. Em 1994, participou do songbook de Tom Jobim (Lumiar Discos), gravando a faixa Gabriela. Nesse mesmo ano participou como cantor, violonista e arranjador do CD Couleur Café, da cantora francesa Clementine, e, em seguida, assinou contrato de exclusividade com a Universal Music Jazz France. Em 2000, lançou seu primeiro CD, Ciranda, que contou com produção e arranjos de Wagner Tiso. O disco vendeu mais de 60 mil cópias em toda a Europa, gerando turnês pelo continente, no Canadá e Estados Unidos, com destaque para sua apresentação no Blue Note, em Nova York, em 2001. "Sou muito fã, há muitos anos, do trabalho do Márcio. Ele é um músico harmonicamente bastante refinado", elogia o violonista Yamandú Costa.
"A minha vida andarilha, de cidade em cidade, me abriu não apenas os olhos, mas os ouvidos também. Fui convidado para dar uma palestra na Universidade de Nova York e levei um mapa do Brasil para explicar como eu tinha aprendido música falando. Uma teoria apenas minha, que não sei que valor tem, mas que para mim faz sentido. Falamos como tocamos, e o sotaque de cada lugar onde morei está presente na minha música. Ninguém me ensinou chamamé, samba, baião ou manouche, aprendi na entonação do sotaque e no ritmo da fala", diz Faraco. Yamandú acrescenta: "O Márcio é um artista que reúne vários elementos em sua música. É um homem do interior do Rio Grande do Sul, que passou pelo rock de Brasília e que entende muito de bossa nova e da música feita na Europa e nos Estados Unidos. É um talento universal".

Meu caro amigo Chico Buarque

Chico Buarque viajou até Paris para tocar ao lado de Faraco no lançamento de 'Ciranda'

Chico Buarque viajou até Paris para tocar ao lado de Faraco no lançamento de 'Ciranda'


ACERVO PESSOAL MÁRCIO FARACO/DIVULGAÇÃO/JC
Nos primeiros tempos na França, Márcio não via como podia mostrar um trabalho mais autoral, em que pudesse apresentar suas composições. Sua primeira proximidade foi com o jazz: "Eu passava os invernos me apresentando em bares nas estações de esqui e, no verão, nas praias de Saint-Tropez. Lá encontrei muitas pessoas, pois a Côte d'Azur é o destino de muitos artistas consagrados. Ali conheci e toquei informalmente com nomes importantes do jazz como Quincy Jones, Abbey Lincoln, Tommy Flanagan, Al Di Meola...".
Foi num desses verões que Márcio foi convidado para ser guitarrista do grupo de um cantor francês que fazia muito sucesso na época, Didier Sustrac. Alguns meses depois, o produtor de Sustrac iria lhe fazer uma proposta interessantíssima: ser o diretor musical de um programa especial sobre música brasileira para televisão francesa. "Ali tive a difícil missão de ser o diretor do grupo que acompanharia Chico Buarque. No ensaio, ele sentou-se de frente para mim e de costas para o grupo. Depois dessa prova de fogo viramos amigos. Sua amizade foi fundamental para que eu fosse ouvido pela minha gravadora, pois cantou em duo na demo que mais tarde vira a ser meu primeiro disco, Ciranda", recorda Márcio.
Para o músico gaúcho, Chico foi fundamental, trazendo para o Brasil a demo e mostrando o trabalho de Márcio para várias gravadoras. Nenhuma se interessou. "Anos depois, quando lancei o Ciranda, Chico veio do Brasil para cantar comigo em Paris. Uma incrível prova de amizade". E completa: "Esse disco saiu em 17 países, menos no meu. Nunca consegui entender esse fenômeno".
Além da amizade nascida nos estúdios, Márcio e Chico se aproximaram dentro das quatro linhas. Colorado que estava na inauguração do Beira Rio, Márcio divide seu coração futebolístico com o Botafogo, time pelo qual se aproximou quando morou no Rio de Janeiro. A paixão pelo futebol os uniu e, para não deixar Chico, torcedor do Fluminense, no vácuo, Márcio criou há alguns anos o time Paristeama, a sucursal francesa do Politheama. "É um time sério. O Chico escolheu as cores da camisa em tons gastronômicos: mostarda e bordô. Eu compus o hino e pedi para colocar no escudo a frase 'Champignon de Paris', em vez de 'Champion', que seria muito ousado. E nós nunca perdemos, exatamente como o Politheama".

Saudade do Brasil

Álbum 'Ciranda' abriu caminhos para Márcio Faraco no cenário musical francês e europeu

Álbum 'Ciranda' abriu caminhos para Márcio Faraco no cenário musical francês e europeu


UNIVERSAL MUSIC JAZZ/DIVULGAÇÃO/JC
Além de Chico Buarque, Márcio ficou próximo também de Milton Nascimento, com quem fez um duo no disco Um Rio; de Wagner Tiso, que arranjou Ciranda; de Hamilton de Holanda, que fez a abertura de alguns de seus shows em Paris; de Guinga, com quem dividiu o palco; e ainda de Yamandú Costa, que tem lhe mandado melodias para que Márcio coloque as letras. "Ficamos mais próximos nos últimos tempos, inclusive com nossas famílias convivendo nas temporadas que passamos em Paris", explica Yamandú. "Assim, a parceria musical foi surgindo de forma natural".
Afora a música, Márcio mantém um forte vínculo familiar e cultural com seu tio, o escritor Sergio Faraco. "Na última vez que fui a Porto Alegre, me desencontrei do tio Sergio, mas, sempre que posso, vou vê-lo. Tenho uma ligação forte com ele porque, em primeiro lugar é o irmão da minha mãe, está na minha vida desde sempre, me pegou no colo. Mais tarde, a seus olhos, passei de sobrinho a compositor. Sei que ele gosta do que faço e fico feliz com isso, pois o admiro imensamente como escritor e o amo como tio". Sergio Faraco confirma: "O pai do Márcio, casado com minha irmã Rita, era um primoroso violonista, então era de se esperar que um de seus filhos se encaminhasse para a música. Fico imensamente feliz com o êxito do sobrinho no exterior. Tenho todos os CDs que ele gravou".
Aos 58 anos, Márcio já foi casado com uma francesa - com quem teve a filha Angelina e hoje as duas moram na Inglaterra - e atualmente vive com a atual mulher, Franciele Becher, uma gaúcha, historiadora, que faz doutorado e dá aulas na Faculdade Paris 8.
Márcio considera Paris, além de uma linda cidade, geograficamente muito bem situada. "Morar aqui para mim é estar perto do aeroporto. Meu cotidiano, quando não estou viajando, é acordar e pegar o violão para compor, assim como o sapateiro faz com sua loja. Ele abre a loja dele, eu abro a minha. Somos avessos a noitadas mundanas. Preferimos, eu e minha mulher, frequentar museus e exposições". Márcio diz que abandonou tudo pela música e esse é o seu trabalho desde os anos 80. "Vivo de música, dos meus shows, da venda dos meus discos e, por morar fora do Brasil, consigo receber corretamente os meus direitos autorais".
Voltar ao Brasil é um projeto que acompanha Márcio desde o seu primeiro dia na Europa. "Ninguém sai de casa porque quer. Vejo esse movimento mundial de populações com muita tristeza. A minha dor é a saudade, enquanto que essas pessoas saem dos próprios países fugindo da fome, da guerra..."
Márcio considera-se um homem de sorte por ter sido bem recebido na França e que isso acaba pesando bastante na hora de pensar em sair de Paris. "O Brasil é um país ingrato com seus filhos, com seus artistas populares que fazem a trilha da vida das pessoas e morrem na miséria, com sua memória, descuidado com sua cultura, perdido nas suas escolhas... Mesmo assim, eu volto todo ano".
 

Márcio e Cássia

Novo álbum de Márcio Faraco foi lançado no final do ano passado

Novo álbum de Márcio Faraco foi lançado no final do ano passado


ROBSOUND/DIVULGAÇÃO/JC
A seguir, uma crônica que Márcio Faraco escreveu sobre sua relação com Cássia Eller, de quem foi grande amigo. Em breve será o feito o lançamento, de um duo inédito que ele gravou com ela.
MEUS VINTE ANOS
Apertei a campainha e ela atendeu enrolada numa toalha. Era linda, tinha os cabelos molhados e olhos de uma cor que até hoje não sei qual era. Fiquei todo errado e me apaixonei ali, no ato.
- Márcio?
- Hã, Cássia?
- Aham. Entra, a Janette já tá chegando.
*
A introdução parece de um roteiro de filme B, mas não, foi exatamente assim que conheci Cássia em 1984 ou 83. Não sei mais. Sei que um amigo em comum tinha falado que eu devia conhecer duas amigas cantoras. Então fui, sem nunca ter ouvido falar delas antes.
*
Alguns minutos depois Janette chegou, trazendo com ela um sorriso iluminado, um otimismo de encher a sala, uma voz linda e, de supetão, um convite a uma amizade que até hoje nos une.
Então Cássia cantou e tocou alguma coisa, e eu nunca mais voltei para casa. Como voltar? Eu estava com os quatro pneus furados por ela que, por sua vez, estava apaixonada pela Janette e, esta, gostando de mim.
Um uróboro amoroso que só vingou mesmo em amizade, música, café e pão com manteiga.
*
Sonhávamos, tocávamos, cantávamos e queríamos muito fazer daquilo nossa vida. Tínhamos bastante jeito para a coisa, mas a Cássia era um absurdo. Tão impressionante quanto impressionada, ela chorava e ria com música. Se envolvia tanto que xingava de brincadeira o compositor quando gostava muito dele: "Caralho, olha a maravilha da nota que esse corno colocou aqui!!!"
*
Sua paradoxal timidez, sua figura universal e seu jeito meio caipira, meio punk, me enraizaram naquela casa. Eu só queria ficar ali para respirar música e cantar com a Cássia e a Janette.
*
Foi essa dupla de meninas que me chamou para o pomposo cargo de Diretor Artístico do show Dose Dupla. Senhoras e senhores, o primeiro show da vida de Cássia Eller e Janette Dornellas não foi ali na esquina, não: foi no Teatro Nacional de Brasília. A gente não tinha medo de nada mesmo.
*
O show foi um sucesso e dali saímos convidados para tocar no Concerto Cabeças, diante de um público de mais de mil pessoas. De repente tudo se acelerava. Cássia começou uma temporada num bar chamado Bom Demais, e o lugar virou um point da galera candanga. Janette se concentrou no desenvolvimento de sua carreira de cantora lírica e eu formei um grupo de rock.
*
Várias vezes nos encontramos no mesmo palco, até a vida nos levar por caminhos diferentes.
Antes de partir de Brasília para São Paulo, Cássia fez um show na Sala Funarte, hoje Sala Cássia Eller e colocou, como um presente, cinco músicas minhas no repertório. Essas músicas fizeram parte da demo que a fez ser contratada pela Universal.
*
Jannete fez dos Teatros Nacionais do Brasil (e do mundo) sua casa, interpretou incontáveis óperas e eu fui tentar minha vida no Rio de Janeiro.
Lá encontrei Cássia de novo, gravando seu primeiro disco. Me convidou para gravar com ela Lullaby, nossa única parceria, uma canção de ninar sem letra, como se fosse impossível descrever esse sonho que nos unia.
*
Rapidamente, como era de se esperar, seu primeiro disco foi um sucesso. O Brasil todo descobriu aquela garota que, quando cantava ao meu lado, me deixava com a estranha impressão de que eu sabia algo que o mundo inteiro ainda não sabia.
*
Quando o Chicão nasceu, fui ao Rio pegá-lo no colo e acabei produzindo e gravando um duo com Cássia, com arranjos de Lincoln Olivetti.
*
Não demorou muito tempo para eu assinar também com a Universal, mas a Universal Jazz France. Estava preparando uma tournée aos EUA quando minha irmã Kika ligou e me anunciou o que achei ser um engano.
*
Fiquei tão chocado que não consegui chorar. Dias atrás pedi a autorização e a benção da Eugênia para lançar aquele duo, que guardei por esse tempo todo a sete chaves por pudor e angústia.
- Você tem as duas: a autorização e a benção, Márcio. A Cássia te amava.
*
Senti rolarem lágrimas de 20 anos.

* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.