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reportagem cultural

- Publicada em 23 de Dezembro de 2021 às 18:31

Tiago Flores: maestro que rege do erudito ao popular

Há mais de três décadas no ofício, regente traça uma trilha de destaque na música erudita gaúcha e brasileira

Há mais de três décadas no ofício, regente traça uma trilha de destaque na música erudita gaúcha e brasileira


ANDRESSA PUFAL/JC
O que faz de um maestro um maestro? Em primeiro lugar, conhecimento musical. Saber como explorar cada instrumento, ter o domínio completo da partitura. Em segundo, o gestual. O maestro se comunica com seus músicos pelos gestos. É preciso dominar com clareza o que se pretende dizer através de seus movimentos. O maestro deve sempre indicar o caminho, da maneira mais clara e direta. Jamais atrapalhar a orquestra. Psicologia também é importante. O maestro precisa exercer uma liderança - boa na maioria das vezes - sendo exato nas informações e preciso nas exigências. A orquestra é um ambiente onde quase sempre não há espaço para democracia. O maestro tem que ser líder, chefe, comandante e, às vezes, até ditador. Por fim, em especial no Brasil, um maestro precisa de empatia com os músicos. Conhecimentos gerais, como história e filosofia, também são recomendáveis. Além disso sempre é bom que ele demonstre ter uma alma de administrador, preocupando-se não apenas com questões artísticas como também com aspectos burocráticos, tais como a busca por patrocínios, interesse por leis de incentivo e entendimento de tantos outros meandros capazes de manter um organismo vivo como uma orquestra com saúde, ativa e afinada.
O que faz de um maestro um maestro? Em primeiro lugar, conhecimento musical. Saber como explorar cada instrumento, ter o domínio completo da partitura. Em segundo, o gestual. O maestro se comunica com seus músicos pelos gestos. É preciso dominar com clareza o que se pretende dizer através de seus movimentos. O maestro deve sempre indicar o caminho, da maneira mais clara e direta. Jamais atrapalhar a orquestra. Psicologia também é importante. O maestro precisa exercer uma liderança - boa na maioria das vezes - sendo exato nas informações e preciso nas exigências. A orquestra é um ambiente onde quase sempre não há espaço para democracia. O maestro tem que ser líder, chefe, comandante e, às vezes, até ditador. Por fim, em especial no Brasil, um maestro precisa de empatia com os músicos. Conhecimentos gerais, como história e filosofia, também são recomendáveis. Além disso sempre é bom que ele demonstre ter uma alma de administrador, preocupando-se não apenas com questões artísticas como também com aspectos burocráticos, tais como a busca por patrocínios, interesse por leis de incentivo e entendimento de tantos outros meandros capazes de manter um organismo vivo como uma orquestra com saúde, ativa e afinada.
Enfim, ser maestro dá um trabalho danado.
O contrário da aplicação desses mandamentos - tão curtos quanto objetivos - costuma levar a tragédia. "As orquestras, quando querem, derrubam os maestros", reconhece Tiago Flores, 61 anos, há mais de três décadas se equilibrando neste ofício de transformar em arte o que é musicalmente produzido por um grupo complexo, muitas vezes tão sensível e heterogêneo. A base da relação do maestro com os músicos deve ser o respeito. "É imprescindível que se saiba as limitações. Respeitar horários de ensaios, respeitar ao dirigir-se ao músico nos ensaios e concertos. E, principalmente, ser respeitado".
Décimo de uma família de doze filhos, todos do mesmo pai e da mesma mãe (leia mais sobre a originalidade desta família tão numerosa no final desta reportagem), casado com Mariana desde 2020 e pai de três filhos de relacionamentos anteriores, Tiago Flores vive a música de maneira intensa, porém não constante. "Hoje em dia, quase não consigo mais ouvir nada por diletantismo. Em casa, no carro, raramente coloco algo para ouvir", relata.
"Eu poderia dizer que considero o Tiago Flores um anti-maestro, no sentido de como nos habituamos a ver os maestros de orquestras de música erudita. Boa parte deles temperamentais, de nariz empinado, indicando uma certa superioridade. Eram assim os lendários, do tipo Herbert Von Karajan, e mesmo uns que regeram a OSPA, como Eleazar de Carvalho e Isaac Karabtchevsky. Pelo menos eu os via assim - e boa parte do público também", compara o jornalista Juarez Fonseca. "Mas aí eu concluo: conhecendo o Tiago vejo que ele não é o anti-maestro. Ele é o próprio maestro".

Música se aprende em casa

Nascido em uma família cheia de sons, Tiago Flores demorou a decidir-se por viver da música; trabalhou no Banco do Brasil e chegou a cursar Engenharia

Nascido em uma família cheia de sons, Tiago Flores demorou a decidir-se por viver da música; trabalhou no Banco do Brasil e chegou a cursar Engenharia


NATHAN CARVALHO/DIVULGAÇÃO/JC
Tiago Flores é fruto de uma família musical. A música sempre fez parte de forma natural do seu ambiente. Estimulado a cantar desde bebê - segundo, obviamente, a lembrança de seus irmãos mais velhos, já que para ele seria impossível ter este tipo de memória - Tiago foi um talento musical precoce, apresentando-se pela primeira vez em público aos três anos, levado pelos pais aos estúdios da TV Piratini.
O primeiro instrumento foi o violão, que entrou em sua vida quando ele tinha sete anos. "Meu pai tocava violão e minha mãe, acordeom. Minha família se reunia para tocar e cantar quase todas as noites", recorda Tiago. Como era uma família imensa, o som já vinha num formato quase orquestral, lógico que sem rigidez, tampouco organização. "Meus irmãos mais velhos também tocavam. Nossa casa era muito musical."
Foram estes mesmos irmãos mais velhos os responsáveis pelos primeiros ensinamentos musicais. Assim, nada mais natural que o talento começasse a se manifestar precocemente. Desde os nove anos, Tiago já puxava cantos e tocava violão na igreja. "Também participei do coro infantil da ópera La Boheme, de Puccini", acrescenta Tiago, destacando como foi o seu primeiro contato com a Ospa. "Esta primeira experiência me levou para a música erudita. Fiquei apaixonado. Tudo isso já estava ao meu redor e eu tinha apenas 10, 11 anos."
O caminho, embora natural, não foi fácil nem imediato. "Demorei para me decidir a viver exclusivamente da música", reflete Tiago, lembrando que seu maior medo na época era não conseguir se sustentar. Foi só mais tarde, estabelecido profissionalmente no Banco do Brasil, que ele viu que aquele mesmo local era capaz de lhe indicar um novo caminho: "Quando comecei a reger o Coro do Banco do Brasil, em 1987, vi que poderia viver da música."
Antes disso, Tiago já havia dado um passo importante. Em 1982, ele pediu transferência de curso, abandonando a faculdade de Engenharia da Ufrgs. A opção agora seria por se dedicar à música. "Fiz o teste específico e entrei no curso de Composição do Instituto de Artes. A partir daí, me dediquei muito aos estudos". Dentre tantos que tão importantes foram na sua formação, o maestro destaca os mestres Bruno Kiefer e Arlindo Teixeira, além do professor que lhe deu aulas na Rússia, Viktor Fedotov.

Entre o pop e o erudito

Maestro atuou ao lado de vários nomes importantes da música popular gaúcha e brasileira

Maestro atuou ao lado de vários nomes importantes da música popular gaúcha e brasileira


/FERNANDO PIRES/DIVULGAÇÃO/JC
Até chegar à faculdade, Tiago tinha uma influência muito maior da música popular do que da erudita. "Meus grandes interesses, durante a adolescência, foram as bandas Pink Floyd, Genesis e Yes, além do tecladista e compositor Rick Wakeman". Tiago também gostava bastante de música popular brasileira. "Uma das minhas primeiras paixões musicais foi o disco Meus Caros Amigos, do Chico Buarque", explica. "Mas também ouvia muito Milton Nascimento, Elis Regina, Sá e Guarabira e Almôndegas". Todos - e mais Ivan Lins, Edu Lobo e Renato Borghetti - continuam muito presentes na vida pessoal e artística de Tiago. "Toquei ao lado de grandes nomes da música popular, como Yamandú Costa e Renato Borghetti. Também tive a honra de reger concertos com Gilberto Gil, Ivan Lins, Lenine, Edu Lobo, Zeca Baleiro, MPB-4...", lembra. Juarez exalta essa versatilidade: "Na música de concerto, Tiago não 'inventa', levando ao público o mais qualificado repertório que ele pode, digamos, 'saborear' nas tardes de domingos do Leopoldina Juvenil. Mas Tiago obviamente tem cacife para voos mais desafiadores, o que volta e meia faz. Nos concertos com música popular, em especial a série de clássicos do rock, ninguém conseguiu resultados melhores por estas bandas. Outras orquestras têm aberto espaço a este tipo de espetáculo, nenhuma com o sucesso da Ulbra de Tiago".
"Adoro fazer estes trabalhos", destaca Tiago. "Com Yamandú e Borghettinho, por exemplo, já fiz muitos shows e ainda vou fazer muitos outros. São músicos de altíssimo nível e a música rola fácil". Juarez Fonseca vai na mesma linha. "Quando dirigiu a Ospa, Tiago quebrou esse distanciamento. À frente da Orquestra da Ulbra, moldada por ele, e grupo que por mais tempo dirigiu, e dirige, Tiago forjou uma notável identidade. Seja com o repertório clássico da música de concerto, seja nos espetáculos em que absorve a música popular com idêntico comprometimento". Renato Borghetti confirma: "Admiro no Tiago Flores o conhecimento e naturalidade ao reger peças clássicas e populares", e completa: "estas são as características dos grandes maestros".
 

A música que vem do Sul

Após décadas mergulhado na regência, Tiago Flores tem se dedicado à composição

Após décadas mergulhado na regência, Tiago Flores tem se dedicado à composição


ANTONIETA PINHEIRO/DIVULGAÇÃO/JC
"Existe uma música erudita de raiz gaúcha?", pergunto eu, tentando mapear uma escola ainda mais próxima à formação do maestro. "Esta vou ficar te devendo. Não consigo ver nenhum compositor que se encaixe totalmente na tua pergunta", me responde Tiago de forma sincera e clara, emendando que, em matéria de música erudita no Brasil, os grandes compositores são ainda os que permanecem no imaginário há mais de sete, oito décadas, como Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Nepomuceno, Carlos Gomes e Guerra-Peixe. Numa área intermediária, circulando entre o popular e o erudito, Tiago elogia a trajetória do músico gaúcho Radamés Gnattali. "Como arranjador, principalmente em seu trabalho com orquestras para a música popular, o Radamés extrapolou todas as medidas. Ele sabia como valorizar o que cada instrumento poderia dar. Ele dominava a orquestra e a caneta. Dominava a arte de escrever músicas e fazia isso com maestria", explica Tiago Flores, falando sobre o talento de Radamés para escrever arranjos. E acrescenta: "Radamés foi fundamental em criar um caminho entre a música erudita e popular, trazendo sua imensa bagagem de conhecimento musical".
"Dos maestros vivos, acredito que ainda Isaac Karabitchevsky seja o mais importante", ressalta. E num meio tão competitivo, às vezes com bastante estrelismo, chega a ser surpreendente descobrir que existe proximidade entre os maestros. "Tenho ótima relação com os maestros daqui de Porto Alegre e também com muitos maestros brasileiros e alguns estrangeiros", explica. "Com alguns, tomamos um café de vez em quando e com outros trocamos algumas mensagens. Nunca vi outro maestro como concorrente. Acho que tem espaço para todo mundo".
Ultimamente, Tiago Flores vem se dedicando a um outro caminho musical: a composição. "Fiz quase todo curso de Composição na Ufrgs. Fiquei bastante tempo parado por me dedicar exclusivamente para a regência. Fiz muitos arranjos também. Agora, tenho feito algumas músicas populares em parceria com meu irmão Zeca Flores".
Tiago Flores foi diretor artístico e maestro titular da Ospa em dois períodos, de 1999 a 2001 e de 2011 a 2014, nos governos de Olívio Dutra e Tarso Genro. Luiz Antonio de Assis Brasil, secretário da Cultura no segundo mandato, lembra que Tiago foi escolhido em função de sua competência técnica e sua facilidade de relacionamento com os músicos. "Dois elementos indispensáveis para essa função", ressalta Assis Brasil. E dá seu depoimento: "Durante minha gestão, o maestro Tiago Flores foi impecável. Um diretor que tem seus conceitos sobre a música de concerto, e por saber disso, preservei sua autonomia. O resultado foi admirável, e a Ospa desenvolveu plenamente suas capacidades, reiterando seu papel como instituição sinfônica de primeiro plano no cenário nacional. Eu, como ex-integrante de nossa orquestra, conhecia esses meandros, o que em parte retrato em meu livro O Homem Amoroso. Um passo em falso e temos a catástrofe". Luiz Osvaldo Leite, ex-presidente da Ospa, completa: "Convivi e convivo com dois Tiagos. O ser humano: amigo, alegre, sincero e ético; e o profissional: gestor atento, estudioso infatigável e músico sensível capaz de unir o erudito e o popular".
Projetando o futuro, Tiago está à frente desde 1999 do Ouviravida, iniciativa que pretende levar a educação musical a centenas de crianças. Sem fins lucrativos, o projeto se vincula a espaços já utilizados para ações sociais. Os custos com manutenção, deslocamento e pagamentos dos profissionais são arcados por leis de incentivo à cultura, além do apoio de empresas privadas. A cada final de ano, os alunos se apresentam em um show aberto ao público. "Este é mais um exemplo de como a música pode transformar a vida de cada uma dessas crianças".

Essa família é muito unida

Maestro comandou orquestras da Ospa (foto) e da Ulbra, da qual é o atual regente

Maestro comandou orquestras da Ospa (foto) e da Ulbra, da qual é o atual regente


ANA PAULA APRATO/ARQUIVO/JC
Tiago Flores vem de uma família imensa e muito peculiar. No total são 12: nove homens e três mulheres. Todos são filhos do mesmo casal, Dangremon Rodrigues Flores, que hoje, se vivo fosse, teria exatos cem anos, e Maria Conceição Flores, dona de casa, que, se também estivesse viva, estaria completando o 97º aniversário neste mês de dezembro. A mais velha é uma irmã, hoje com 75 anos, o caçula se aproxima dos 60. Dos 12, oito nasceram em São Luiz Gonzaga e quatro em Porto Alegre. É também uma família longeva. Entre todos, apenas um morreu, o segundo, vítima de enfarte, aos 57 anos. Há também uma triste estatística: o terceiro irmão, Paulo Tarso, está desaparecido desde o dia 17 de junho. Estava em viagem ao Rio de Janeiro, sumiu e ainda não foi encontrado.
Os demais estão vivos - e muito unidos. Todos se casaram e tiveram filhos, embora nenhum de maneira tão pródiga quanto os pais. No total, são 32 netos e 20 bisnetos. Antes da pandemia havia o hábito de reuniões semanais entre os irmãos. Todos nasceram no espaço de tempo entre meados dos anos 40 e começo da década de 60. Não existe coincidência nos nomes, do tipo João Paulo, João Luís..., mas, pela forte formação católica do casal, são comuns os nomes bíblicos (Paulo Tarso, João, Tiago...).
Dentro de casa, a música sempre esteve presente. Todos os 12 cantavam, seis tocam violão. De maneira amadora todos são musicais. Profissionalmente, apenas Tiago e outro irmão, Atos, que também é regente de coro.
Tiago não chegou a conviver com alguns irmãos. Quando nasceu em 1960, os mais velhos estudavam e moravam num seminário. "Não tenho certeza, mas acredito que em determinada época havia sete irmãos em casa e cinco no seminário. Depois alguns voltaram para casa", esforça-se para lembrar. "Mas normalmente havia uns dez irmãos em casa". Não satisfeitos com a casa cheia, os pais de Tiago também acolhiam outros parentes. Houve períodos que um primo e uma prima moraram com a família. Para acomodar tanta gente eram necessários vários quartos e beliches. "Lembro de uma casa que eu e mais dois irmãos dormíamos na sala". A mesa de refeições era enorme e os horários, rígidos. A presença de todos era fundamental no café da manhã, almoço, café da tarde e jantar.
Além do excesso de pessoas, a família trazia outra peculiaridade: o gosto do patriarca por mudanças. Seu Dangremon enjoava de determinado lar e tratava de arrastar todos com ele. "Enquanto morava com meus pais foram 11 mudanças", resigna-se Tiago. Estes 11 endereços podem ser divididos entre sete casas em Porto Alegre e quatro em Viamão. E também alguns recordes: em sua vida escolar, Tiago passou por sete colégios, isso sem contar uma vez que este frenesi superou todas as expectativas - houve uma escola que Tiago só frequentou por uma semana.
 

Três compositores

Johannn Sebastian Bach
"É impressionante. Até hoje me espanto como ele estruturou toda sua música. Ele foi genial o tempo inteiro."
Ludwig van Beethoven
"Ele sintetizou tudo que havia sido feito em matéria de música até então."
Pyotri Illytch Tchaikovsky
"Eu adoro reger muitas de suas composições. Mas reconheço que ele era muito exagerado."
 

Três maestros

Claudio Abbado
"Pelo seu gestual e pela sua concepção musical."
Kurt Masur
"Pela sua capacidade de interpretação."
David Machado
"Pela sua capacidade de decorar rapidamente as partituras."
 

* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.