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reportagem cultural

- Publicada em 11 de Novembro de 2021 às 19:13

De Porto Alegre para o mundo: o samba de Horacina Correa

Horacina Correa na revista carnavalesca 'Quem inventou a mulata?', de Ary Barroso e Fernando Lobo

Horacina Correa na revista carnavalesca 'Quem inventou a mulata?', de Ary Barroso e Fernando Lobo


Acervo Última Hora/Arquivo Público Estado SP/Divulgação/JC
Uma pergunta insiste em atucanar pesquisadores da música brasileira produzida na primeira metade do século XX: afinal, que fim levou a lendária cantora Horacina Correa? Soberana do Carnaval de Porto Alegre, estrela negra do rádio e uma das primeiras gaúchas a gravar disco, a porto-alegrense nascida em 11 de outubro de 1913 no número 57 da rua João Telles (atual bairro Bom Fim) também esteve nas primeiras chanchadas do cinema nacional, arrancou suspiros no teatro de revista e levou a canção do País a outros continentes. Até sumir em algum ponto do globo, sem deixar rastros conhecidos, 60 anos atrás.
Uma pergunta insiste em atucanar pesquisadores da música brasileira produzida na primeira metade do século XX: afinal, que fim levou a lendária cantora Horacina Correa? Soberana do Carnaval de Porto Alegre, estrela negra do rádio e uma das primeiras gaúchas a gravar disco, a porto-alegrense nascida em 11 de outubro de 1913 no número 57 da rua João Telles (atual bairro Bom Fim) também esteve nas primeiras chanchadas do cinema nacional, arrancou suspiros no teatro de revista e levou a canção do País a outros continentes. Até sumir em algum ponto do globo, sem deixar rastros conhecidos, 60 anos atrás.
A falta de resposta para tamanho mistério torna a personagem ainda mais encantadora. Curvando-se o espaço-tempo, é possível retroceder às origens de um percurso trilhado desde o verão de 1930 nas ruas da cidade festiva. Em contraponto aos graves de Carusinho, Bororó, Vesúvio, Marreco, Johnson e outros gogós anteriores à popularização dos microfones, a voz aguda, afinada e de dicção cristalina da jovem já podia ser ouvida a quadras de distância, puxando como solista o Bloco dos Turunas, com seus mais de 80 componentes (incluindo 48 instrumentistas) a berrar marchas enfezadas como Segura o Bonde.
"Ela emergiu no meio da massa, com o colorido de sua fantasia e dona dos aplausos da multidão", enaltecia uma reportagem no Correio do Povo ao celebrar como merecido o título de Rainha da folia popular de 1931. Dobrada a esquina dos festejos, uma linha reta a levaria a atuações como lady-crooner da Orquestra Cruzeiro em bailes e depois com a jazz-band do pianista Paulo Coelho (1910-1941) nos cafés da Rua da Praia e festivais artísticos de cineteatros, sem romper o cordão com o grupo carnavalesco, sediado entre as ruas Ramiro Barcelos e Esperança (atual Miguel Tostes).
Intérprete tarimbada e de repertório tão vasto quanto cheio de "molho", em 1934, a "Patativa do Sul" se tornou coprotagonista da expansão radiofônica local. A única afrobrasileira de destaque em elencos de predomínio branco e masculino alternava temporadas na Difusora, Gaúcha e Farroupilha, arrebatando a audiência noturna em sambas "do barulho", além de vergar preconceitos, conforme ironizou a Folha da Tarde, dois anos depois: "Alguns mocinhos bonitos não querem Horacina se saindo bem, afinal a mulata canta direitinho mas tem graves defeitos: é de Porto Alegre e tem a pele bronzeada".
Não faltaram comparações com Carmem Miranda (1909-1955), na época em que a lusocarioca ainda nem usava trajes de baiana. Na ponta da língua, os últimos gritos nacionais e um abre-alas a compositores porto-alegrenses em ascensão, como um tal Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Emissoras de São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires logo a colocaram no radar, com convites para atuações que a coroariam em um patamar acima da concorrência com nomes hoje empoeirados na arqueologia daquelas transmissões - Odete Guedes, Cândida Linhares, Stella Norma.
Entrevistada pela imprensa carioca em março de 1937, a artista entregou um bis de sua paixão pela atividade nos estúdios, para ela algo mais que um mero pé-de-meia: "Cinema, avião, lancha-motor... todos são marcos do progresso da humanidade, mas ao meu ponto-de-vista o rádio é a oitava maravilha do mundo. Estou satisfeitíssima! Adoro cantar sambas, marchas, valsas, foxes, tangos. Ainda pretendo gravar muito, agradar ao público, ter o meu nome feito no broadcasting. E atuando por amor à arte, acredito que eu possa auxiliar na difusão da música de nosso País no estrangeiro".

Uma diva em trajetória ascendente

Artista porto-alegrense Horacina Correa foi Rainha do Carnaval da capital gaúcha em 1931

Artista porto-alegrense Horacina Correa foi Rainha do Carnaval da capital gaúcha em 1931


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Nos bastidores, nuances biográficas imprimiam a Horacina Correa de Lima um perfil diferenciado. A garota vinda ao mundo em 1913, na então Colônia Africana, crescera em um ambiente festivo. Filha da dona de casa Adylles e do pedreiro João Baptista, já criança acompanhava o pai, também cantor e violonista, em serões musicais. Até ficar órfã de ambos, aos 9 anos, junto com um casal de irmãos que também não eram do sossego - Ondina (1909), futura dona de um tabuleiro de doces e salgados que deliciava o público nas festas de rua, e Natal Jesus (1915), temido zagueiro do Inter de 1935 a 1937. A tutoria pela avó materna, Maria José, proporcionou algo raro naqueles tempos: o rigor da instrução formal combinada à liberdade de uma carreira artística. Sim, porque a mesma mocinha foliã das ruas e salões tinha emoldurados os diplomas do Colégio Paula Soares e do Curso Normal (embrião do Instituto Flores da Cunha), bem como aulas de canto, piano e dança. "Um artista que preza seu trabalho jamais se julga instruído o suficiente", declarou a um repórter, sublinhando predileções musicais de Carmen Miranda a Claude Debussy, romances policiais e filmes com Katharine Hepburn e Boris Karloff.
Tamanho preparo não a impedira, porém, de obter sustento como doméstica e cozinheira enquanto o estrelato não tocasse a campainha. E o sucesso foi merecido, duradouro e legitimado por suas origens. Cartaz onipresente nas rádios e palcos, a "Voz Morena da Cidade" era também assunto contínuo de notas, crônicas e notícias nos principais jornais e revistas, como uma espécie de celebridade-símbolo da frenética evolução dos meios locais de entretenimento popular nos anos 1930. A simpatia que despertava junto à audiência pode ser mensurada por um lance pitoresco - e, ao que se sabe, inédito, até certa noite de 1936.
Um dos destaques no cast da novata Rádio Farroupilha, Horacina estampou página inteira na também iniciante Folha da Tarde ao se casar com Oscar Fortunato Correa (1907-1953), baterista da banda Jazz Cruzeiro e contínuo da Biblioteca Pública do Estado. Não qualquer enlace, mas uma cerimônia civil transmitida em 8 de outubro daquele ano, direto do estúdio da PRH-2, em um casarão da rua Duque de Caxias, altos do Viaduto da Borges. Como padrinhos, o diretor da emissora Arnaldo Ballvé, o locutor Antonacci Rebello e o célebre casal de atores Pery Borges e Estelita Bell. Especialista quando o assunto é a radiofonia no Rio Grande do Sul desde os seus primórdios, o pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação da Ufrgs Luiz Artur Ferraretto, conhece bem o episódio. Ele inclusive arrisca um palpite, chamando a atenção para o caráter inovador: "Outras emissoras levariam ao ar esse tipo de acontecimento nos anos seguintes, mas com certeza a iniciativa da Farroupilha de irradiar um casamento foi algo inédito no Brasil até aquele momento e, provavelmente, em âmbito mundial".
A união não resistiria ao tempo e às demandas de uma diva em trajetória ascendente. Já em 1937, a agenda cada vez mais intensa passou a englobar compromissos seguidos em estações de São Paulo e Rio de Janeiro, com o marido a tiracolo, como secretário particular - aos olhos da imprensa gaúcha, "o esposo de Horacina Correa". A relação durou até novembro de 1941, quando ela pegou sozinha um navio para o Rio de Janeiro, sem olhar para trás - o desquite seria oficializado à revelia por Oscar, três anos depois, em um processo no qual a ex-mulher consta como ré por "desamparar o lar conjugal".

'Alto da Bronze'

Cantora com a Orquestra de Paulo Coelho na Argentina, em 1938

Cantora com a Orquestra de Paulo Coelho na Argentina, em 1938


/ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Antes do bilhete só de ida para a Cidade Maravilhosa, Horacina Correa protagonizou em 1938 outra façanha histórica, como primeira voz feminina do Estado a "lascar no sulco" um disco de 78 rotações, primeiro formato de reprodução sonora do século XX. Apenas duas gaúchas tinham suas vozes gravadas até então, mas em fonogramas produzidos por meio de técnicas mecânicas, na pioneira Casa A Elétrica (1913-1923) de Porto Alegre - bela ironia para uma empresa com tal nome. O esquema agora era bem mais sofisticado e profissional, com a assinatura da filial argentina da Odeon.
A nova história começou a ser escrita em março daquele ano, com o sacolejo da Orquestra de Paulo Coelho em um trem para Buenos Aires, a fim de cumprir temporada de quatro meses em rádios, cassinos e night-clubs locais. Única mulher entre os 11 componentes (incluindo o marido na bateria), Horacina dividia os microfones com o não menos renomado Alcides Gonçalves, que acabou saindo mais cedo da excursão, devido a problemas nas cordas vocais, abrindo caminho para que a lady-crooner atraísse para si os holofotes. A combinação de voz e beleza agradou aos portenhos.
De antenas ligadas, o escritório local da Odeon chegou em cena com a cereja-do-bolo: um contrato para que a banda entrasse em estúdio com seus sambas estilizados. O resultado foram duas faixas. Em um lado, Esta sim, é que é (Raphael Dadino/Oswaldo Santiago). Na face oposta, Alto da Bronze, parceria do próprio Coelho com o irrequieto jornalista Plauto de Azambuja Soares, que não chegou a saborear o momento - morrera meses antes, aos 23 anos, espatifado em acidente de uma "barata de corrida" durante reportagem para a Folha da Tarde na Zona Sul da Capital.
Com seu apelo saudosista e repleto de citações da "eterna lembrança do tempo feliz em que eu era criança", o tributo à velha praça localizada no Centro da cidade já era sucesso desde o seu lançamento pela própria Horacina na Farroupilha, em novembro de 1937. E teria pelas décadas seguintes uma cadeira cativa entre as canções preferidas dos boêmios da cidade, quase sempre em versões bem mais intimistas - como na interpretação de Elis Regina (1945-1982) para um dos volumes do projeto coletivo Música Popular do Sul (1975), do selo fonográfico Marcus Pereira.
O músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria, confere ao registro original de Paulo Coelho um status de objeto de culto, o qual nunca teve em mãos: "Esse acetato de 2 minutos e 54 segundos é uma pérola raríssima, com um belo tema de andamento médio, composto nas regras da arte do final dos anos 1930 e que foge à estrutura estrofe-refrão, além de apresentar pequenas surpresas na melodia. Isso, sem falar na orquestração, usando os naipes de metais para dar balanço ao arranjo, com Paulo pintando e bordando no piano, a cantora cheia de bossa e um final grandiloquente, digno de filme".
A imprensa gaúcha recebeu de volta os músicos como heróis. A "Patativa do Sul" continuava o seu reinado local, com ou sem a colaboração de Coelho (que morreria de tuberculose, três anos depois), incluindo duas novas turnês na Argentina, sozinha e na companhia de Alcides Gonçalves. Com uma novidade: a incorporação cada vez mais frequente do figurino de baiana estilizada, à Carmen Miranda, mas com um requebrado diferente, valendo-se da ginga burilada nos tempos dos Turunas. Yes, nós tínhamos Horacina.
Poucas são as cópias hoje conhecidas de Alto da Bronze. Uma delas pertence ao pesquisador e colecionador Adilson Santos, morador de Bebedouro (SP) e responsável nas redes sociais pelo grupo “Arquivo Confraria do Chiado”, que desde 2011 reúne mais de 2 mil aficionados pela velha guarda da música popular brasileira. Ele mantém no Youtube um vídeo da “bolacha” rolando na vitrola de casa: “Garimpei essa relíquia no lote à venda por um sujeito aqui na cidade de Barretos, há uns cinco anos, e só conheço outro exemplar, de amigo que mora na capital paulista”.

'Abafa' nacional

Artista fez show em boate instalada no subsolo do Cine Vera Cruz, futuro Victoria, em 1941

Artista fez show em boate instalada no subsolo do Cine Vera Cruz, futuro Victoria, em 1941


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Os saracoteios da artista ainda podiam ser conferidos na Rádio Difusora, Taberna do Max (boate instalada no subsolo do Cine Vera Cruz, futuro Victoria) e outros cenários de Porto Alegre em outubro de 1941, quando ela decidiu "tomar um vapor" para o Rio de Janeiro. Logo seus conterrâneos passaram a receber notícias de uma gaúcha já enturmada e atuante, com apresentações elogiadíssimas no circuito de night-clubs, cassinos, teatros e emissoras como Tupy, Tamoio e Nacional, além de esticadas frequentes aos palcos e estúdios de Paraná, São Paulo e Minas Gerais. "Um abafa!", como se dizia.
Nas principais publicações da então capital brasileira, os adjetivos eram generosos. "Estamos diante de uma bela figura, comunicativa, risonha, de palestra fácil e agradável", testemunhou um repórter da revista A Carioca ao traçar um perfil da cantora, já instalada em um fino apartamento na Zona Sul, menos de seis meses após seu desembarque definitivo na cidade. "Artisticamente, impressiona pela graça da interpretação e o extraordinário vigor físico. Pessoalmente, pela simplicidade e o encanto suave de um poema. É, sobretudo, original". Na próxima parada, discos e cinema.
Levando ao ar composições de autores novatos ou já consagrados, em 1944 ela assinou com a RCA Victor um contrato exclusivo cujo resultado foram quatro faixas em dois discos de 78 rotações, repetindo a dose na Continental em 1945-1947, em uma discografia que seria retomada ao longo da década seguinte, com mais de 50 gravações (inclusive no exterior). "Ouvindo os áudios, percebe-se uma mezzo-soprano muito afinada e que segue os jeitos e trejeitos da época, nos vibratos, glissandos e ornamentos, de uma forma linda", analisa a cantora, pianista, compositora e preparadora vocal Simone Rasslan.
A repercussão positiva de suas performances nos estúdios e tablados não passou batida pela indústria cinematográfica, que também se popularizava como nunca antes no País: em tempos pré-televisão, a artista que deixara Porto Alegre sem olhar para trás - hoje não se sabe se algum dia voltou - já podia ser vista e ouvida nas telas de sua própria cidade. Essa fama se amplificaria nacionalmente com o nome de Horacina Correa em anúncios e cartazes de sete chanchadas de imensa bilheteria produzidas de 1945 a 1951 pelas companhias Atlântida e Cinédia, maiorais do gênero no Brasil.
Padrão nas comédias do gênero, as cenas românticas e estripulias de astros da magnitude de Oscarito, Eliana e Grande Otelo eram entremeadas por números musicais que funcionavam como os futuros videoclipes. Veículo formidável para uma estrela a reforçar sua imagem de vedete afrobrasileira de movimentos sensuais e voz privilegiada, em um misto de Carmen Miranda, da peruana Yma Sumac (1922-2008) e da norte-americana Josephine Baker (1906-1975). Não por acaso, em 1942, a porto-alegrense encantou o cineasta estadunidense Orson Welles (1915-1985) na sua passagem pelo Brasil, quando a comparou à conterrânea cantora de blues Ethel Waters (1896-1977).

O mundo é um pandeiro

Hotel no Egito em que estava a brasileira foi destruído por incêndio em 1952

Hotel no Egito em que estava a brasileira foi destruído por incêndio em 1952


Acervo Marcello Campos/Divulgação/JC
Os figurinos tropicais e cenários exóticos que emolduravam as aparições de Horacina Correa em filmes e espetáculos forneceriam a ela uma das bases estéticas de suas duradouras temporadas por Uruguai, Chile, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Itália, França, Inglaterra, Egito, Grécia, Turquia, Suécia, Dinamarca e Finlândia. Em abril de 1949, o passaporte recebeu carimbo em Lisboa, com um contrato para o show Tudo é Brasil, uma revista musical que acabou pescando a atenção do maestro alagoano Otaviano "Fon-Fon" Ribeiro, também excursionando pelo Velho Continente com sua orquestra.
À cata de elementos para recompor o grupo desfeito pela debandada de oito de seus dez componentes que haviam decidido voltar para casa, ele viu na gaúcha travestida de baiana (ou cubana, conforme a demanda) a substituta ideal para a vaga de lady-crooner. "O sucesso é absoluto em cabarés de primeira classe", telegrafou para a Folha da Tarde o enviado especial Flávio Alcaraz Gomes. Além dos aplausos nas principais metrópoles, o pessoal chegou a gravar em Paris um LP de 10 polegadas, antes que a cantora se desligasse do conjunto, em 1951.
O band-leader seguiu para Atenas, onde acabou fulminado por um infarto, enquanto a lépida Horacina já montava um quinteto com integrantes de outra orquestra brasileira (do carioca Francisco Sergio) para desbravar a Itália. Já formalmente desquitada e de coração partido desde o Rio de Janeiro por um homem casado, engatou romance com o pianista siciliano Mario Martino, 11 anos mais novo e fiel escudeiro em seu próximo destino: um ano de trabalho na boate do centenário Shepheard's Hotel, no Cairo. A aventura pela terra dos faraós, aliás, quase custaria sua vida. A embaixadora do samba dormia tranquila na tarde de 26 de janeiro de 1952, quando gritos e murros à porta ordenaram que o casal saísse às pressas: rebeldes nacionalistas haviam ateado fogo ao prédio, na histórica onda de saques e vandalismo contra centenas de endereços da capital egípcia, em represália ao Exército britânico que ainda ocupava o país, apesar da independência conquistada há 30 anos. "Perdemos roupas, instrumentos, dinheiro, praticamente tudo. Foi preciso escrever ao presidente Getúlio Vargas, que nos amparou enviando recursos", contaria tempos depois.
Pormenores dessa quase tragédia foram relatados pelo correspondente italiano Max David (1908-1980) para o jornal Corriere Della Sera – o Shepheard’s funcionava como uma espécie de central de imprensa na cidade. “Antes de apanharmos um táxi sem saber ao certo para onde ir, a cantora brasileira Horacina Correa estava sentada no chão com seu marido, perto de um piano derrubado no pátio, onde caíam pedaços de cortina, madeira incandescente e metal em brasa. Havia ar quente, vermelho e cheio de fuligem quando o grande hotel começou a ruir, por volta das quatro e meia da tarde”.
O perrengue alimentaria versões - ainda hoje difundidas - de que ela era proprietária do estabelecimento e teria morrido no atentado. Fake news. Antes do fim do ano, Horacina já zarpava de avião rumo à Suíça, em um roteiro com escalas seguintes em Istambul, Atenas e novamente a Itália, com direito a condecorações pelo engajamento a campanhas beneficentes, apresentando-se de graça em eventos com renda revertida para as mais variadas causas. E se o show não pode parar, também é verdade que o susto no Egito despertara naquela mulher cosmopolita um medo justificado: morrer longe do Brasil.

De volta ao Rio de Janeiro

Em 1953, cantora estava orgulhosa por ter ensinado aos gringos que samba não é rumba

Em 1953, cantora estava orgulhosa por ter ensinado aos gringos que samba não é rumba


Acervo Marcello Campos/Divulgação/JC
Elegantérrima ao apear de um navio de cruzeiro com o marido italiano no Rio de Janeiro em agosto de 1953, Horacina estava orgulhosa por ter ensinado aos gringos que samba não é rumba. E disposta a mostrar que não estivera a passeio nos cinco anos fora do País. Fez bonito dali em diante: programas na Rádio Nacional, shows na boate Night and Day (êxito total ao lado do humorista Chocolate na revista carnavalesca Quem inventou a mulata?, de Ary Barroso e Fernando Lobo) e novas gravações – destaque para dois álbuns de 10 polegadas em 1955-1956, um deles 100% dedicado a criações de Noel Rosa.
 
Esse moto-contínuo seguiu a rodar até meados de 1956, quando uma artista já “quarentona” mas ainda em grande forma tomou com o Mario Martino o rumo da Europa pela segunda – e definitiva – vez. Notas nos jornais brasileiros ainda mapeavam o itinerário da porto-alegrense a ligar os pontos entre Roma, Brescia, Milão, Messina e outras cidades da Itália, sem perder de vista os mercados musicais da Península Ibérica e Escandinávia, onde lançaria seus últimos discos por uma etiqueta sueca no começo da década seguinte.
 
Por motivos que se perderiam no tempo, de 1962 em diante o nome de Horacina Correa praticamente desaparece da mídia em seu país. A artista em constante movimento teria sentado praça no estrangeiro? Ou pegou o caminho de volta, sem alarde? A reta final de seu desfile é ignorada pelos herdeiros indiretos em Porto Alegre, que mesmo assim não deixam de honrar a nobre linhagem de uma majestade: seu sobrinho-neto Nilton Deoclides Pereira, um administrador de empresas e ex-servidor municipal de 70 anos, é o atual presidente da Escola de Samba Bambas da Orgia, enquanto a irmã Neusa, 79, comanda a ala das baianas.
 
“O pouco que sei vem das histórias contadas por minha avó materna, Dona Ondina [falecida em 1994], mana mais velha da Horacina”, lamenta Nilton, cuja filha Liliane Pereira, 36 anos, é jornalista e apresentadora de TV na filial gaúcha da Rede Record, além de rainha da Imperadores do Samba e primeira-princesa do Carnaval de Porto Alegre em 2010. Ele também desconhece o que foi feito de Natal Jesus, caçula do trio e que na década de 1950 pendurou as chuteiras como beque do Fortaleza Esporte Clube (CE) para trabalhar como árbitro e depois técnico de futebol na Região Nordeste.
 
Não foram só os descendentes. A reportagem investiu nas mais variadas frentes de consulta que pudessem desvendar um mistério que já beira os 60 anos. Jornais, arquivos, pesquisadores, cartórios, escritórios de cidadania e até o Itamaraty – que não se dá ao desfrute, porém, de compartilhar informações sobre cidadãos brasileiros no Exterior. Na falta de um ponto final, ficam as reticências. E este trecho de Até amanhã, samba de Noel Rosa (1910-1937) tão bem defendido em disco por Horacina Correa: “Adeus é pra quem deixa a vida. Três palavras vou gritar, por despedida: Até amanhã, até já, até logo".

Nas telas

Artista porto-alegrense Horacina Correa no cinema, em 1949

Artista porto-alegrense Horacina Correa no cinema, em 1949


/ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
1945 | O Cortiço
1945 | Pif-Paf
1946 | Caídos do Céu
1947 | Este mundo é um pandeiro
1948 | E o mundo se diverte
1950 | Não é nada disso
1951 | É com este que eu vou

Discografia

1961 - Horacina Correa e Seu Ritmo Brasileiro (compacto duplo | AEP-Suécia)

1961 - Horacina Correa e Seu Ritmo Brasileiro (compacto duplo | AEP-Suécia)


/ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
1938 - Alto da Bronze / Esta Sim é que é (78rpm | Odeon-Argentina)
1944 - Chave de Cadeia / A Saudade (78rpm | RCA Victor)
1945 - Eu Sou o Samba / Presunção (78rpm | RCA Victor)
1945 - Sai da Roda / Pato Enjeitado (78rpm | Continental)
1947 - Madureira / Está Muito Bom! (78rpm | Continental)
1951 - Fon Fon Et Sa Musique du Bresil (LP 10", Decca)
1954 - Marcha do Mengo / Quero Ver Você Chorar (78rpm | Musidisc)
1954 - Até Amanhã / Feitiço da Vila (78rpm | Musidisc)
1954 - Silêncio de Um Minuto / Pra Que Mentir (78rpm | Musidisc)
1955 - Canções Brasileiras (LP 10" | Musidisc)
1956 - Canções de Noel Rosa (LP 10" | Musidisc)
1959 - Copacabana / Zumba (compacto simples | Vis-Itália)
1959 - Bahia / Seu Condutor (compacto simples | Vis-Itália)
1959 - Enlouqueci / Saudação à Bahia (compacto simples | Vis-Itália)
1959 - Não Me Diga Adeus / Quindins de Iá-Iá (compacto simples | Vis-Itália)
1960 - Horacina Correa e Seu Ritmo Brasileiro (compacto duplo | AEP-Suécia)
1961 - Horacina Correa e Seu Ritmo Brasileiro (compacto duplo | AEP-Suécia)

* Marcello Campos é formado em Jornalismo e Publicidade e Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem cinco livros publicados, incluindo a biografia de Lupicínio Rodrigues e do Conjunto Melódico Norberto Baldauf. Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.