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reportagem cultural

- Publicada em 14 de Outubro de 2021 às 19:13

Restauração em edificação deve preservar memórias de um cinema do Vale do Caí

Casarão da família de Amália Noll, em frente ao Rio Caí, prédio tombado pela prefeitura de Feliz (RS)

Casarão da família de Amália Noll, em frente ao Rio Caí, prédio tombado pela prefeitura de Feliz (RS)


ESCAIOLA/DIVULGAÇÃO/JC
A cena parece saída de um longa-metragem: um menino com um carrinho de mão correndo para a rodoviária em uma cidade pequena. A missão era transportar rolos de filmes acondicionados em pesados latões cilíndricos recém-chegados de ônibus da Capital para serem projetados no único cinema da região. Quem a descreve é o fotógrafo Cláudio Schmitz, que na década de 1960, foi um dos principais projecionistas do cinema instaurado em um casarão que movimentou o município de Feliz. As sessões aconteciam nos fins de semana e eram organizadas por Amália Noll, moradora da cidade e uma espécie de empreendedora cultural da época. Uma mulher considerada à frente do seu tempo e com uma história que está sendo redescoberta, e valorizada, nos últimos anos.
A cena parece saída de um longa-metragem: um menino com um carrinho de mão correndo para a rodoviária em uma cidade pequena. A missão era transportar rolos de filmes acondicionados em pesados latões cilíndricos recém-chegados de ônibus da Capital para serem projetados no único cinema da região. Quem a descreve é o fotógrafo Cláudio Schmitz, que na década de 1960, foi um dos principais projecionistas do cinema instaurado em um casarão que movimentou o município de Feliz. As sessões aconteciam nos fins de semana e eram organizadas por Amália Noll, moradora da cidade e uma espécie de empreendedora cultural da época. Uma mulher considerada à frente do seu tempo e com uma história que está sendo redescoberta, e valorizada, nos últimos anos.
O cinema foi um dos "projetos" de Amália e talvez o que mais tenha marcado a lembrança de moradores que viveram aquele período. Ele ocupava o salão do Casarão da sua família, que fica em frente ao Rio Caí, e atualmente é um prédio tombado pela prefeitura da cidade, com um projeto de restauro que leva o seu nome. A ideia é resgatar parte da memória local, e criar também um novo espaço cultural para a comunidade.
Schmitz conta que para divulgar os filmes eles exibiam cartazes das peças que faziam parte da programação do próximo fim de semana no lugar de maior circulação da região: a rodoviária. E a divulgação funcionava, pois as sessões costumavam lotar. "Vinha muita gente de kombi, ônibus. Me lembro direitinho do pessoal comentando durante a semana que ia passar o Teixeirinha, e Mazzaropi, o filme do Tarzan, era muito divertido", conta.
A professora e historiadora Maria Romana Winter Selbach, que acompanhou os anos de cinema em Feliz, conta que na época ainda era rara televisão. "Quando surgiu o cinema, foi um achado, algo muito legal mesmo. Nós ouvíamos no rádio sobre os filmes, e de repente eles apareciam aqui", diz. Entre as suas películas favoritas, estavam o clássico A Noviça Rebelde e a trilogia Sissi, sobre a princesa austríaca.
As sessões eram um verdadeiro acontecimento para a pequena cidade, onde se reuniam todos os tipos, desde os mais "prestigiados", como médicos e o prefeito, que tinham uma espécie de camarote improvisado no local, até jovens namorados, que precisavam de um acompanhante junto, porque na época não podiam sair sozinhos. A sala era decorada com cadeiras de palha, e quando a sessão lotava, bancos longos de madeira eram postos para ajudar na demanda. Dona Amália, que durante a semana também tinha um comércio de "secos e molhados", aproveitava e vendia refrigerantes, balas e doces. Para lembrar que a sessão começaria, ela também disparava um apito de sirene sempre uma hora antes. O som forte era ouvido em toda a cidade.
Schmitz, o responsável por lidar com os grandes rolos e mexer no maquinário, conta que muitas das fitas já chegavam bem desgastadas, porque vinham de extensa circulação tanto em Porto Alegre, como em outras cidades do Interior. Por isso, muitas vezes algum problema acontecia e precisava ser remendado, literalmente. Era comum também os intervalos para que os rolos pudessem ser trocados. Amália aproveitava esse tempo para vender. "A gaveta do dinheiro, se você puxasse não conseguia abrir, ela tinha um segredo, que nem um instrumento de música, ela botava a mão e só ela sabia como fazer", diz.
O cineasta e pesquisador Boca Migotto, que já dirigiu um documentário sobre a memória da cidade de Feliz, diz que os cinemas do Interior também tinham um papel social. "Para além da questão do entretenimento, independente do filme que passava, o cinema cumpria esse papel cultural na cidade. As pessoas circulavam, conversavam, socialibilizavam", acredita. Segundo depoimentos, o cinema da Dona Amália foi perdendo a força conforme a televisão foi se popularizando, e no início da década de 1970, acabou fechando de vez.
Para Migotto, quando você fecha um cinema de rua, se apaga um pouco da história do local. "Aquele prédio deixa de ter vida, as pessoas já não tem mais por que ir para aquele lugar, então a circulação diminui, comércios podem vir a fechar", aponta.

Traços da vida de Amália Noll

Cláudio Schmitz visitando  o Casarão, onde aconteciam sessões de cinema, registro do documentário de Boca Migotto

Cláudio Schmitz visitando o Casarão, onde aconteciam sessões de cinema, registro do documentário de Boca Migotto


/TEIMOSO FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
Não causa estranhamento a vida de Amália Noll gerar interesse atualmente. Apesar dos poucos registros históricos, sabe-se que foi pioneira em atividades consideradas "masculinas" em uma época na qual as mulheres sofriam ainda mais preconceito. "Ela não casou por opção, e além de tomar conta de todo casarão sozinha, também administrou a casa comercial, um salão de bailes, além do próprio cinema", conta a historiadora Maria Romana Winter Selbach.
Nascida no dia 16 de março de 1904, Amália era filha de Ernest Noll e Luiza Ruschel Noll. O engenheiro Germano Noll, filho do primo do pai da Amélia e um pesquisador da história da própria família, a conheceu quando criança rapidamente. "Eu só a vi duas vezes, uma senhora alta, bem falante, que conversava em alemão com o meu pai. Ela foi alfabetizada em alemão, mas falava bem português também. Era uma pessoa culta", conta. Segundo Germano, o tino comercial de Amália tinha tradição na própria família, tanto do lado materno como paterno, pois ambos bisavós já eram tradicionais comerciantes de Feliz.
Outro empreendimento de Amália foi o Baile de Kerb que realizava em seu salão, ainda antes do cinema, na década de 1950. A família do fotógrafo Cláudio Schmitz morava em uma das casas ao fundo do Casarão e trabalhava com Amália. "Eu ainda era bem guri nessa época, mas sei que a minha mãe trabalhava na cozinha, fazendo cuca e linguiça, e eu corria por aí. As orquestras eram de sopro", diz. Maria explica que com o tempo e a concorrência de outros bailes da sociedade local levaram Amália a abandonar a ideia.
Para a arquiteta Juliana Betemps, sócia da Escaiola Arquitetura Rara, empresa responsável pelo restauro do Casarão, Amália é pioneira em muitos sentidos: "Todas essas atividades que não eram consideradas 'femininas' e ela acaba assumindo, e também a própria quebra da predeterminação da mulher, que quase que obrigatoriamente precisava casar, ter filhos, mostra que há uma ruptura em relação ao óbvio".
Maria Romana lembra uma passagem curiosa da trajetória da Amália. "Ela também era fotógrafa, imagina, uma mulher fotógrafa naqueles tempos. Quando ela tinha que ir para o interior tirar fotografias, ia a cavalo. Para ficar mais confortável, ela colocava terno e chapéu. E então era discriminada, mas não dava bola, ela enfrentava todo mundo", explica Maria. A falta de registros, no entanto, não deixa confirmar se a ousadia da Amália era real ou apenas um causo. "Existe essa utopia, porque não se tem fotos ou registros, que ela pegava o cavalo e tinha inclusive uma capa preta para não descobrirem que ela era uma mulher fazendo fotografias", explica Cristiane Rauber, também arquiteta e sócia da Escaiola.
Em informe turístico da cidade de Feliz, do ano de 1975/1976, há um pequeno texto intitulado Um exemplo a ser imitado: Dona Amália Noll. Uma espécie de homenagem à cidadã que sempre que possível atendia os jornalistas e auxiliava os interessados na história e no patrimônio de Feliz. A página contém um dos seus únicos registros fotográficos conhecidos até agora.
Já no final da vida, nos anos 1990, Amália foi acolhida na casa de um dos irmãos em Novo Hamburgo. As informações sobre o que aconteceu com o seu vasto registro são escassas. Segundo Germano, os sobrinhos de Amália com quem ele entrou em contato não sabiam do material. Schmitz acompanhou mais de perto a época em que Amália saiu de Feliz. "Ela teve 'problema de cabeça', chegou a um ponto e não tinha mais controle, conheci os irmãos dela e os sobrinhos, e até fui visitá-la uma vez em Novo Hamburgo. Como é que íamos saber que 30 anos depois ia ter utilidade isso? Eles limparam as gavetas, não só fotos como todo o resto. Ali devia ter alguma foto fantástica dela", acredita. Amália Noll faleceu em Novo Hamburgo no ano de 1994, sendo sepultada no cemitério católico de Feliz. Até o momento não há conhecimento sobre o destino de seu acervo fotográfico.
 

Casarão em perspectiva

Cláudio Schmitz e Cristiane Rauber no documentário Eu gosto de coisa velha, de Boca Migotto

Cláudio Schmitz e Cristiane Rauber no documentário Eu gosto de coisa velha, de Boca Migotto


TEIMOSO FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
A professora e historiadora Maria Romana conta que antes de ser conhecido como o Casarão da Dona Amália, o lugar já tinha muita história: "Provavelmente foi Jacob Ruschel quem construiu a casa (avô por parte de mãe de Amália), pelo menos a área mais antiga da edificação. Foi ele o responsável por abrir a primeira casa comercial da então Picada Feliz - como era conhecida na época - à margem esquerda do rio Caí e que servia também de hospedaria para os viajantes".
Anteriormente à construção da ponte (1900), era comum o recebimento de hóspedes devido à sua privilegiada posição geográfica. "Havia uma balsa para atravessar, e ela atracava quase em frente ao Casarão, então ali desembarcavam os viajantes, tropeiros, cavaleiros para descansar", diz Maria. Na última década do século XIX, a região testemunhou um período de desenvolvimento econômico com a chegada dos italianos em terras mais altas e desabitadas. Juntamente com os imigrantes alemães, eles reivindicavam melhorias na infraestrutura, especialmente nos meios de transporte. Com o avanço das linhas de trem e das estradas, as casas comerciais que eram comuns foram perdendo espaço já no início do século XX.
Segundo Caio Flores-Coelho, doutorando em História na Pucrs, passa-se a ter um maior foco no transporte ferroviário, na primeira metade do século passado, e no transporte rodoviário, na segunda metade. "Feliz e São Sebastião do Caí estavam listadas para receberem linhas de trem, mas isso nunca foi concretizado. Existe ainda hoje uma ponte de ferro no Centro de Feliz que foi construída para passar um trilho de trem por cima do Rio Caí. Ainda hoje é usada por carro."
Desabitada há muitos anos, a edificação tem um projeto de restauro encabeçado pela empresa Escaiola - Arquitetura Rara. O prédio foi tombado em 2014, e nos anos seguintes foram realizados o levantamento cadastral, a elaboração do projeto arquitetônico e a aprovação do projeto na Lei de Incentivo à Cultura (RS). Segundo Juliana Betemps, a edificação tem três momentos de construção distintos. "O prédio como um todo começa atrás, em pequena edícula, que é uma construção portuguesa e pelo que levantamos é a mais antiga. Olhando de frente, que é a parte bem da direita do prédio, no meio, é onde era o cinema, em uma construção enxaimel, trazida pelos imigrantes alemães, essa é a maior parte da construção", explica. A terceira, a que fica mais à esquerda, quando se olha o prédio de frente, traria características mais rebuscadas: "Vem muito a imigração italiana, que já começa a ornamentar um pouco mais a construção. Então, é justamente por isso que o Casarão tem essa riqueza cultural, por representar as várias etnias que migraram para o Estado e para o País". A primeira etapa do restauro seria relativa ao primeiro módulo do casarão, uma construção em estilo "neoclássico" à esquerda do conjunto arquitetônico. As demais etapas englobam cinema comunitário, salas multiuso e sede de instituições artísticas e culturais da municipalidade. Conforme Cristiane Rauber, a cultura da cidade é muito forte: "Há grupos de dança alemã, coral, teatro, possivelmente essas entidades seriam direcionadas para a edificação". Por ser um equipamento público, o Casarão Amália Noll terá acessibilidade e entrada gratuita nas suas instalações restauradas.
Em resposta, a prefeitura de Feliz diz que a preservação e manutenção do patrimônio cultural edificado é um grande desafio da atualidade: "Elas provocam os gestores públicos a equilibrar o desenvolvimento eminente com as necessidades de minimização dos impactos sociais e também ambientais, contudo, esforços têm sido canalizados visando à equidade quanto à salvaguarda da memória e a organização/desenvolvimento do espaço urbano".
 

Histórias de imigração

Prédio tombado, Casarão dos Ruschel tinha parreiras de uva Isabel

Prédio tombado, Casarão dos Ruschel tinha parreiras de uva Isabel


ESCAIOLA/DIVULGAÇÃO/JC
O Rio Grande do Sul é um estado complexo em sua composição, e a região do Vale do Caí é um bom exemplo disso, sendo predominante colonizado por alemães, italianos e também portugueses. Felipe Braun, jornalista e historiador da imigração alemã, autor de mais de 20 livros sobre a temática, conta que a localidade de Feliz surgiu na década de 1850 em vários novos povoados fundados na região pelas famílias que já não tinham mais espaço nas velhas colônias. "Feliz também recebe uma segunda leva: são os imigrantes vindos pós-Revolução Farroupilha e aí pelos anos de 1846, são muitos vindos da província de Saarland, na Alemanha, que tem muito a ver com a cidade de Feliz, com a cidade de Bom Princípio, com Alto Feliz, e também com Dois Irmãos", diz.
Pesquisador da imigração alemã, o professor da área da História da Unisinos Marcos Schmitt aponta que a primeira colônia alemã do Rio Grande do Sul foi São Leopoldo, fundada em 1824. "Muito rapidamente houve a necessidade de abrir novas frentes de colonização. Uma delas foi em direção ao Vale do rio Caí, onde chegaram imigrantes alemães vindos diretamente da Europa e descendentes de imigrantes alemães chegados à província desde 1824", explica. A colonização alemã serviu a vários propósitos, desde a produção de alimentos, a fabricação de utensílios, ferramentas e máquinas via artesanato, até a ocupação estratégica do território, a substituição da mão de obra escrava e o branqueamento da população.
Uma história importante de união entre os imigrantes alemães e italianos está na origem da produção da uva Isabel, e da viticultura da região. Segundo o livro Vinhos do Brasil, de Marieta de Moraes Ferreira e Valdiney C. Ferreira, atribui-se a produção pioneira dessa fruta à doação de mudas de parreira de uva por parte dos Ruschel, de Feliz, para o imigrante italiano Radaelli, que se estabeleceu em Nova Milano. "Eles (os imigrantes italianos) tentaram plantar uva que trouxeram, mas ela não se desenvolveu, talvez pelo tempo da viagem, mas principalmente pelo clima. E eles sabiam, porque tinham se hospedado lá, que o Jacob Ruschel tinha um parreiral grande. A dona Amália fazia questão de dizer que o avô dela deu seis bacelos de uva Isabel", conta Maria Romana Winter Selbach. A parreira que ocupava uma boa extensão do Casarão não existe mais.

Resgatando paisagens

Filme de Boca Migotto reforça desafio de se manter a memória local

Filme de Boca Migotto reforça desafio de se manter a memória local


TEIMOSO FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
Quais os desafios na hora de trabalhar com documentários históricos? Boca Migotto realizou o curta Eu gosto de coisa velha, com pesquisa da equipe da Escaiola Arquitetura Rara e financiada pelo edital FAC Educação Patrimonial. O trabalho resultou em mais de 30 bens culturais identificados ou inventariados, entre edificações, paisagens naturais, costumes, saberes e celebrações, marcadas pela presença da imigração, preponderantemente alemã.
"É sempre difícil realizar documentários de registro histórico aqui no Brasil, porque de modo geral tudo é pouco conservado. Feliz tem um museu e escolhemos fazer uma parte da gravação lá, com algumas senhoras da cidade que acabam de certa forma preservando a memória local, e podem contar como era", diz o cineasta. Migotto explica que a região de colonização alemã e também a italiana sofreu um apagamento da história. "O passado pobre dos primeiros imigrantes causava vergonha nas novas gerações. Então, na medida em que os primeiros focos de colonização foram prosperando, o olhar dessas comunidades era para o futuro", examina. Entre outros motivos que dificultam a recuperação dessa memória também está a condição financeira dos primeiros imigrantes, que, muitas vezes, impedia a possibilidade de se realizar registros.
Inventariar os bens materiais e imateriais do município também pode servir de instrumento para que sejam criadas políticas públicas para preservar o patrimônio cultural da cidade, bem como as memórias e a cultura local. "O documentário é de certa forma um resgate e ajuda a preservar um olhar daquela história, e, por fim, às vezes abre a porta para que outros projetos de diversas áreas agreguem ao tema", conclui.
 

"As casas comerciais eram um dos corações pulsantes da Colônia", diz pesquisador

Vista do município gaúcho de Feliz, localizado no Vale do Caí, no curta Eu gosto de coisa velha

Vista do município gaúcho de Feliz, localizado no Vale do Caí, no curta Eu gosto de coisa velha


TEIMOSO FILMES/DIVULGAÇÃO/JC
A reportagem entrevistou o professor e pesquisador em História da Unisinos Marcos Antônio Witt sobre características da imigração alemã no Estado, a importância das casas comerciais, como o Casarão da Dona Amália foi, e também o momento da investigação acadêmica nessa área.
JC - Como foi a importância do rio Caí para a região?
Marcos Antônio Witt - O rio Caí foi de fundamental importância para o desenvolvimento da região, uma vez que se tornou a "estrada" que ligava a Colônia à capital. Pelo rio, os colonos enviavam seus produtos, feijão e banha, por exemplo, e recebiam mercadorias que não conseguiam produzir, como sal, fósforo e pólvora. Além disso, as pessoas usavam os rios para se locomover. O rio dos Sinos cumpriu o mesmo papel para a Colônia de São Leopoldo e sua relação com Porto Alegre.
O patrimônio histórico, material e imaterial, caracteriza e define uma cidade e/ou uma comunidade. Poderíamos dizer que lhe confere identidade. Devido a isso, criamos imagens na nossa mente quando se fala do Vale do Caí, como o rio Caí e seu antigo porto
JC - Qual foi o papel das Casas Comerciais para os imigrantes e descendentes?
Witt - As vendas - casas comerciais - eram um dos corações pulsantes das Colônias. Nas vendas, o "vendeiro" (comerciante) comprava os produtos dos colonos e vendia para esses mesmos fregueses as mercadorias que eles não conseguiam produzir em suas pequenas propriedades. Mas, nas vendas também se contavam as novidades, inclusive as que vinham de Porto Alegre, se fazia política, se jogava cartas, bebia-se um trago. Enfim, a venda também era um espaço de sociabilidade.
Tudo isso dava muito poder aos "vendeiros". Enriquecidos, investiram no comércio de terras (compraram grandes extensões e as lotearam, vendendo os pequenos lotes aos colonos) e na política. A família Trein, de São Sebastião do Caí, é um exemplo.
JC - Em que momento se encontra a pesquisa sobre imigração no Rio Grande do Sul, no sentido também de envolver a conexão com outros povos como os indígenas e os negros?
Witt - Atualmente, a pesquisa avançou e os estudos na área da imigração alemã contemplam a presença de indígenas e negros. Por exemplo, a pesquisa em inventários e cartas de alforria permitiu que se percebesse a presença de escravizados junto aos colonos alemães. Magna Magalhães, Marcos Antônio Witt, Miquéias Mügge, e Paulo Roberto Staudt Moreira são alguns dos historiadores que se dedicam ao tema. Sobre os indígenas, abandonou-se a ideia de que as terras destinadas à colonização estavam vazias, desocupadas. Também se aprofundaram os estudos que abordam os conflitos entre os colonos e os indígenas. A região de Feliz e a Serra italiana foram palcos desses conflitos.
 

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação pela Ufrgs e editor fundador do site Nonada - Jornalismo Cultural e sócio da agência Riobaldo.