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reportagem cultural

- Publicada em 15 de Outubro de 2020 às 20:44

Como o sentimento da saudade se revela na criação artística contemporânea

Exposição 'Mariza Carpes - Digo de onde venho', no Margs, traz artefatos familiares, tecidos, camafeus, bonecas, vídeos e desenhos

Exposição 'Mariza Carpes - Digo de onde venho', no Margs, traz artefatos familiares, tecidos, camafeus, bonecas, vídeos e desenhos


FABIO DEL RE E CARLOS STEIN/VIVAFOTO/DIVULGAÇÃO/JC
O processo de banalização de uma palavra ocorre por diversas formas: pelo seu uso excessivo; pela aplicação de um termo nem sempre correspondente à intenção ou ainda pela fusão de sentidos. Há, no entanto, um termo que se adensa progressivamente nos últimos meses. A saudade: um corpo que se faz presente nas ausências, nos silêncios que não se preenchem sozinhos.
O processo de banalização de uma palavra ocorre por diversas formas: pelo seu uso excessivo; pela aplicação de um termo nem sempre correspondente à intenção ou ainda pela fusão de sentidos. Há, no entanto, um termo que se adensa progressivamente nos últimos meses. A saudade: um corpo que se faz presente nas ausências, nos silêncios que não se preenchem sozinhos.
Talvez por ser quase inevitável aos indivíduos ocidentais vivenciarem este sentimento, é de se supor que a saudade se manifeste, também, na Arte. Não são raras as canções, pinturas, coreografias ou poemas que buscam traduzir um estado tão subjetivo e abstrato.
A saudade - do latim solitate (isolamento, solidão) - é antiga, bem se sabe, mas é em Portugal que ela se consolida como teoria. A pesquisadora de Literatura de Língua Portuguesa e poeta Gabriela Silva lembra que é possível identificar diferentes manifestações deste estado de espírito no país. Desde os tempos mais antigos da literatura portuguesa, ainda no trovadorismo, mas especialmente nas pós-navegações, no período camoniano. É nesta época em que se encontram representações da saudade com maior frequência.

Gabriela Silva acredita que saudade é característica indissociável da cultura portuguesa

Gabriela Silva acredita que saudade é característica indissociável da cultura portuguesa


ALEXANDRE ALANIZ/DIVULGAÇÃO/JC
Entretanto, é na ascensão da República portuguesa (1910-1926) que certo saudosismo toma maiores proporções. "Existe a falta dos tempos de Império, assim, a saudade acaba por ser consagrada como característica indissociável da cultura portuguesa", comenta Gabriela. Entre os principais autores que tratam do tema, ela destaca o poeta e filósofo Teixeira de Pascoaes (1877-1952). É ele quem, no início do século XX, estuda a ideia da saudade e da sua permanência na cultura daquele país.
Gabriela soma outros nomes que levaram para a sua escrita a saudade. Florbela Espanca (1894-1930), que fala da saudade do amado, de tempos de sonho e do Alentejo. Da mesma forma, Fernando Pessoa parte de um saudosismo que também se transforma e reflete o desejo de um futuro de liberdade. A pesquisadora aponta ainda Miguel Torga (1907-1995), Sophia de Mello Breyner (1919-2004), Lídia Jorge (1946-), Ana Luísa Amaral (1956-), Valter Hugo Mãe (1971-), entre tantos outros.
Talvez a saudade verde e amarela, cogita Gabriela, seja a de um Brasil que poderia ter crescido e se tornado uma grande nação. A poeta reflete existência de um tempo que, hoje, pode se enquadrar como saudade - entre o final do século XX e o início do século XXI - em que tudo era promissor. "A saudade nos compõe também na arte, na música, na literatura, mas somos mais famintos de futuro."

Visita à memória

Irene Santos editou livro de memórias fotográficas Negro em Preto e Branco (2005)

Irene Santos editou livro de memórias fotográficas Negro em Preto e Branco (2005)


/IRENE SANTOS/DIVULGAÇÃO/JC
O gesto de manusear álbuns de fotografia pode conduzir a uma viagem, na qual o passado é visto da janela, sem chance de desembarque. Nas imagens, filhos ainda pequenos tomam banho de mangueira em um longínquo verão; amigos de infância cantam Parabéns, portando sobre a cabeça um cone de papel preso por um fino elástico; o sorriso de parentes que morreram ou se afastaram. Um flagra desajeitado na cozinha. Enfim, instantes.
Irene Santos é fotógrafa. Trabalha no ramo há cerca de 40 anos, registrando as áreas de artes cênicas, música, além de se dedicar à pesquisa da história e cultura afro-brasileira. Ela costuma visitar álbuns de fotografia, principalmente os produzidos no século passado. Acredita que sem o imediatismo dos dias de hoje prezavam-se mais os registros de acontecimentos da vida.
E foi olhando os álbuns de uma amiga - uma mulher negra como Irene - que a fotógrafa notou o quanto eram parecidos os registros de suas famílias. Ela teve, então, a ideia de pesquisar a respeito. Como resultado desta investigação, Irene editou o seu primeiro livro de memórias fotográficas: Negro em Preto e Branco - história fotográfica da população negra de Porto Alegre (edição do autor, Fumproarte, 2005).
A saudade pode ser captada ou nasce depois? Irene diz até ser possível compor uma imagem em um ambiente nostálgico, onde certo personagem adote uma postura corporal que possa sugerir a falta de algo. "Mas isso tudo não passará de suposição do sujeito que olha a cena", observa.
Um exemplo é o registro de um olhar evocativo feito por Irene, de uma anciã. A foto foi captada em 1979, durante a procissão de Quinta-Feira Santa, em Pelotas. A imagem, inclusive, deu origem ao poema Texto para uma foto, escrito pelo poeta Oliveira Silveira (1941-2009), em que ele destaca "o açúcar, o algodão dos cabelos, "o eito, as vergas e leivas da testa" e "o charque do tempo no rosto" da mulher. E finaliza: "Que céu nublado se reflete/nas duas cacimbas dessa terra seca?/ E que profundezas afloram a esses dois olhos d'água?".

Ausências do corpo

Iara Deodoro é coreógrafa, bailarina e diretora do Afro-Sul Odomodê, em Porto Alegre

Iara Deodoro é coreógrafa, bailarina e diretora do Afro-Sul Odomodê, em Porto Alegre


/MACIEL GOELZER/DIVULGAÇÃO/JC
Entre tantos elementos envolvidos, a dança trabalha também com o tempo: durante o aquecimento, na contagem dos movimentos; na duração de uma coreografia, na passagem dos anos. Por mais abstrata que seja, esta falta se faz presente. A professora, coreógrafa e bailarina Eva Schul destaca a dificuldade em lidar com as ausências em época de pandemia e isolamento físico. "Tanto pela falta de contato e de trocas olho no olho, mas também por esta adaptação virtual que lida com uma ação fria, impessoal e, principalmente, cansativa." Desde março, quando iniciou a quarentena em razão da pandemia do novo coronavírus, ela ministra suas aulas virtualmente para alunos de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Londres, França, Espanha e Portugal.
Eva comenta que o seu trabalho artístico está cada vez mais baseado na proximidade e menos na espetacularidade. Desta forma, torna-se quase inviável à professora levar a obra para a tela, pois na transição se perde justamente o que a coreógrafa considera fundamental. Para ela, tal adaptação esfria demais o conceito.
Em geral, trocas e experiências compartilhadas são trabalhadas na dança - principalmente na pós-moderna, explica. "Então não tem como deixar de sentir saudade dos espaços humanos. Apesar de eu ter me adaptado rapidamente como professora à nova realidade, não consigo ainda visualizar uma forma de prescindir do compartilhamento no meu trabalho artístico", lamenta Eva, que conta com 50 anos de carreira.
Para a coreógrafa, bailarina e diretora do Afro-Sul Odomodê, em Porto Alegre, Iara Deodoro, ultimamente, tudo faz lembrar. "A dança, os colegas, as aulas, os alunos, os movimentos que se repetem exaustivamente. Isso gera muita, muita saudade", diz. Aos 64 anos de idade - 56 deles dedicado à dança - Iara não vacila em afirmar que este sentimento de falta se reflete em seu trabalho.
Com o tempo, novas saudades crescem, não apenas na memória, como também no corpo. Limitações impostas a movimentos que, anos atrás, eram executados com fluidez e que com a idade passam a confrontar obstáculos. "A minha maior saudade é do tempo em que o meu corpo não tinha limitações, quando eu podia criar as minhas coreografias e eu mesma dançava. Era um tempo em que eu brincava com o movimento, coisa que hoje me custa, justamente por essa restrição", relata.
Mas, se o corpo em movimento não mata a saudade, pelo menos ameniza. Há pouco tempo a coreógrafa contou passar por tal experiência. "Quando eu dancei sozinha, me imaginei junto de um companheiro de muitos anos de dança, que morreu já faz bastante tempo. E foi algo muito mágico, foi real. Amenizou a dor da saudade", recorda. Iara se refere a Osmar Amaral Júnior, que integrou o Afro-Sul e também foi mestre-sala, enquanto ela era porta-bandeira, na antiga escola de samba Garotos da Orgia (1980-1998), na Capital.
 

"Hino da modernização brasileira se chama Chega de saudade", diz Guto Leite

Álbum de estreia do cantor e compositor João Gilberto foi lançado em LP em março de 1959

Álbum de estreia do cantor e compositor João Gilberto foi lançado em LP em março de 1959


/REPRODUÇÃO/JC
No livro O cancionista (Edusp, 1995), Luiz Tatit diz que a canção tem a força de encapsular experiências. Isso se deve à reverberação corporal que ela manifesta e por estar materialmente presente como trilha sonora de momentos ou períodos da vida das pessoas. O que faz uma canção ser associada a determinadas pessoas, relacionamentos, lugares ou fases de vida.
Quem menciona e contextualiza a obra acima é o poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira da Ufrgs Guto Leite. É a partir de uma experiência marcante, ao escutar uma canção, que a lembrança quase se presentifica, despertando, entre tantos sentimentos, a saudade.
Neste sentido, o professor lembra que não há gênero que escape da expressão da saudade amorosa. E logo sugere uma série de canções que tratam do assunto: Meu primeiro amor (Roberta Miranda); Ê, saudade (Jammil); Na cadência do samba (Ataulfo Alves e Pedro Gesta); Gente humilde (Chico & Tom) ou ainda Resposta ao tempo (Aldir & Cristóvão Bastos).
Ele ressalta que a seleção acima trata da saudade explícita, no entanto, caso as implícitas sejam consideradas, a incidência do tema é maior. Guto observa que "a saudade é um sentimento tão forte em nossa música, que o hino da modernização brasileira se chama Chega de saudade". E que talvez a ocorrência notável desse tema do cancioneiro brasileiro tenha a ver com o perfil de uma sociedade nostálgica: "Nós, que somos filhos do presente, geralmente desconfiamos dessa nostalgia e saudosismo, pois não raro essa saudade vem de tempos e recortes horríveis da nossa vida social".
Junto dessa desconfiança, o professor de Literatura acredita que é preciso compreender que a modernidade no Brasil "não entrega o que promete". Portanto, haveria uma razão a esse apego a um tempo ruim, já longe da experiência, transformado em tempo bom.
Entre os exemplos apontados, está Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), sobre a melodia de João Pernambuco, que canta "oh, que saudade do luar da minha terra", em Luar do sertão. A referência é ao mundo do campo, pré-êxodo rural massivo no século XX. "Sabemos que esse mundo rural era extremamente misógino, religioso e violento. A sensação comunitária, as práticas de mutirão, relativizam a parte ruim, é verdade, mas o contexto era de miséria, patriarcalismo e violência", adverte.
 

Richard Serraria compôs a canção Saudade só existe em duas línguas

Richard Serraria compôs a canção Saudade só existe em duas línguas


NÁTHALY WEBER/DIVULGAÇÃO/JC
Existem outras formas, porém, de se sentir e cantar a saudade. O compositor, cantor e poeta Richard Serraria tem duas canções em que a saudade é literalmente citada. "Saudade é uma fogueira fora do lugar", na canção O Pampa e a cidade, do disco Vila Brasil (2008). Há ainda Saudade só existe em duas línguas, do álbum Mais tambor menos motor (2017). Das músicas que despertam nele este sentimento, está Pássaro azul, integrante da trilha sonora do documentário O grande tambor (Gustavo Türck e Sergio Valentin, 2012), que apresenta "uma levada de sopapo (tambor afrogaúcho) à moda antiga. É pura saudade em formato musical".
Buscar a saudade no processo de criação artística, seja ela qual for, não é tarefa fácil. Existe o receio ao investigar vazios, apreensão em revirar lembranças ou mesmo dificuldade de identificar ou reproduzi-la. Afinal, qual é a cor, o som, o movimento, a imagem da saudade? E que tipo de saudade é essa?
Integrante do grupo instrumental Kiai, o músico, compositor, professor Dionísio Souza bem sabe desses hiatos. "Percebo que sempre que se fala de saudade vem este silêncio em seguida. Ela retira, desorganiza a tua fala, porque está presente. E, às vezes, algo que é muito presente não conseguimos classificar."
Mesmo que estude questões técnicas, esta falta sempre surge em algum momento do trabalho de Dionísio. São memórias de pessoas com quem o músico troca conhecimentos e com quem aprende. Elas que rondam o músico quando trabalha com as suas improvisações, mesmo sendo necessário estar no presente: "Como tu estás absorvendo um volume grande de lembranças e informações que chegam, é preciso tentar transformar tudo isso e trazer para o momento para respirar melhor".

Lembranças que constroem o futuro

Para Mariza Carpes, entre memória e saudade há uma lacuna que não sabe decifrar

Para Mariza Carpes, entre memória e saudade há uma lacuna que não sabe decifrar


/ALAN ASQUITH/DIVULGAÇÃO/JC
A exposição Mariza Carpes - Digo de onde venho ocupa o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) desde dezembro de 2019 e deve seguir após a reabertura do espaço, que fechou em razão da pandemia. Distribuída pela Galeria João Fahrion e nas salas Angelo Guido e Pedro Weingärtner estão lembranças e histórias da artista, atravessadas pelo olhar de uma Mariza ainda menina. Artefatos familiares, linhas, tecidos, camafeus, quadros, bonecas, vídeos e desenhos. Banhados por uma luz intimista, tais objetos compõem uma espécie de fragmentos da memória. O visitante passeia por um universo quase onírico, fundindo a relação entre sonho e saudade, vivências e estados impossíveis de tocar.
Até alcançar tal resultado, foram mais de cinco anos de muito trabalho para Mariza. A exposição foi planejada para comemorar os seus 45 anos como profissional das artes. Entre o início da proposta e o final, ela perdeu os pais, o que, para a artista, certamente foi entremeado em seu discurso. Especialmente a perda da sua mãe, seis meses antes da abertura.
A identificação deste sentimento de falta não se revela de forma categórica, se amálgama com o registro de uma memória. Mariza cita como exemplo a instalação na qual encontra-se uma mesa com centenas de cristais e vidros quebrados. A coleção iniciou com a quebra de 53 peças de cristal pertencentes ao casamento de Mariza, que havia acabado. O autor do acidente foi um pássaro que atingiu a cristaleira. "Eu conservei os cacos sem saber o porquê. Era memória, era saudade? Certamente era um aperto no peito. Era mais do que um conjunto de peças cortantes; ao meu olhar tinham um significado potencialmente superior", comenta.
Para Mariza, entre memória e saudade existe uma lacuna que ela não sabe decifrar. Diz ter aprendido não poder mergulhar na saudade, mas, sim, construir o futuro. "Criar condições de viver plenamente o resto da minha vida. A finitude, que se mostrou tão forte nos últimos anos, aponta-me para frente e não olhar para trás".

A diáspora africana e o surgimento do banzo

Professor de História da Ufrgs, José Rivair Macedo fala sobre a África distante e matricial

Professor de História da Ufrgs, José Rivair Macedo fala sobre a África distante e matricial


EDITORA CONTEXTO/DIVULGAÇÃO/JC
Pensar na saudade é refletir sobre o tempo e sobre como os indivíduos se relacionam com ele. Portanto, é prudente não ignorar que este sentimento mantém um vínculo direto com a cultura ocidental, europeia e branca. Nas culturais tradicionais africanas, por exemplo, tal atravessamento se dá por meio da perspectiva do corpo e do espaço. "Isso não quer dizer que as sensibilidades africanas modernas tenham ficado alheias a tais elementos da subjetividade ocidental, porém, isso tem a ver com as culturas contemporâneas africanas", explica o professor de História da Ufrgs José Rivair Macedo.
No caso da tradição ocidental, dois importantes elementos se vinculam. De um lado, a matriz greco-romana, sobretudo com o chamado mito da Idade do Ouro, considerado um passado exemplar, de riqueza, paz e prosperidade, como contraste a um presente decaído. Ele se articula com a tradição judaico-cristã, na qual a ideia da origem está associada ao Éden, com o paraíso, porém, a um paraíso perdido, pela falta e pela queda.
"A noção de um desenrolar do tempo, partindo de uma queda, agrega ao tempo certo valor de negatividade em relação a um passado mais puro, intocado, de perfeição", comenta Rivair. A ideia de um fim catastrófico e apocalíptico acaba se manifestando como uma particularidade importante na maneira pela qual os ocidentais lidam com o tempo.
De outra forma, ocorre com as sociedades tradicionais africanas ou indígenas, já que o tempo não é o elemento central. A percepção do sentimento de saudade está conectada com outros códigos e valores. Sobretudo porque o passado nunca desaparece, pois os ancestrais estão sempre presentes através de interações constantes. "Não há separações definidas entre este e o outro mundo, marcadas entre o que foi e o que será. Vive-se efetivamente o presente com a tradição acumulada, que vai se agregando com o tempo", conclui.
O livro O terreiro e a cidade (1988), de Muniz Sodré, é evocado durante a entrevista por Rivair. Ele explica que na obra fala-se na casa de religião de matriz afro, e de como todo o passado africano se faz presente. A cultura praticada nestas casas é a do encontro constante, não da separação. A palavra religião, por exemplo, tem a ver com religare, algo se rompeu. No entanto, este rompimento não aconteceu dentro das sociedades tradicionais africanas. O corpo da pessoa praticante dessas religiões é atravessado pelo sagrado o tempo inteiro, através da possessão e do transe.
 

Escultura Banzo, de Jaci Santos, faz parte do Acervo do Margs

Escultura Banzo, de Jaci Santos, faz parte do Acervo do Margs


FABIO DEL RE E CARLOS STEIN/VIVAFOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Para além da inadequação da saudade nas sociedades tradicionais africanas, Rivair lembra da criação de um elemento de saudosismo ocorrido através da diáspora produzida pelo tráfico de escravos. Uma ruptura com a terra ancestral, grupos étnicos, laços familiares e cultura de origem. Um afastamento extremamente violento. "A diáspora tem um componente de saudosismo em relação a uma Mama África, uma África matriz, parcialmente idealizada. Projetada em um passado de perfeição, de integridade que foi interrompido."
O professor alerta que, dentro dos estudos sobre a escravização, o banzo é mencionado. Assim é denominada a doença psicológica do cativo que chegava da África, que recusava a sua condição escrava, sentindo saudade da sua terra de origem. Por vezes, morria-se de tristeza: "É o banzo que leva o cativo a comer terra, até a morte. Comer terra, essa busca de contato com a terra de origem". Para o professor, o banzo pode ser associado à saudade que acontecia no período do tráfico, e que, conforme analisa, continua acontecer até hoje, a partir da perspectiva de uma África distante e matricial.

Detalhes de uma saudade

Saudade é uma das mais famosas obras do artista Almeida Júnior (1850-1899)

Saudade é uma das mais famosas obras do artista Almeida Júnior (1850-1899)


/ACERVO PINACOTECA SP/REPRODUÇÃO/JC
Uma mulher simples em uma casa humilde. Apoiada na janela, olha com a cabeça baixa para a fotografia em sua mão esquerda; a direita segura o xale que cobre a sua boca, tentando conter o choro, sem sucesso. A luz da rua contrasta com a paleta de cores do interior, mais escuras, terrosas. Ignora por completo a luminosidade e se volta para a sua tristeza. Veste preto a mulher.
No primeiro plano, acima, um chapéu de palha pendurado denuncia a ausência - não se sabe se temporária ou definitiva - de alguém. Abaixo, um baú entreaberto revela vestígios de memórias que escapam. Um retrato bastante realista capaz de compartilhar a dor da solidão que ele comunica.
Saudade (1899) é uma das mais famosas obras do pintor e desenhista Almeida Júnior (1850-1899), um dos grandes nomes da pintura narrativa. Ele é tido como um percussor da abordagem regionalista, de personagens simples ou anônimos. A obra integra o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

* Priscila Pasko é jornalista e escritora, autora do livro de contos Como se mata uma ilha (Editora Zouk, 2019).